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Reportagem
A corrente econômica que veio da biologia evolutiva
Por Fábio Reynol
Alessandro Piolli
10/04/2009

O processo de disputa por uma vaga no vestibular, a concorrência entre as empresas e até o surgimento do computador à sua frente podem ser explicados, por analogia, a partir das ideias de um aristocrata inglês nascido há 200 anos. Se, ao embarcar no navio Beagle, o jovem Charles Darwin não imaginava a importância que aquela viagem teria para as ciências biológicas, muito menos poderia prever que suas teorias acabariam caindo nas graças de várias outras áreas do conhecimento. Em pleno século XXI, o evolucionismo de Darwin ainda é alicerce para teorias e trabalhos das ciências econômicas a ponto de alimentar uma das mais fortes correntes de pensamento da economia contemporânea, a evolucionista.

O intercâmbio entre disciplinas não é algo recente. Durante a história da ciência um ramo do conhecimento que despontava costumava importar metodologias e até teorias das disciplinas que o antecederam. Mesmo as inspirações para novas ideias em um campo de estudo já estabelecido poderiam vir de outro bem distinto. Ironicamente, a própria Teoria da Evolução de Darwin recebeu no berço uma influência da economia. Traços da obra Teoria da população, do inglês Thomas Malthus podem ser observados nos trabalhos de Darwin, que admitiu ter lido o conterrâneo. Malthus, que é considerado um dos alicerces das ciências econômicas, ao lado de Adam Smith e Karl Marx, debruçou-se sobre o problema de o aumento da população ser muito maior que o da produção de alimentos. “Já estava ali uma ideia de que nem todas as populações teriam condições de sobreviver”, analisa a economista Maria Beatriz Bonacelli, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As razões pelas quais uns prosperavam enquanto outros pereciam norteariam as pesquisas de Darwin sobre a evolução das espécies.

A economia, no entanto, ainda demoraria para descobrir em Darwin algo de valor para os seus trabalhos. A primeira voz defendendo a biologia como fonte para analogias na área econômica foi a do inglês Alfred Marshall, no fim do século XIX, e não trazia idéias darwinistas. Ele dizia que a economia estava muito mais próxima das ciências biológicas do que da física, numa época em que as ciências exatas eram muito utilizadas como “régua” para as demais cátedras. A física foi a inspiradora da corrente neoclássica da economia que até hoje faz contraponto à linha evolucionista. Marshall chegou a comparar o mercado a uma floresta em que cada empresa seria uma árvore. Assim como na natureza, na qual cada vegetal tem o seu tempo de vida, na economia cada empresa estaria num estágio diferente; por isso, para entender o todo, era preciso um olhar sobre cada indivíduo.

Traços da influência de Darwin iriam aparecer somente em 1942 numa das obras-primas do pensamento econômico. Naquele ano, o austríaco Joseph Schumpeter publicou o seu livro Capitalismo, socialismo e democracia. Mesmo sem jamais citar o nome de Darwin, no capítulo 7 intitulado “A destruição criadora”, o cientista compara a inovação tecnológica à mutação. “Foi uma referência claríssima à teoria de Darwin”, nas palavras da economista Maria da Graça Derengowski, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Schumpeter fundou uma nova escola de pensamento econômico ao dar destaque ao papel da inovação. Desse modo, ele imprimiu uma dinâmica na economia, área que era vista pelos pensadores clássicos como um sistema estático.

Há algumas especulações sobre o motivo de Schumpeter não ter citado Darwin em seu trabalho. “Ainda hoje há um preconceito com o uso de analogias”, opina Derengowski, que presidiu a Sociedade Internacional J. Schumpeter de 2006 a 2008. De qualquer modo, o fato de ideias darwinistas figurarem, ainda que implicitamente, num trabalho lapidar de alguém como Schumpeter chamou a atenção dos economistas. Só que o primeiro a assumir o darwinismo como ferramenta de estudo econômico pagaria um alto preço, a ponto de fazê-lo recuar.

Foi somente em 1950, quase um século após a publicação de A origem das espécies (1859), que Darwin apareceu literalmente num trabalho de economia. No texto "Incerteza, evolução e teoria econômica" publicado no Journal of Political Economy, o norte-americano Armen Alchian usou o modelo darwinista para explicar a economia. “No texto, ele fez comparações utilizando os mecanismos transmissão, mutação e o princípio de seleção natural de Darwin”, conta Derengowski. Todavia, Alchian não encontrou apoio em suas idéias, pelo contrário, sua analogia recebeu críticas tão ácidas da comunidade científica que ele acabou abandonando suas teorias logo depois.

A partir de então, poucos se arriscariam a citar Darwin até a década de 1970 quando alguns trabalhos voltaram a comentar o evolucionismo. Esse reaquecimento do darwinismo econômico culminou com a publicação, em 1982, de um livro escrito a quatro mãos, Uma teoria evolucionária da mudança econômica, dos estadunidenses Sidney Winter e Richard Nelson. A obra trouxe adaptações da biologia evolutiva à economia e tornou-se um marco referencial. “Segundo eles, diferente do que ocorre na biologia, a evolução econômica tem um ritmo bem mais rápido e é passível de saltos que causam mudanças radicais”, assinala Maria Beatriz Bonacelli, da Unicamp. Alguns anos mais tarde, o termo evolucionista, ou evolucionário, se ligaria aos economistas neo-schumpeterianos.

A seleção natural de Darwin resumida no termo “a sobrevivência dos mais adaptados”, seria empregada também no mundo empresarial, no qual as empresas mais bem preparadas sobrevivem. A transmissão, ou herança genética, pode ser associada às normas e regras, explicitadas ou introjetadas, que permitem e guiam o funcionamento da corporação. E a mutação das espécies encontra paralelo nas inovações fomentadas nas empresas que mudam os mercados, os padrões e até o comportamento da sociedade. Não é por acaso que o termo “competição” aparece tanto nos escritos de Darwin como no mundo corporativo em que empresas e profissionais enfrentam rivais diariamente. “A própria palavra ‘economia' carrega em si a ideia de escassez, e a seleção de Darwin é por recursos escassos”, compara Derengowski.

Para explicar como acontece a evolução das espécies na natureza, a seleção natural foi o mecanismo apontado por Darwin como a principal força que fazia com que as espécies evoluíssem, em um processo lento e gradual. De acordo com a teoria darwinista, na situação descrita por Malthus, de tendência à escassez de alimentos, somente os mais adaptados ao meio ambiente conseguiam sobreviver, ou seja, seriam selecionados. E foi justamente esse mecanismo de seleção o adotado pelos economistas evolucionistas para explicar como as firmas com as melhores inovações “sobrevivem”. Na perspectiva dos evolucionistas, “da mesma forma que existe indivíduo e meio ambiente na biologia, existe firma e mercado na economia”, compara Sérgio Robles Reis de Queiroz, do DPCT da Unicamp. Para os evolucionistas, não existem agentes econômicos maximizadores e racionais, como consideram os neoclássicos, mas indivíduos com regras práticas as quais aplicam para sobreviver. “Nesse processo, as firmas acumulam capacidades de sobrevivência no mercado, incorporando sua base genética. Desse ponto de vista não é uma visão darwinista, mas lamarckista”, analisa o pesquisador citando a influência do naturalista francês Jean Baptiste Lamarck, o qual desenvolveu a idéia da aquisição de novas características pelo uso. Muitos especialistas consideram as teses de Lamarck mais influentes na economia evolucionista do que as de Darwin.

Na visão dos evolucionistas, as teorias de Lamarck e de Darwin funcionam como modelos mais adequados para se pensar a economia, do que a física, usada pelos neoclássicos. A ideia de que o sistema econômico tende ao equilíbrio, presente em toda a construção do modelo neoclássico, veio da física. Por isso, para os neoclássicos, os sistemas econômicos são previsíveis, enquanto que para os evolucionistas não há como fazer previsões, pois, assim como na evolução das espécies, na economia não é possível determinar exatamente para onde caminham as mudanças. É essencialmente a imprevisibilidade que faz da biologia a irmã mais próxima da economia. Para Queiroz,é possível entender os processos econômicos e ter uma referência nas ciências naturais da mesma maneira como os neoclássicos usam a física por analogia.

Até hoje, economistas neoclássicos e evolucionistas se dividem por suas teorias inspiradas na física e na biologia, respectivamente. Se a escola neoclássica prega que o indivíduo é racional, calculista e capaz de tomar sempre as decisões mais adequadas, para os evolucionistas, esse indivíduo não tem acesso a todas as informações que o fariam tomar tais decisões. Para os evolucionistas, a inovação, que seria o coração do sistema, é também a causa de seu permanente desequilíbrio, enquanto que, para os neoclássicos, o sistema tenderá sempre ao equilíbrio como um planeta que encontra a sua órbita. No Brasil, a corrente neo-schumpeteriana é maioria. “Há mais economistas neo-schumpeterianos aqui, do que em todos os outros países da América Latina somados”, espanta-se Maria da Graça Derengowski, da UFRG, baseando-se nos dados da Sociedade Internacional J. Schumpeter.

Independente da linha de pensamento, é inegável a influência da teoria de Charles Darwin sobre a maneira como entendemos o mundo, seja no campo da biologia, da sociologia, da psicologia ou da economia. Para Derengowski, isso ocorre porque “uma característica de uma boa ideia é que ela pode ser aplicada a outras áreas do conhecimento”. As ideias do inglês autodidata são prova disso. Elas perduram até hoje e se espalharam por ramos com os quais ele nunca sonhou, ora sendo base para importantes avanços científicos, ora gerando polêmicas e acirradas disputas.