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Reportagem
Toda história de vida é interessante e merece ser biografada
Por Carolina Medeiros
10/02/2014
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No final de 2013, a polêmica sobre a publicação de biografias não autorizadas ganhou destaque na mídia, e acabou indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Além da questão da privacidade de celebridades (veja reportagem sobre o assunto) , outro debate pode ser levantado a respeito do motivo pelo qual cada vez mais as biografias, tanto de anônimos quanto de famosos, vêm ganhando espaço no mercado literário, superando até mesmo os livros de autoajuda e romances. De acordo com José Carlos Sebe Bom Meihy , professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), esse fenômeno se deve porque, atualmente, não existem mais heróis, santos ou artistas de destaque; para ele, somos todos participantes de um ambiente comum e globalizado.

Isso só comprova que, quando se fala em elevado número de biografias publicadas e lidas, não se faz a distinção entre o artista que está estampando as capas de revistas – uma notória celebridade – e aquele anônimo que se tornou famoso ao contar sua história de vida, e muitas vezes de superação, nas páginas de um livro. Um exemplo é a obra Quarto de despejo - diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de papel, nascida em Sacramento, no interior de Minas Gerais, filha de meeiros, que, apesar da pouca escolaridade, escreveu a sua autobiografia. Na época do lançamento, em uma semana, foram vendidos os 10 mil exemplares da primeira tiragem da obra.

No caso de Quarto de despejo, em particular, para o historiador Meihy, o sucesso da obra vai além da identificação com a história de superação da autora, semelhante à de muitos brasileiros de origem pobre, e se justifica dentro do contexto no qual foi lançado. “O sucesso se deveu a um conjunto de fatores explicáveis naquele contexto, na nascente da contracultura. No período que vai de 1956 a 1960, tivemos um fulgor democrático que combinou vários fatores: a instalação da indústria automobilística; a construção de Brasília; o aparecimento da bossa nova; a vitória da nossa seleção na Suécia em 1958. Nesse conjunto de acontecimentos, o movimento negro ganhou espaço e Carolina se explica nessa efervescência”, afirma o historiador.

Mas há outros fatores, inerentes à época em que as biografias são publicadas, que contribuem para o sucesso dessas obras. A jornalista Adriana Menezes, autora do livro Dalva – que conta a história de uma catadora de papel que se tornou uma empresária de sucesso – defende a ideia de que muitas vezes o perfil do leitor é muito diferente do perfil do biografado, e que é o interesse por entender essa diferença que leva à leitura. “A explicação para haver tanto interesse em ler biografias, no meu ponto de vista, é que existe, por parte do leitor, uma eterna curiosidade de saber até onde pode ir o ser humano, quais os seus limites e qual a sua real capacidade, associado à falta de referências éticas, morais e comportamentais. E, muitas vezes, o leitor busca essas referências nas biografias”, explica a jornalista.

Além de anônimos como Dalva e Carolina ficarem conhecidos com a repercussão do livro sobre suas vidas, personagens históricos relativamente desconhecidos do público também ganham notoriedade quando são biografados. E o alcance dessas histórias pode se tornar ainda maior com as adaptações para o cinema. É o caso de Olga, lançado em 1994 pelo jornalista Fernando Moraes, sobre a vida da militante comunista alemã de origem judaica Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes. Em 2004, quando saiu o filme de Jayme Monjardim com a atriz Camila Morgado no papel de Olga, o livro teve um salto nas vendagens e fechou o ano em sexto lugar na lista dos mais vendidos. Mas nem sempre o cinema alavanca as vendas nas livrarias. A biografia Lula, filho do Brasil, publicado em 1997 pela jornalista Denise Paraná, foi adaptada para o cinema por Fábio Barreto em 2009. Considerada uma das mais caras produções do cinema brasileiro, o filme foi um fracasso de bilheteria.

Os especialistas garantem também que o sucesso das biografias está além do uso de recrusos estílisticos, técnicos e históricos. A chave para o sucesso é o respeito pela memória do biografado, o que acende um ponto muito discutido quando se trata de biografias: a ética. Até que ponto as figuras, famosas ou não, podem ter sua privacidade invadida, os seus segredos expostos em nome de uma publicação. Na tentativa de solucionar essa questão, surgiu a figura do ghost writter, responsável por todo o processo de elaboração, criação e produção de uma biografia, só que não recebe os créditos por isso, os quais vão para as personalidades que contratam o seu serviço.

Inicialmente, não há nada de errado em contratar uma pessoa para escrever sua biografia; mas muitos especialistas acreditam que é preciso tomar cuidado para a obra não ganhar um tom “falso”, como enfatiza Menezes. “Com relação aos ghost writers, eu não vejo uma interferência que coloca em risco a veracidade dos fatos. Eu mesma poderia ter sido uma ghost writer, quando escrevi Dalva. No entanto, nós duas (autora e biografada) e a editora, entendemos que isso comprometeria a credibilidade de sua história, uma vez que os leitores que a conhecem saberiam que ela não teria escrito de próprio punho”, ilustra.

Quando a iniciativa da biografia parte da contratação de um ghost writer pela pessoa que quer contar ao público sua história de vida, a escolha por omitir nomes e informações é feita pelo próprio biografado. A biografia de Monique Evans é um exemplo disso. A ex-modelo contou com uma ghost writer para auxiliá-la nas pesquisas e elaboração do livro sobre sua vida, mas sempre deixou claro, em diversas entrevistas, que a opção por omitir nomes, em determinados trechos da narrativa, foi exclusivamente dela.

Apesar do grande volume de biografias escritas por ghost writters, vale ressaltar que o sucesso da obra não fica restrito apenas ao biografado, que evidentemente ganha ainda mais espaço na mídia caso ele seja famoso, ou se torna uma figura pública no caso de quem era anônimo antes de sua vida virar livro: esse sucesso é estendido aos escritores. Há tempos, muitos se lançam no meio literário publicando biografias de personalidades famosas ou recuperando trajetória de indivíduos esquecidos. Sobre isso, a extinta revista Manchete havia publicado em 1996 uma matéria saudando os “caçadores da história” que “vasculham o passado, lançam best-sellers e traçam um novo retrato do Brasil”. Isso porque, a partir da década de 1990, cresceu o número de biografias escritas por jornalistas, que até hoje são chamados contadores de histórias.

Mas nem todas as histórias de vida precisam ser retratadas em forma de livro, escritas por jornalistas famosos ou historiadores renomados. O Museu da Pessoa de São Paulo criou um projeto no qual as pessoas comuns são convidadas a deixar registradas as suas biografias no site do Museu, e essas podem ser acessadas posteriormente pelos frequentadores da página. Jornalistas, historiadores, ghost wirtters ou pessoas dispostas a contar suas próprias histórias podem despertar o interesse do público. Afinal, toda história de vida merece ser biografada; seja ela curta ou longa, composta de sucesso ou fracassos; toda vida é interessante, e pode, quem sabe, inspirar outras pessoas a escreverem outras biografias.