O
setor de pesquisa farmacogenômica ou farmacogenética encontrou impulso
não apenas no que se denominou “era pós-genômica”, mas também nos
recentes e constantes problemas de efeitos colaterais, que têm obrigado
a indústria farmacêutica a retirar remédios do mercado. Pesquisadores
do Brasil e do exterior apontam os ganhos que a indústria farmacêutica
poderá obter com os avanços na área, e que há pouco debate sobre as
questões éticas relacionadas ao tema. Para se valer de algum benefício,
o Brasil também deve fazer investimentos no setor para garantir a
produção de medicamentos para sua população.
Segundo Guilherme Kurtz, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a farmacogenética cria problemas e novos mercados
para a indústria farmacêutica, que sempre trabalhou no atacado,
receitando de forma ampla medicamentos para uma determinada patologia. Com
essa nova área de pesquisa, há um fracionamento do mercado, como
exemplificado pelo medicamento trastuzumab, que atende 20% das mulheres
com câncer. “Apesar disso, pode-se dizer que será um mercado cativo,
porque o medicamento é extraordinariamente eficaz”, diz Kurtz. Quando
questionado sobre o aumento de preços causado pelo possível monopólio
de medicamentos, o pesquisador opina que o preço é ditado pelo mercado
e, em determinados países, pelo governo. “O Brasil tem o poder de vetar
o aumento de preço e o laboratório também tem o direito de não vender
mais”, justifica.
Antonio Carlos Camargo, diretor do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada, do Instituto Butantan, acredita que é
muito pouco provável que drogas com esse perfil cheguem ao Sistema
Único de Saúde (SUS), atribuindo isso ao interesse da indústria
farmacêutica de sempre buscar drogas com uso o mais abrangente
possível. “Porque é assim que se ganha dinheiro e não particularizando
a droga. A não ser para as classes mais abastadas que poderiam se
adequar às exigências da moderna farmacologia”. Camargo também ressalta
que a inexistência de tradição de uma indústria farmacêutica nacional
agrava a situação no Brasil, e pode fazer com que determinados
medicamentos sejam propagandeados para os brasileiros, mesmo tendo sido
formulados para outro público-alvo. “O negro brasileiro, por exemplo,
poderá beneficiar-se daquilo que o negro norte-americano se beneficia,
porque há um esforço da indústria farmacêutica para atingir esse setor,
que é imenso na sociedade norte-americana, o que não ocorre no Brasil.
Mas esse é um benefício muito indireto, ainda mais considerando que
existem diferenças entre o negro brasileiro e o norte-americano”, diz
Camargo. Ainda com relação à produção de
drogas, Kurtz argumenta que o fato de o país não ter uma produção com
base na farmacogenética “não nos deixa atrás de ninguém – diz ele –
pouquíssimos grupos estão fazendo isso e os que existem são da
indústria farmacêutica multinacional”.
Camargo,
por sua vez, defende que se o Brasil produzisse medicamentos próprios,
os estudos na área deveriam receber bastante investimento. “Mas não é
assim que funciona. Os países desenvolvidos que têm muitas indústrias
trabalhando nessa área é que estão fazendo esses medicamentos. No nosso
caso, é importante ressaltar ainda que quando um medicamento for
testado no Brasil, deverá considerar que nossa população é muito
diferente da norte-americana. É necessário verificar se as pessoas
daqui realmente se beneficiam dos mesmos medicamentos”, argumenta.
Por outro lado, Marco Aurélio Romano-Silva, pesquisador de farmacogenética da esquizofrenia, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca
que mesmo sem a produção nacional de novas drogas a partir da
farmacogenômica, é importante o investimento em pesquisas, pois é
necessário conhecer a variabilidade genética da população brasileira.
“Essa é, inclusive, uma forma de poder pressionar quais medicamentos
serão importados. Temos que vislumbrar essa questão, pois a indústria
farmacêutica não está interessada em fazer isso aqui”. Aliás, essa é
uma diferença que o pesquisador aponta entre pesquisa brasileira e a
realizada no exterior. “No exterior a pesquisa na área é realizada por
grandes consórcios entre grandes indústrias farmacêuticas e
instituições do governo. Em geral eles estão procurando polimorfismos na população e padrões de variação em um volume muito grande de pacientes. No Brasil, isso não é feito”, diz ele. De
acordo com a médica geneticista da Faculdade de Ciências Médicas da
Unicamp, Andréa Guerra, o polimorfismo é definido como a ocorrência de
dois ou mais genótipos alternativos em uma população de modo que os
mais raros não possam se manter apenas por mutações recorrentes (ou
seja, deve haver outros mecanismos que os mantenham na população). Na
prática, um locus genético é considerado polimórfico se um ou
mais dos alelos raros tem uma freqüência de pelo menos 1%, o que
significa que os heterozigotos portadores desse alelo ocorrem em uma
freqüência maior que 2%.
Os
pesquisadores das Universidades de Sussex e de Nottinghan (Reino
Unido), Adam Hedgecoe e Paul Martin, enumeram os motivos pelos quais a
indústria farmacêutica investe em pesquisa nessa área. No artigo The drugs don’t work, publicado em junho de 2003, no Social Studies of Science Journal,
os autores afirmam que a indústria farmacêutica vê a possibilidade de
redução de processos judiciais movidos por consumidores de
medicamentos, tendo em vista que a farmacogenética reduziria os efeitos
colaterais.
Hedgecoe
e Martin também prevêem a possibilidade de que companhias que não
empregarem essa tecnologia possam ser processadas por colocar pacientes
em situação de risco. A previsão dos pesquisadores baseia-se em um caso
registrado em 1999, quando uma ação foi movida contra a empresa
SmithKline Beecham (atual GlaxoSmithKline), por causa de reações
adversas a uma vacina de sua fabricação contra a doença de Lyme, causada pela bactéria Borrelia burgdorferi, cuja transmissão se dá pela picada de carrapato.
A vacina reage com um tipo de polimorfismo, presente em aproximadamente
30% da população, e causa artrite auto-imune. A acusação alegou que a
indústria sabia dessa reação, mas comercializou a vacina sem
restrições. Os pesquisadores ainda argumentam que a indústria pode
tirar vantagens de medicamentos vetados por causar efeitos tóxicos em
estudos clínicos, passando a comercializá-los a determinados grupos que
não tenham essa reação.
Outro benefício ressaltado na revista científica Nature
é a otimização de testes clínicos para o desenvolvimento de
medicamentos, que custam milhões de dólares. Em artigo publicado em
2004, o pesquisador de genética da companhia farmacêutica
GlaxoSmithKline, Allen Roses, avalia que a escolha de indivíduos para
os testes clínicos pode se basear na farmacogenética. Ele sugere a
exclusão das pessoas que tendem a não responder ao composto químico nas
fases II e III das pesquisas – na primeira, o objetivo é demonstrar a
segurança e eficácia e, na última, o estudos são ampliados para grandes
e variados grupos de pacientes. Segundo Roses, no artigo Pharmacogenetics and Drug Development, os
testes clínicos podem envolver apenas as pessoas selecionadas pela
farmacogenética, o que os torna mais rápidos e menos caros.
Ética
A farmacogenômica e a farmacogenética trazem dúvidas quanto a procedimentos realizados de forma ética. As questões como a privacidade dos dados,
o consentimento informado e a discriminação a partir de medicamentos
receitados são alguns dos aspectos levantados por Hedgecoe e Martin.
Eles analisaram o discurso sobre a ética relacionada a farmacogenética
na literatura científica.
Os pesquisadores adotaram a base de dados Bioethicsline e também coletaram alguns artigos não indexados no PubMed,
site da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Das 49
publicações de periódicos científicos, apenas 15 focalizavam a
discussão de aspectos éticos e somente um debateu os possíveis
problemas criados pela farmacogenética e o uso de grupos étnicos. O
estudo concluiu que ainda há pouco debate nos artigos sobre bioética e
que quase nenhum trabalho de ciências sociais tem sido feito sobre
problemas éticos, legais e sociais. Segundo os pesquisadores, a
discussão da maioria dos estudos sobre ética é formada, principalmente,
por pesquisadores interessados em criar expectativas comerciais e
científicas.
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