No primeiro semestre de 2002, a editora Hedra anunciou o lançamento da tradução de Oliver Twist, de Charles Dickens, feita por Machado de Assis. O livro faz parte da Coleção Tradutores, que a editora começara a lançar, e que reúne obras consagradas da literatura mundial que foram traduzidas para o português por autores renomados. Entre as obras estão Metamorfoses, de Ovídio, traduzida por Bocage e As minas de Salomão, de Rider Haggard, na tradução de Eça de Queirós. Com tradução do mesmo Machado de Assis encontramos ainda Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo.
A iniciativa da editora é bastante interessante e tem, sem dúvida, o objetivo principal de captar leitores/compradores, que provavelmente serão atraídos por essa faceta menos evidente de escritores consagrados, o seu “lado tradutor”. Projetos editoriais dessa natureza acabam gerando comentários e resenhas críticas que abrem espaço para reflexões sobre a posição do autor e do tradutor em nossa cultura, e é nessa linha que o presente trabalho se desenvolve.
A tradução de Oliver Twist é de especial interesse para quem reflete sobre tradução, porque foi feita “em parceria” com Ricardo Lísias, e o tempo total da empreitada ultrapassa os cem anos (1870-2002). Machado começou a publicar a tradução de Oliver Twist de forma seriada no Jornal da Tarde carioca mas, por algum motivo, interrompeu-a no capítulo 26. O trabalho inacabado ficou “dormindo” até ser retomado, muitos anos depois, por Ricardo Lísias, jovem autor que aceitou o desafio proposto pela editora Hedra.
A tradução “em parceria” entre Lísias e Machado, gerou alguns comentários na mídia, aos quais nos voltamos agora. Jotabê Medeiros afirma, em resenha publicada em O Estado de S. Paulo, que “Machado inseriu refinada ironia onde havia excesso de moralismo e transformou Dickens num autor maior do que era de verdade” (Medeiros, 2002). Para provar tal fato, Medeiros cita um trecho do romance de Dickens, como se ele tivesse sido escrito em português, e o compara à versão de Machado.
Vejam esse caso, o do Capítulo 17: “É costume no palco, em todos os bons melodramas sangrentos, apresentar as cenas trágicas e as cenas cômicas em alternação regular, como as tiras de vermelho e branco na lateral de um suculento bacon”, escreveu Charles Dickens. [...] Vamos à versão machadiana: “É uso, nos melodramas que cheirem a sangue, alternar as cenas trágicas e as cenas cômicas”, traduziu simplesmente o velho Machado.
Sem entrarmos no mérito da supressão, feita por Machado, de uma comparação que é no mínimo inusitada (cenas cômicas e cenas trágicas alternando-se como o vermelho e o branco na fatia de bacon) e que poderia ser considerada como um traço de genialidade, já que é tão original, atenhamo-nos aos termos usados em referência à tradução de Machado. Toda a resenha de Medeiros expressa a ideia de que Machado “melhorou” o texto de Dickens, como se pode ver nos seguintes trechos:
A filosofia puritana de Charles John Huffman Dickens transforma-se em zombaria e sarcasmo na pena de Machado – e pensar que tanto tempo fomos privados dessa tradução maravilhosa. (Medeiros, 2002)
Com rara facilidade, ele [Machado] se livra do aspecto pomposo dos títulos de Dickens sem, no entanto, trair-lhes o sentido. (Medeiros, 2002).
Não entra em questão, em momento algum, a “infidelidade” do Machado tradutor, que com sua pena fez do Dickens puritano e moralista um Dickens sarcástico. O raciocínio é no mínimo tortuoso: Machado tem o direito de mudar o teor e o tom da obra de Dickens porque ele é Machado, um escritor que, embora brasileiro, tem muito mais qualidade literária que Dickens. Machado não só tem a permissão para efetuar essas mudanças, mas é também louvado por isso, já que nos proporcionou uma tradução maravilhosa. Mas se o texto de Dickens é tão inferior assim, qual é o mérito de traduzi-lo e publicá-lo?
As condições de produção na época de Machado eram, sem dúvida, outras. É muito provável que Machado tenha efetuado parte da tradução simplesmente para ganhar dinheiro, situação em que a qualidade literária não está em primeiro plano. Mas, e atualmente, qual seria o mérito de publicar uma tradução inacabada, feita por um Machado jovem e ainda não consagrado, de um texto que é “puritano” e “pomposo”?
Medeiros comenta o fato de que a tradução de Machado foi feita a partir da tradução francesa de A. Gerardin, mas isso não chega a ser um ponto negativo. Essa prática seria considerada quase inaceitável em nossos dias, mas no caso de Machado torna-se irrelevante, pois a genialidade do autor sempre vem à tona, revelando-se soberano e atravessando línguas, épocas e culturas.
Pelo que se lê no texto de Medeiros, apesar de a tradução ser “indireta”, é possível observar no texto um “esforço de dar ritmo ‘e graça e ligeireza' ao texto que subverte mesmo o original”. Não entra em discussão a possibilidade de as características que Medeiros afirma conferirem elegância ao texto de Machado terem sido herdadas de opções do tradutor francês. Nem se discute a postura de Machado, que não se compromete muito com o texto de Dickens e suas características, por mais “pomposas” e “puritanas” que sejam. No primeiro trecho citado aqui, Medeiros diz que o “velho Machado” “traduz simplesmente” determinada passagem, no sentido de deixá-la menos empolada e mais direta. Isso, na concepção do resenhista, deve-se à genialidade de Machado e não a alguma outra contingência mais mundana, como, por exemplo, a falta de espaço no jornal ou a falta de tempo para aprimorar o texto da tradução.
Na mesma página de O Estado de S. Paulo, abaixo do texto de Medeiros, encontramos a resenha de Ubiratan Brasil, que comenta especificamente a experiência do “parceiro” de Machado, o tradutor Ricardo Lísias. Brasil nos conta que Lísias “pesquisou todos os textos produzidos pelo escritor naquela época para descobrir as marcas de estilo presentes no texto machadiano e também as próprias marcas de um trabalho do final do século 19, para que o leitor não sentisse tanto a diferença de registro”, um trabalho que consumiu dois anos. (Brasil, 2002). Fica claro, nessa passagem, que Lísias se esforçou para reproduzir não só um estilo de época, mas principalmente o estilo do tradutor.
Nesse caso, a preocupação do tradutor é tentar imitar o estilo de seu “parceiro”. Dickens não entra em questão. A busca de semelhanças continua e, ao que parece, procurando bastante, sempre se encontra alguma. Em sua pesquisa, Lísias constatou que Machado, logo após abandonar a tradução de Oliver Twist, publicou A mão e a luva que, “apesar das grandes diferenças, apresenta algumas semelhanças com Oliver Twist, especialmente no enredo, como uma rígida estrutura familiar”. (Brasil, 2002). Ora, são inúmeros os romances que descrevem uma “rígida estrutura familiar”, e só isso parece ser muito pouco para determinar uma influência de Dickens sobre a obra de Machado.
Também fez parte do estudo do tradutor buscar marcas de estilo na escrita machadiana:
O estudo permitiu dissecar a forma como Machado escrevia – a posição pronominal, por exemplo, é quase sempre posterior, ou seja, com um grande número de próclises; há também expressões pouco comuns, inclusive para a época, como o “lho” e o “to”; um uso demasiado de expressões no infinitivo e quase raro de gerúndios; uma larga utilização de imperativos e de regências diversas (“pisar o cão” e não “no cão”) e, finalmente, pouca aglutinação de preposições com artigos (“em casa de” e não “na casa de”) (Brasil, 2002).
Em sua introdução à tradução, Lísias esclarece, contudo, que nunca teve “a intenção de ‘imitar'” o texto de Machado. O que ele fez foi aproveitar “os procedimentos utilizados pelo tradutor da primeira metade do livro”. (Lísias, 2002). Como exemplo dessa operação, Lísias conta como procedeu no fechamento da narrativa:
Procurando evitar passagens excessivamente sentimentais, como já o fizera Machado, reduzi os três parágrafos finais do texto original a apenas um que, economicamente, condensasse a questão principal: a felicidade de Oliver e daqueles que o auxiliaram. (Lísias, idem).
Como se pode observar, todo o trabalho gira em torno de Machado de Assis, um tradutor que tem, nos termos de Foucault, um “nome-do-autor” (Foucault, 1979). Esse nome determina o modo de circulação da tradução, que ganha características especiais, entre elas um apagamento do autor do texto em inglês, que vai para o fundo da cena para dar lugar ao proeminente tradutor. O tradutor, por sua vez, ocupando esse lugar de evidência, torna-se intocável: todas as intervenções mais explícitas que ele realizou no texto (redução e “enxugamento” de parágrafos, suavização de cenas muito sentimentais ou violentas) são atribuídas ao seu gênio, ao seu talento ímpar. Todas as opções e escolhas feitas por Machado em sua tradução tornam-se inquestionáveis. O fato de ele ter traduzido a partir de uma outra tradução torna-se detalhe quase irrelevante, todas as suas reduções e simplificações “melhoram” o texto original. E Dickens? Dickens vai para o fundo da cena porque um talentoso jovem brasileiro lhe concedeu o privilégio de sua tradução. Usando seu talento, o jovem Machadinho (que ainda não era o nosso Machado de Assis) temperou com ironia e sarcasmo o insosso e sentimentaloide texto de Dickens. O fato de Machado ter-se tornado, mais tarde, um dos maiores escritores brasileiros, determina a interpretação e recepção de todo texto por ele assinado, independentemente de contingências e restrições mais “mundanas”, como o veículo onde a obra circulou, o tempo disponível para realizar a tradução ou exigências do editor e do público leitor. Afinal de contas, trata-se de um imortal.
Lenita M. R. Esteves é professora do Departamento de Letras Modernas da USP.
Referências Bibliográficas:
Brasil, U. “Estilo machadiano exigiu pesquisa de dois anos”. In: O Estado de S. Paulo, 28/04/2002, p. D10.
Foucault, M. (1979) “What´s an author?”. In: Harari, J. V. (1979) Textual strategies, p. 141-160. Ithaca : Cornell University Press.
Lísias, R. (2002) “Apresentação”. In: Dickens, C. Oliver Twist (tradução de Machado de Assis e Ricardo Lísias). São Paulo: Hedra
Medeiros, J. (2002) “Machado de Assis e a arte de subverter o original”. In: O Estado de S. Paulo, 28/04/2002, p. D10.
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