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Reportagem
Indústria pode ganhar mais que pacientes com farmacogenômica
Por Marta Kanashiro e Paula Soyama
10/02/2006
O setor de pesquisa farmacogenômica ou farmacogenética encontrou impulso não apenas no que se denominou “era pós-genômica”, mas também nos recentes e constantes problemas de efeitos colaterais, que têm obrigado a indústria farmacêutica a retirar remédios do mercado. Pesquisadores do Brasil e do exterior apontam os ganhos que a indústria farmacêutica poderá obter com os avanços na área, e que há pouco debate sobre as questões éticas relacionadas ao tema. Para se valer de algum benefício, o Brasil também deve fazer investimentos no setor para garantir a produção de medicamentos para sua população.

Segundo Guilherme Kurtz, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a farmacogenética cria problemas e novos mercados para a indústria farmacêutica, que sempre trabalhou no atacado, receitando de forma ampla medicamentos para uma determinada patologia. Com essa nova área de pesquisa, há um fracionamento do mercado, como exemplificado pelo medicamento trastuzumab, que atende 20% das mulheres com câncer. “Apesar disso, pode-se dizer que será um mercado cativo, porque o medicamento é extraordinariamente eficaz”, diz Kurtz. Quando questionado sobre o aumento de preços causado pelo possível monopólio de medicamentos, o pesquisador opina que o preço é ditado pelo mercado e, em determinados países, pelo governo. “O Brasil tem o poder de vetar o aumento de preço e o laboratório também tem o direito de não vender mais”, justifica.

Antonio Carlos Camargo, diretor do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada, do Instituto Butantan, acredita que é muito pouco provável que drogas com esse perfil cheguem ao Sistema Único de Saúde (SUS), atribuindo isso ao interesse da indústria farmacêutica de sempre buscar drogas com uso o mais abrangente possível. “Porque é assim que se ganha dinheiro e não particularizando a droga. A não ser para as classes mais abastadas que poderiam se adequar às exigências da moderna farmacologia”. Camargo também ressalta que a inexistência de tradição de uma indústria farmacêutica nacional agrava a situação no Brasil, e pode fazer com que determinados medicamentos sejam propagandeados para os brasileiros, mesmo tendo sido formulados para outro público-alvo. “O negro brasileiro, por exemplo, poderá beneficiar-se daquilo que o negro norte-americano se beneficia, porque há um esforço da indústria farmacêutica para atingir esse setor, que é imenso na sociedade norte-americana, o que não ocorre no Brasil. Mas esse é um benefício muito indireto, ainda mais considerando que existem diferenças entre o negro brasileiro e o norte-americano”, diz Camargo. Ainda com relação à produção de drogas, Kurtz argumenta que o fato de o país não ter uma produção com base na farmacogenética “não nos deixa atrás de ninguém – diz ele – pouquíssimos grupos estão fazendo isso e os que existem são da indústria farmacêutica multinacional”.

Camargo, por sua vez, defende que se o Brasil produzisse medicamentos próprios, os estudos na área deveriam receber bastante investimento. “Mas não é assim que funciona. Os países desenvolvidos que têm muitas indústrias trabalhando nessa área é que estão fazendo esses medicamentos. No nosso caso, é importante ressaltar ainda que quando um medicamento for testado no Brasil, deverá considerar que nossa população é muito diferente da norte-americana. É necessário verificar se as pessoas daqui realmente se beneficiam dos mesmos medicamentos”, argumenta.

Por outro lado, Marco Aurélio Romano-Silva, pesquisador de farmacogenética da esquizofrenia, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca que mesmo sem a produção nacional de novas drogas a partir da farmacogenômica, é importante o investimento em pesquisas, pois é necessário conhecer a variabilidade genética da população brasileira. “Essa é, inclusive, uma forma de poder pressionar quais medicamentos serão importados. Temos que vislumbrar essa questão, pois a indústria farmacêutica não está interessada em fazer isso aqui”. Aliás, essa é uma diferença que o pesquisador aponta entre pesquisa brasileira e a realizada no exterior. “No exterior a pesquisa na área é realizada por grandes consórcios entre grandes indústrias farmacêuticas e instituições do governo. Em geral eles estão procurando polimorfismos na população e padrões de variação em um volume muito grande de pacientes. No Brasil, isso não é feito”, diz ele. De acordo com a médica geneticista da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Andréa Guerra, o polimorfismo é definido como a ocorrência de dois ou mais genótipos alternativos em uma população de modo que os mais raros não possam se manter apenas por mutações recorrentes (ou seja, deve haver outros mecanismos que os mantenham na população). Na prática, um locus genético é considerado polimórfico se um ou mais dos alelos raros tem uma freqüência de pelo menos 1%, o que significa que os heterozigotos portadores desse alelo ocorrem em uma freqüência maior que 2%.

Os pesquisadores das Universidades de Sussex e de Nottinghan (Reino Unido), Adam Hedgecoe e Paul Martin, enumeram os motivos pelos quais a indústria farmacêutica investe em pesquisa nessa área. No artigo The drugs don’t work, publicado em junho de 2003, no Social Studies of Science Journal, os autores afirmam que a indústria farmacêutica vê a possibilidade de redução de processos judiciais movidos por consumidores de medicamentos, tendo em vista que a farmacogenética reduziria os efeitos colaterais.

Hedgecoe e Martin também prevêem a possibilidade de que companhias que não empregarem essa tecnologia possam ser processadas por colocar pacientes em situação de risco. A previsão dos pesquisadores baseia-se em um caso registrado em 1999, quando uma ação foi movida contra a empresa SmithKline Beecham (atual GlaxoSmithKline), por causa de reações adversas a uma vacina de sua fabricação contra a doença de Lyme, causada pela bactéria Borrelia burgdorferi, cuja transmissão se dá pela picada de carrapato. A vacina reage com um tipo de polimorfismo, presente em aproximadamente 30% da população, e causa artrite auto-imune. A acusação alegou que a indústria sabia dessa reação, mas comercializou a vacina sem restrições. Os pesquisadores ainda argumentam que a indústria pode tirar vantagens de medicamentos vetados por causar efeitos tóxicos em estudos clínicos, passando a comercializá-los a determinados grupos que não tenham essa reação.

Outro benefício ressaltado na revista científica Nature é a otimização de testes clínicos para o desenvolvimento de medicamentos, que custam milhões de dólares. Em artigo publicado em 2004, o pesquisador de genética da companhia farmacêutica GlaxoSmithKline, Allen Roses, avalia que a escolha de indivíduos para os testes clínicos pode se basear na farmacogenética. Ele sugere a exclusão das pessoas que tendem a não responder ao composto químico nas fases II e III das pesquisas – na primeira, o objetivo é demonstrar a segurança e eficácia e, na última, o estudos são ampliados para grandes e variados grupos de pacientes. Segundo Roses, no artigo Pharmacogenetics and Drug Development, os testes clínicos podem envolver apenas as pessoas selecionadas pela farmacogenética, o que os torna mais rápidos e menos caros.

Ética

A farmacogenômica e a farmacogenética trazem dúvidas quanto a procedimentos realizados de forma ética. As questões como a privacidade dos dados, o consentimento informado e a discriminação a partir de medicamentos receitados são alguns dos aspectos levantados por Hedgecoe e Martin. Eles analisaram o discurso sobre a ética relacionada a farmacogenética na literatura científica.

Os pesquisadores adotaram a base de dados Bioethicsline e também coletaram alguns artigos não indexados no PubMed, site da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Das 49 publicações de periódicos científicos, apenas 15 focalizavam a discussão de aspectos éticos e somente um debateu os possíveis problemas criados pela farmacogenética e o uso de grupos étnicos. O estudo concluiu que ainda há pouco debate nos artigos sobre bioética e que quase nenhum trabalho de ciências sociais tem sido feito sobre problemas éticos, legais e sociais. Segundo os pesquisadores, a discussão da maioria dos estudos sobre ética é formada, principalmente, por pesquisadores interessados em criar expectativas comerciais e científicas.