“Contar e ouvir histórias é fundamental para os seres humanos; parte de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as histórias proporcionavam, e proporcionam, explicações para coisas que parecem, ou podem parecer, misteriosas. De onde veio o mundo? De onde surgiram as criaturas que o habitam? O que acontece com o sol quando ele se põe? Mitos e histórias proporcionam explicações que, mesmo fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade diante da vida e do universo”. O parágrafo acima, retirado do romance autobiográfico O texto, ou – a vida. Uma trajetória literária, publicado em 2007 por Moacyr Scliar (1937-2011), expõe a predileção do escritor pela literatura como meio para explicar a vida. Autor de mais de 70 obras de diferentes gêneros literários – romances, novelas, contos, crônicas, livros de ficção infanto-juvenil e ensaios –, Scliar começou a escrever na adolescência por influência da tradição judaica de contar histórias, com a qual conviveu por ser filho de imigrantes russos. Seu primeiro livro de contos, Histórias de um médico em formação, foi publicado no mesmo ano em que se formou em medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), em 1962. Traçava-se uma linha de influência mútua que iria percorrer toda a trajetória literária – e também científica – na dupla carreira de Scliar: a de escritor, que problematiza a saúde pública, o papel social do médico e a história da própria ciência; e a de médico sanitarista, que traz para a profissão a vocação humanista com o seu exercício de empatia, próprio de quem constrói histórias e personagens literários. Na dissertação Ciência e medicina na obra de Moacyr Scliar, apresentada ao programa de mestrado em literatura brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2001, o jornalista Teodoro Koracakis aponta que Scliar empregou a prática médica como forma de conhecer a realidade, entrando em contato com problemas sociais que, de outra maneira, não teria conhecido. “O médico Scliar, nas suas experiências clínicas, acaba também por conhecer o ser humano despido de seu verniz – à beira da morte e da dor. E isto vai desaguar também na sua literatura – na qual ele reconstruirá o conhecimento obtido através de sua experiência médica”, escreve. Por outro lado, essa interface entre literatura e medicina é mencionada pelo próprio escritor na entrevista concedida pessoalmente ao então pesquisador da Uerj em janeiro de 2000, na qual Scliar associa o ato de escrever como uma fuga para os desafios diários da profissão: “Os médicos fazem parte daquela fração da humanidade que se aventura a desafiar a doença. Ele vai enfrentar a doença no próprio terreno dela e isso exige coragem, paixão, mas cujo resultado nem sempre é de sucesso. Frequentemente, o médico é um angustiado, um ansioso, e a literatura funciona como uma válvula de escape”. O papel heroico do médico na sociedade – aquele que pode livrá-la da doença – foi um dos motivos que o influenciaram a escolher a profissão. Em sua autobiografia, Scliar conta que, na tentativa de vencer o pânico de adoecer, que o abatia desde criança, lia espontaneamente livros sobre medicina e sobre doenças, inclusive romances, como Olhai os lírios do campo, do escritor gaúcho Erico Veríssimo, e A cidadela, do escocês A.J. Cronin. “Ambas as obras denunciavam a mercantilização da medicina e idealizavam o papel do médico como um verdadeiro herói”, afirma. Porém, mais do que ser herói, Moacyr Scliar pretendia cumprir seu papel social como médico. Sendo orador de sua formatura, discursou: “A medicina será verdadeira quando os médicos deixarem de gravitar ao redor de uma reduzida minoria de favorecidos”. Depois de formado, Scliar dedicou-se à saúde pública, ocupando cargos importantes na Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, e também se voltou à carreira acadêmica: no início dos anos de 1970, fez pós-graduação em medicina comunitária em Israel, com bolsa de estudos concedida pela Organização dos Estados Americanos (OEA); e, no final dos anos de 1990, defendeu a tese de doutorado "Da Bíblia à psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica", pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Com essa experiência, trabalhou como docente em medicina preventiva na UFRS – injetando também a sua vocação na área científica como pano de fundo de sua obra literária. Obras em prescrição Dentre suas mais de 70 obras, Moacyr Scliar publicou 22 romances, dos quais se destacam, no campo da literatura médica e da ciência, O ciclo das águas (1975), Doutor miragem (1978), Sonhos tropicais (1992) e A majestade do Xingu (1997) – todos usando recursos literários, ficcionais, para trazer à tona questões ligadas à saúde pública e à ciência. Esse recurso – de problematizar a realidade médica por meio da ficção – também foi aplicado por Scliar em romances infanto-juvenis (segmento para o qual escreveu quase 40 obras), a exemplo de Introdução à prática amorosa (1995) e Aprendendo a amar – e a curar (2003). Trocando o foco narrativo, ora na visão de uma prostituta, Esther, ora na visão de seu filho, Marcos, um sanitarista formado em história natural, Scliar constrói uma narrativa criativa e metafórica na novela O ciclo das águas – obra que costuma ser estudada do ponto de vista histórico, social e da cultura judaica, e não tendo como referência a ciência. É o que explica Teodoro Koracakis, em sua dissertação: “No Ciclo das águas, é abordada a temática das prostitutas de origem judaica que vieram da Europa para o Brasil, no início do século XX. Há vários estudos que abordam essa questão. Mas, há, no livro todo, como pano de fundo, uma discussão sobre ciência, principalmente sobre os seus limites”. Koracakis destaca o microscópio – instrumento bastante utilizado na saúde pública – como metáfora da penetração do personagem em uma realidade que lhe parece invisível: “Marcos é um pesquisador possuidor de um gigantesco microscópio que examina a vida da mãe e o curso das águas para descobrir o sujo e torná-lo limpo, passando a aderir à máscara do pesquisador a máscara do médico – aquele que limpa a ferida, aquele que cura a doença”, escreve. Para ele, o personagem tenta compreender a história de sua mãe, a prostituta, e o motivo pelo qual o córrego, que percorre o bairro, em Porto Alegre, tem águas fétidas. “Os dois objetos se fundem no próprio sujeito e a tentativa de compreensão passa a ter um objetivo comum nos, agora, três casos: tornar limpos os cursos de água, a mãe/prostituta e o próprio filho/pesquisador”, analisa. De acordo com Koracakis, a problematização da medicina e da saúde em uma perspectiva antipositivista, implícita na trama de O ciclo das águas, percorre outros romances de Scliar, como Doutor miragem, também foco de sua investigação. “Este livro, escrito em 1978, está muito marcado pelo final da ditadura militar. Trata-se de uma obra que questiona a medicina, criticando a sua mercantilização e mostrando-a em um cenário de miséria social”, analisa. Mas, para ele, a principal abordagem de Doutor miragem diz respeito aos limites da profissão como contraponto à confiança excessiva que geralmente lhe é dada. Já para Scliar, trata-se de um livro “amargo”, como o classificou na entrevista concedida a Koracakis: “Este é um livro amargo. A verdade é que a experiência da medicina, quando a gente saía da faculdade, sobretudo a medicina pública, é muito chocante. É tudo muito contaminado pela politicagem, pela má fé. Era difícil trabalhar direito. Boa parte desta medicina de atendimento ao pobre e ao trabalhador é um simulacro para enganar as pobres pessoas. E isso me amargurou muito. Quando eu terminava os plantões e fazia um balanço – me perguntando ‘o que eu fiz de bom hoje?’ – era difícil descobrir casos em que eu pude realmente ajudar”. Entre os dois personagens centrais de Doutor miragem estão o médico dr. Felipe, que é filho de imigrantes italianos de classe média alta, e um rapaz muito pobre, o Ramão, que mora no interior do Rio Grande do Sul. Ramão sequestra o médico – e a história de ambos é contada de forma não linear, desde a sua infância até a idade adulta. “As narrativas acabam fazendo um painel da medicina numa situação de miséria dos necessitados e de insuficiência de um atendimento, ao mesmo tempo autoritário e carente, com Felipe personificando o médico, e o que ele representa, e Ramão, o doente miserável”, analisa Koracakis. Já o romance Sonhos tropicais, publicado em 1992 e vencedor do Prêmio Jabuti de literatura, em 1993 – também adaptado ao cinema, em 2002, com o mesmo título e com direção de André Sturm –, aborda a trajetória do médico, cientista, epidemiologista e sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) e sua dedicação em combater doenças como febre amarela e varíola, entre outras moléstias, no Brasil do início do século XX. Trata-se de um romance histórico, encomendado pela Companhia das Letras a Scliar, como parte do projeto da editora em romancear personalidades históricas importantes. Na dissertação apresentada à Fiocruz, "A ciência e o cientista através da janela mágica – estudo de caso com o filme Sonhos tropicais", no programa de mestrado em biociências e saúde, a professora do ensino médio Silvania de Paula Souza dos Santos analisa o processo criativo de Moacyr Scliar de forma a compreender de que maneira ele mesclou ficção com realidade na obra que, posteriormente, foi adaptada para o cinema. Apoiada em entrevista feita com o autor, em novembro de 2006, a pesquisadora destaca que o seu embasamento teórico no assunto, a partir de pesquisas sobre a trajetória de Oswaldo Cruz, foram fundamentais para a releitura histórica do personagem: “Esse arcabouço teórico dá ao texto uma verossimilhança que conquista o leitor logo nas primeiras linhas. Mesclando melancolia e sátira, episódios históricos com situações corriqueiras, textos jornalísticos e propagandas que eram veiculadas no final do século XIX, Scliar cativa o leitor com sua escrita em rede”, escreve. Os universos paralelos, criados pelo autor, segundo ela, são tão ricos quanto a própria história de Oswaldo Cruz. Do ponto de vista da divulgação científica em sala de aula, Silvania Santos destaca que o filme adaptado da obra de Scliar tem bastante potencial em captar o interesse dos estudantes por assuntos da ciência e da medicina: “Quando eu falo para os meus alunos, com entusiasmo, sobre a Revolta da Vacina, percebo que eles ficam muito mais interessados do que quando, por exemplo, eu desenho um quadro comparativo entre os processos de imunização passiva e ativa. O filme de André Sturm tem muitas camadas para que o professor explore não apenas com seus alunos, mas também com seus pares, o fazer ciência no Brasil do século XIX, o trafico humano para exploração sexual e a comunicação dentro do trabalho de saneamento básico”, enumera. Essa também é a percepção do próprio autor quando perguntado por Santos sobre como educadores poderiam despertar o interesse do jovem pela ciência, a partir de sua obra: “Livros e filmes sempre motivaram muitos jovens. Na minha geração, não foram poucos os estudantes que escolheram medicina motivados por obras como Olhai os lírios no campo, de Erico Veríssimo. Mas meu objetivo, em Sonhos tropicais, não foi idealizar a figura de Oswaldo Cruz e sim tratar de entendê-la, de mostrar que o cientista é um ser humano, com as grandezas e as falhas do ser humano”, finaliza. Scliar também escreveu ensaios sobre ciência e saúde pública com o objetivo de divulgar essas áreas do conhecimento. Em outra via, empregou a sua experiência literária, recheada de vários temas, para escrever obras de não-ficção sobre temas como a formação do médico, sobre a história da saúde pública, sobre a história da medicina na literatura, entre outros temas, mostrando sua preocupação com a interface entre essas duas linguagens: a científica e a literária. Mas essa sua faceta – de autor de não-ficção – já é outra história.
|