Os sinais da televisão estão sendo digitalizados. O mundo da produção e
da transmissão de informações para o meio de comunicação mais popular
no Brasil - presente em mais de 90% dos domicílios do país - está
migrando do mundo analógico para o mundo dos bits.
Na prática, a digitalização, para além da melhoria da qualidade da
imagem e do som que pode trazer, é um grande mar de outras
potencialidades. Potencialidades que não foram trazidas a público
durante o processo de tomada de decisão acerca do padrão de TV Digital
adotado pelo Brasil e que podem ser descartadas se as opções políticas
em torno dessa questão não forem tomadas sob o prisma do interesse
público.
Com
a chegada da TV Digital, o espectro de freqüências - espaço por onde
circulam os sinais da radiodifusão, que é um bem público e finito -
poderia ser dividido de forma mais democrática e contemplando novos
sujeitos políticos e produtores de comunicação. Esta possibilidade
dependia não só da vontade política de que esse espaço fosse
democratizado, mas - entre outras coisas - da capacidade de compressão
do padrão escolhido.
Hoje, áudio e vídeo estão abrigados em 6 MHz, aquilo que hoje
conhecemos por um "canal". Com a digitalização, este canal deixa de ser
sinônimo de programação, e com a capacidade de compressão de sinais da
TV Digital, poderíamos ter até oito programações em formato padrão (standard definition) ou duas em alta definição, em um único canal.
Esta opção teria algumas implicações e está correlacionada com fatores
como a inversão do paradigma de que o concessionário da TV é o dono da
TV. Ao concessionário é oferecida uma outorga para que ele preste um
serviço que é de transmitir áudio e vídeo. Este serviço - com os sinais
digitalizados - ocupa apenas 1/8 do espectro de 6MHz. Ou seja, seria
preciso menos espaço para oferecer o mesmo serviço.
Para
ocupar esse espaço que "sobra" com a digitalização, e à luz do que diz
a Constituição, o espectro deveria ser quebrado, democratizado e assim
abriria espaço para a entrada em cena de um sistema público de
comunicação, com emissoras públicas, geridas por instâncias públicas e
centrais públicas de mídia. Seria possível, por exemplo, garantir a ida
dos canais estatais para a TV aberta, pois eles estão escondidos na TV
a cabo e é uma contradição que a população tenha que pagar para ter
acesso a canais cujo objetivo é oferecer uma maior transparência na
interlocução dos cidadãos e cidadãs com o poder público. Sabemos que
apenas abrir espaço é insuficiente, mas este certamente é um dos
caminhos possíveis de uma política de incentivo à produção.
Em relação à questão industrial, o discurso corrente foi de que o Brasil poderia implantar uma foundry (fábrica
de chips ou semicondutores). A instalação destas fábricas custa alguns
bilhões de dólares e sua produção, para atingir a escala necessária, é
globalizada. O que significa que a produção de uma foundry
brasileira teria que envolver todo um investimento em logística que lhe
permitisse exportar fácil e rapidamente para vários países do mundo.
Em vez de discutir o modelo de serviços para a nova a tecnologia, o
governo brasileiro centrou a pauta nas pretensas contrapartidas
econômicas e afirmou que o aspecto mais importante da TV Digital é o
estímulo ao desenvolvimento industrial. Esqueceu que a introdução da TV
Digital poderia representar uma janela de oportunidades para o
desenvolvimento da ciência e tecnologia nacionais.
Se o Brasil optasse pelo desenvolvimento interno dos semicondutores e
de softwares, componentes centrais da TV Digital, os reflexos seriam
sentidos em vários outros setores da economia, a exemplo da indústria
aeroespacial, da petrolífera e da automobilística.
Isso
se dá, porque nos dias de hoje, o mais importante é quem detém a
tecnologia e não quem a fabrica. Não detê-la significa que, em vez de
termos autonomia, teremos que pedir "por favor" para alterá-la sempre
que precisarmos adaptá-la à realidade brasileira, por exemplo. Ou seja:
vamos continuar transferindo riqueza para fora, pagando royalties, quando poderíamos abdicar dos royalties
e optar por uma tecnologia aberta ou simplesmente garantir uma
tecnologia nacional usando a pesquisa nacional (desenvolvida com
recursos públicos).
Esses
mitos, na verdade, foram criados com uma série de intencionalidades,
entre elas, justamente a de atropelar essas possibilidades democráticas
que o processo poderia introduzir na política nacional.
As ilegalidades do decreto
O
decreto presidencial que instituiu o padrão japonês como aquele a ser
adotado pelo país soterrou essas possibilidades. Simplesmente deu aos
atuais concessionários de televisão os 6MHz e usou um termo que não
existe na legislação que é "consignação".
Ao
"emprestar" os 6MHz no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, nem
os quatro novos canais (para o poder público), que o próprio decreto
estabelece, vão caber no espectro.
Além
disso, o empréstimo é ilegal, visto que parte do novo serviço a ser
prestado não é serviço espelho do anterior (somente de difusão de áudio
e vídeo), porque permite serviços de interatividade. Isto posto, é
possível concluir que seria preciso uma nova outorga para esse novo
serviço, o que não aconteceu, porque uma nova outorga teria que passar
necessariamente pelo Congresso Nacional.
Daqui
para frente, o que pode acontecer é a televisão virar um grande
supermercado. Boa parte das emissoras não vai ter condições de fazer
mais de uma programação, alegando possivelmente uma diminuição ou
divisão do bolo publicitário. A interatividade, que é outra
questão-chave, corre o risco, portanto, de ser reduzida e ficar
acessível somente para quem tem possibilidade financeira de bancar esse
novo serviço, ou seja: os mesmos que já têm acesso à internet.
Mantém-se o corte econômico da TV atual, desperdiçando o potencial de
inclusão digital e de oferta de serviços públicos que a digitalização
poderia trazer.
Outra
questão importante e que tem a ver com um recorte econômico é o custo
do canal de retorno. O envio da informação "interativa" (do público
para a emissora ou prestadora do serviço) pode ser, por exemplo, via
cabo, pelo ar, telefone. Se não houver uma política clara para o canal
de retorno, ele só vai estar disponível igualmente para quem pode pagar
um cabo ou uma banda larga.
A vez da produção independente e regional
O
tratamento dado ao tema da TV Digital desviou a discussão do ponto
principal e que continua em disputa, mesmo depois da decisão tomada
pelo padrão japonês: o conteúdo que será transmitido pela nova
plataforma de comunicação.
No processo de digitalização, importa, sobretudo, o que a televisão vai
mostrar. De um lado - por necessariamente induzir uma reconfiguração
das regras da radiodifusão - a TV Digital permite uma revisão
qualitativa do conteúdo, sua linguagem e formato. De outro, a
tecnologia possibilita uma ampliação diversificada e desconcentrada da
produção audiovisual.
O
que mais interessa é saber se a nova tecnologia permitirá maiores
opções de escolha de programas gratuitos, se a diversidade cultural
estará acessível para todos. Exatamente por isso, a TV Digital
brasileira precisa mirar a questão do conteúdo audiovisual e do modelo
de negócios associado à veiculação deste conteúdo. Boa parte do
restante é acessório dessa questão primordial.
As reflexões apresentadas se justificam pelas possibilidades trazidas
pela nova tecnologia. Com a TV Digital, é possível multiplicar o número
de canais, o que pode garantir espaço na televisão aberta para novos
programadores e produtores de conteúdo audiovisual. Do ponto de vista
econômico, esta abertura pode ser o salto para um setor com grande
potencialidade.
A
pujança do setor audiovisual na economia dos países desenvolvidos é
sintoma de como o debate sobre a digitalização no Brasil está sendo mal
conduzido. Nos EUA, por exemplo, o setor econômico mais importante é
justamente a economia da cultura e do audiovisual. Por isso,
simplesmente discutir o padrão tecnológico a ser adotado pelo Brasil, é
desperdiçar a oportunidade de promover o desenvolvimento daquilo que é
mais importante e que pode gerar mais empregos qualificados em médio
prazo.
As
definições acerca do sistema a ser adotado no Brasil não tocaram no
modelo de exploração da televisão aberta, e todo este potencial pode
ser desperdiçado e o Brasil continuará refém de uma programação
homogeneizada, baseada em material importado e produzido exclusivamente
nas próprias emissoras.
É importante lembrar que, desde que existem, as emissoras não dão
espaço nem para 5% do que o país produz. No ano passado, o Brasil
exibiu na TV somente um dos 45 filmes produzidos no país. O país ainda
possui outra distorção: a maioria das emissoras, em vez de comprar
produções independentes, acaba vendendo espaço na grade de programação
para pastores evangélicos e promotores de venda.
Diversificar para desenvolver
Para
os movimentos que lutam pela democratização das comunicações, a saída é
apostar na veiculação dessa produção, incentivando a fruição dos bens
culturais por toda a população e, conseqüentemente, o desenvolvimento
do setor audiovisual no país. O dinamismo dessa indústria, com geração
de mais e melhores empregos, depende da criação de novos instrumentos
legais para o setor, que contemplem preceitos constitucionais como o
estímulo à programação regional e à veiculação da produção independente
brasileira nas emissoras públicas e comerciais.
A
opção apresentada não é nova, e a resistência a ela, também não. Desde
1991, tramita no Congresso um projeto de lei (PL 59/2003) que obriga as
emissoras a veicularem percentuais variáveis de programação
regionalizada, devendo uma parte dela ser independente. A proposta
segue congelada no Senado a pedido das emissoras, que afirmam não haver
alternativa ao modelo de produção concentrada nas cabeças-de-rede.
Não contentes em não abrir parte do espaço de sua concessão, os
radiodifusores ainda tentam impedir que os novos canais que serão
abertos com a TV Digital cumpram esse papel. Um dos argumentos é que
não há programação em quantidade e qualidade para ocupar esse espaço.
Mesmo contra a lógica de mercado, sem incentivo nem apoio (afinal, como
investir sabendo que não há como escoar a produção?) a produção
descentralizada cresce, sendo o caminho mais curto para desenvolver o
setor audiovisual brasileiro. As emissoras de TV, em sua polarização
com as companhias de telecomunicações, tentam nos fazer crer que a
defesa de seus interesses é a defesa do interesse nacional. Mas ao
manter um mercado fechado e com essas enormes barreiras de entrada, o
Brasil sufoca a sua própria cultura.
Em
jogo estão duas formas de ver o que a TV deveria transmitir. De um
lado, o modelo baseado nas emissoras comerciais defende que não haja
ampliação de programações e que os canais apenas melhorem sua qualidade
de imagem e som. De outro, embora não uniformemente, acadêmicos,
gestores públicos e atores da sociedade civil defendem o aproveitamento
da TV Digital para democratizar o concentrado cenário da mídia
brasileira e o cumprimento das finalidades educativas e culturais
presentes na Constituição Federal.
Michelle Prazeres é integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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