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Reportagem
A arte de festejar e ritualizar a morte
Por Ana Paula Zaguetto e Janaína Quitério
10/11/2014
O escritor mexicano Francisco Haghenbeck, autor do romance O segredo de Frida Kahlo, pintou em palavras uma faceta pouco conhecida da artista: a Frida Kahlo cozinheira, que preparava receitas especiais como oferenda no dia de los muertos. Na narrativa ficcional, a pintora encontra a Morte, a quem chama de madrinha, depois de ter sofrido um acidente de bonde responsável por fazê-la fraturar várias partes do corpo. Para voltar à vida, Frida sela um pacto com a caveira em troca do ritual de celebração.

O livro traz a trajetória real das dores e sofrimentos pincelados pela pintora em seus famosos autorretratos, mas também coloca em cena o traço milenar do povo mexicano de homenagear os mortos com bebidas, músicas e pratos preferidos de seus familiares em vida – costume tão arraigado que já habitou o cenário de diferentes linguagens artísticas no país.

Foi o companheiro de Frida Kahlo, o muralista Diego Rivera, por exemplo, que rebatizou a personagem icônica la calavera garbancera criada pelo artista gráfico, também mexicano, José Guadalupe Posada, difundindo-a pelo mundo. La Catrina, a personagem rebatizada, foi reproduzida por Rivera em seu mural Sonho de uma tarde dominical na Alameda Central, pintado em 1948, onde a caveira, vestindo seu chapéu elegante, aparece ao lado do próprio muralista, de Frida e de Posada.

Até sua morte, Posada foi um artista pouco valorizado em seu país, embora tenha produzido, de acordo com levantamento publicado no Artists from Latin American cultures: a biographical dictionary, mais de 15 mil impressos em 30 anos, sempre ilustrados em jornais e revistas de grande circulação. Ainda que suas caveiras se portassem como sátira política durante o regime de Porfírio Diaz, entre os anos de 1876 e 1911, elas também ajudaram a popularizar, anos depois, os festejos do dia dos mortos.

Na avaliação de Maria Rodriguez, cônsul mexicana para assuntos culturais no Brasil, trata-se de umas das tradições mais icônicas do México. “Para ajudar a divulgá-la pelo mundo, temos organizado desde 2013, em razão do centenário de morte de Posada, uma exposição com as gravuras mais importantes do artista”, conta Rodriguez durante a abertura da mostra La muerte tiene permiso, em cartaz até 17 de dezembro na hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade, na região central da cidade de São Paulo. O título da exposição foi emprestado de um dos contos de outro artista mexicano, o escritor Edmundo Valadés, que, como Posada, ecoou em sua arte as mazelas sociais pelas quais viviam – e morriam – seu povo.

Morte como ciclo de vida
Em sua narrativa de viagem publicada no livro México, em 1957, o escritor brasileiro Erico Veríssimo destaca que a consciência da morte, para o mexicano, é diferente da brasileira. “A ideia de morrer tem algo de luminoso e às vezes até de humanístico. Porque a morte para essa gente é também um juguete, um brinquedo”, escreve no capítulo dedicado a tentar entender de onde surge o que ele classifica de “estranha atitude diante da morte”. O próprio Veríssimo sugere uma hipótese: o componente indígena de caráter do mexicano.

De fato, a pesquisa conduzida por Juan Luis de León Azcárate, professor de teologia bíblica da Universidade de Deusto, na Espanha, e publicada no livro La muerte y su imaginario en la historia de las religiones, sublinha que as culturas dos povos maias, astecas e incas, espalhadas pela América Central antes da colonização, relacionavam o ciclo cosmológico e, em particular, o solar, ao funcionamento – inclusive político – da vida e da morte. “Da mesma forma que o sol morre todos os dias, o cosmo e toda a vida, incluindo a humana, se regenera. Viver é morrer e morrer é viver. É um ciclo contínuo”, escreve Azcárate.

Essa postura de origem indígena de encarar a morte não como fim, mas, tal qual descreveu Veríssimo, como transformação, ou “rejuvenescimento de vida”, sobreviveu à colonização espanhola, de base judaico-cristã, e está presente nas celebrações contemporâneas do dia dos mortos mexicano. Para a coordenadora do Núcleo de Estudos das Américas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Maria Teresa Toribio Brittes Lemos, trata-se de uma festa onde os rituais pagãos predominam: “A permanência cultural indígena e cristã indica que a reprodução de práticas culturais e as representações simbólicas são fortes, ainda que ressignificadas. Tanto nas práticas indígenas como nas ibéricas, predominam os rituais tradicionais dos mexicas, antigos mexicanos, e celtíberos, portanto, com grande conteúdo pagão”, destaca.

Convite à festa
Com poucas variações regionais, as festividades oferecidas aos mortos no México começam no final de outubro e continuam na primeira semana de novembro. Brittes Lemos salienta que as cerimônias reúnem familiares e todos aqueles que se relacionam direta ou indiretamente com o morto, tornando-se um momento de importante integração social. “O ritual remete o culto à ancestralidade da família. Todos se reúnem para a festa, e o local é enfeitado com bandeirinhas, muita música, dança, bebidas e comidas. No dia 2 de novembro, o que resta da festa é levado para o cemitério e colocado sobre o túmulo”, conta.

Para além do sentido religioso, em conjunto com os benefícios sociais de integração apontados pela pesquisadora da Uerj, a celebração mexicana permite que a morte seja tratada com mais leveza, amenizando, inclusive, a dor da perda de entes queridos. É o que aponta a psicóloga mexicana Jimena Goméz-Gutiérrez, que atua, em parceria com a Universidade Autônoma do México (Unam), com terapia familiar nos casos de perda e luto. “A celebração do dia dos mortos nos permite enfrentar a dor em companhia, expressar o que sentimos por aqueles que se foram de uma forma diferente. É uma ponte que ajuda a viver a dor e a superá-la, ganhando a consciência de que, da mesma forma que a felicidade não existiria se não sentíssemos tristeza, a vida é parte da morte”, analisa a psicóloga.

Continuidade e reencontro
As diversas culturas africanas e suas religiões também têm formas diferentes de encarar o significado da morte. Para os iorubás, por exemplo, um dos povos africanos com maior influência cultural no Brasil, não há ruptura entre vida e morte, mas uma continuidade entre o Aiê, mundo dos vivos, e o Orum, para onde vão os que morrem e onde estão os orixás e outras divindades, em um ciclo de morte e renascimento similar ao verificado nas culturas indígenas pré-hispânicas. “Há uma articulação entre essas duas dimensões e ela está presente nas mais diferentes culturas africanas”, explica Paulino Cardoso, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Essa concepção cíclica de vida e morte também está presente nas religiões afro-brasileiras, como o candomblé.

A morte é entendida como um momento importante, de reencontro com os antepassados. De acordo com Cardoso, ela é parte da experiência de vida e um momento central na dinâmica das comunidades. “Durante a sua vida, você se prepara para se tornar um ancestral. Então, esse é um momento bastante significativo e que confere uma continuação com sua ancestralidade e sua descendência”, observa. Devido à sua importância, os rituais fúnebres são longos e envolvem várias etapas, com muitos cantos e danças. No entanto, não deixam de ser um momento de tristeza também. “Nas religiões africanas e afro-brasileiras, você sabe que a pessoa vai para outro mundo, fica temporariamente lá, mas depois volta. Pode até voltar ao seu convívio, como uma criança, mas não é a mesma coisa que você recuperar um ente querido que morreu”, explica o sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo (USP). “Todo rito religioso nas religiões africanas e afro-brasileiras é um rito cantado e dançado, então os ritos funerários também seguem esse padrão”, completa.

Faz parte dos rituais fúnebres de origem africana destruir e despachar os pertences religiosos da pessoa que morreu, como vestes e colares. E o local onde esses objetos são descartados depende do vínculo da pessoa com os orixás. “Alguém que é ligado a um orixá da mata terá seus pertences deixados na mata. Se for ligado a um orixá de água doce, serão despachados em um rio”, descreve Prandi. Essa cerimônia tem a finalidade de desfazer os vínculos do morto com esse mundo, para que ele possa sair do Auê e ir para o Orum. Diferente da religião católica, não há nas religiões africanas a ideia de céu ou inferno, todos vão para o mesmo lugar, de onde retornam quando nascem de novo.

Sincretismo no Brasil
Mas, como destaca Prandi, todas as religiões mudam, adaptando-se aos novos tempos. E a ideia de renascimento nas religiões afro-brasileiras passou por modificações devido à influência da religião católica e da dinâmica populacional da sociedade. Acreditava-se que as pessoas morriam e renasciam na própria família. No entanto, com a redução das taxas de natalidade, passou-se a morrer mais gente do que nascer dentro de uma família. “Então, a ideia que de que o renascimento se dava na própria família foi sendo substituída por uma ideia mais vaga, mais imprecisa, de que há um renascimento, mas você não sabe onde, nem quando, nem de que jeito. A própria ideia de ciclo repetitivo foi perdendo importância”, explica o sociólogo.

A influência da religião católica deve-se ao fato de que no Brasil colonial o catolicismo era a religião oficial, sendo proibidas outras manifestações religiosas. Os negros eram obrigados a se batizar e se casar no religioso. Mas, ao mesmo tempo, não deixavam de seguir a religião de seus antepassados. “Esse contato estreito entre duas práticas foi provocando sincretismos, mudanças. E isso interfere na concepção de vida e de morte. É comum, por exemplo, quando alguém do candomblé morre, ser realizado o Axexê (rito funerário do candomblé) e também o rito funerário católico. Tem-se a ideia de que as duas religiões são caminhos que andam juntos”, avalia.

Além das religiões afro-brasileiras, os rituais e crenças dos povos africanos também foram preservados sob o manto do catolicismo. A imposição dessa religião aos cativos era vista como uma maneira de conter as insurreições. Crer no reino do céu e na vida eterna faria com que o escravo aceitasse o trabalho árduo e o sofrimento para ser recompensado depois da morte. Mas, como escreve a historiadora Emília Viotti da Costa no livro Da senzala à colônia, “longe de contribuir para a evangelização, a escravidão corrompia o cristianismo”. E assim, nos enterros de negros, misturavam-se uma “animação festiva” e a “mais ruidosa infelicidade”, ao lado de discursos comuns das religiões africanas:

Zoio qui tanto vio
Zi boca, qui tanto falô
Zi boca qui tanto zi comeo tanto zi bebeo
Zi mão qui tanto trabaiô
Zi perna qui tanto andô

As irmandades católicas brasileiras de negros cativos e libertos tiveram um papel importante durante o período da escravidão, não só religioso, mas também social. Um exemplo é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, da cidade de Desterro, em Santa Catarina. Segundo Cardoso, da Udesc, a forma como o corpo é cuidado e enterrado é fundamental para as culturas africanas. Muitos dos corpos dos negros cativos mortos não recebiam esse cuidado, sendo abandonados pelas ruas ou jogados nas praias. A irmandade, então, cumpria o papel de dar dignidade ao morto, realizando um ritual e uma homenagem nesse momento final da vida. “E o mais importante de tudo, a encomendação da morte é fundamental para a personalidade social do morto. Nessa sociedade, você só existe na medida em que se prepara para se tornar um ancestral”, complementa Cardoso. Assim, o ritual é também um momento de reafirmação dos elos de pertencimento do morto.

Uma das celebrações que perderam a força no Brasil foram as festas de Egungun, um ritual para se reverenciar os antepassados, realizado nas ruas e em praças públicas. “Como o Brasil não tolerava outras religiões em espaços públicos, esse costume de festejar os antepassados foi desaparecendo e sendo substituído pelo rito católico, que é o rito de finados”, aponta Prandi, da USP. No entanto, os antepassados continuam sendo louvados dentro dos terreiros, mas não em um dia em que todos fazem essa comemoração juntos.

O que permanece ao longo do tempo é o espírito de celebração da vida do morto, seja nas religiões afro-brasileiras ou no catolicismo. “Fui ao enterro da avó de uma aluna minha e ao lado estava sendo enterrada uma componente da minha escola de samba. Eram duas pessoas negras sendo enterradas ao mesmo tempo, uma no ritmo do samba e outra no ritmo da macumba”, relata Cardoso, que é afrodescendente e também celebrou durante três dias, em homenagem ao pai, que era boêmio e gostava de festa, após a sua morte. “Você deve celebrar o morto, o homem ou a mulher que cumpriu bem sua vida nesse mundo”. Talvez saber sorrir e festejar em um momento de tristeza pode ser uma das explicações para a resiliência dos povos africanos e seus descendentes diante das desigualdades de nossa sociedade.