I. A história é conhecida de todos. Em setembro de 2006, a modelo e apresentadora de televisão Daniella Cicarelli foi flagrada em momentos íntimos ao lado de seu namorado à época, enquanto desfrutavam férias em uma praia no sul da Espanha. As imagens captadas em vídeo por um paparazzo espanhol foram divulgadas pela internet, o que acarretou uma demanda judicial por parte das vítimas com pedido de retirada do vídeo dos websites administrados pelas empresas rés (Google, Organizações Globo e IG), além de pedido de indenização pelos danos causados.
Após perderem em primeiro grau, o recurso apresentado ao Tribunal de Justiça de São Paulo acabou por resultar no bloqueio não apenas do malfadado vídeo, mas de todo o conteúdo do Youtube, em razão da polêmica decisão do desembargador Ênio Santarelli Zuliani. Mais do que apenas impedir o acesso de milhões de usuários ao website americano (já que o bloqueio judicial durou poucos dias), a decisão pôs no centro do debate uma questão essencial na análise jurídica das relações que se travam pela internet: quem é responsável pelo conteúdo inserido na rede pelos usuários?
Após o surgimento da chamada Web 2.0 (caracterizada pelas redes sociais, pelas plataformas wiki e pelo conteúdo colaborativo), as relações na rede se tornaram muito mais complexas. Se antes era razoavelmente simples identificar a origem de um conteúdo e o responsável pela decisão de torná-lo disponível (seria, por exemplo, nos portais jornalísticos, um de seus editores), com a descentralização do poder de postagem (em um blog ou em uma rede social qualquer pessoa pode publicar o que quiser, sem prévia autorização), um novo sistema precisou ser pensado. Duas eram as questões mais relevantes a serem respondidas: quem seria responsabilizado no caso de conteúdo ilegal publicado e quais os meios para remover esse conteúdo da internet.
II. Após o caso Daniella Cicarelli, passou-se a discutir um marco legal de natureza civil para a internet brasileira, em contraposição a diversas iniciativas de criminalização de condutas na rede, sendo a mais notável o PL 84/99, de autoria do então senador Eduardo Azeredo.
Surgiu assim o primeiro esboço do que veio a ser chamado de Marco Civil.
Com relação ao sistema de responsabilidade civil, sua minuta inicial, que ficou disponível para consulta pública em meados de 2010, previa a notificação do provedor para retirada de conteúdo gerado por terceiro (conhecida também por notice and takedown). Em síntese, qualquer pessoa que julgasse ter tido direito infringido por publicação na internet deveria notificar o website onde o conteúdo infrator se encontrava, de modo que o gestor do website tomasse a medida julgada mais conveniente: retirar o conteúdo, mantê-lo, ou notificar o terceiro que o publicou para, sendo o caso, transferir a ele a responsabilidade.
A prática existe em outros países e tem como principal vantagem a celeridade com que os conteúdos alegadamente violadores de direitos são removidos. Previa o texto original da consulta pública:
Art. 20: O provedor de serviço de internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se for notificado pelo ofendido e não tomar as providências para, no âmbito de seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Contudo, o texto sofreu forte pressão da sociedade civil, que alegava a possibilidade de, diante do sistema de notice and takedown, haver uma transferência do poder de decisão – típico do poder judiciário – para os órgãos de administração dos websites. Na prática, caberia ao gestor do site receber a demanda, compreendê-la e julgá-la. Seria o moderador do fórum, o articulista do blog e o titular da conta que, em última instância, decidiria se a publicação contestada por alguém violava direitos de personalidade, atentava contra a honra de alguém ou descumpria algum mandamento constitucional.
O que se alegava, ainda, é que diante de tão grande responsabilidade, o mais prático seria simplesmente retirar o conteúdo postado por terceiro do website sob sua administração apenas para minimizar os riscos e se precaver diante de possível atribuição de responsabilidade. Essa prática usurparia do poder judiciário a voz da legalidade e consistiria, em última análise, uma porta de entrada para a censura.
Foi assim que se modificou o texto da proposta ainda sob consulta de modo que o texto original do PL 2.126 de 2011 foi publicado com a seguinte redação:
Art. 14: O provedor de conexão à internet não será responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 15: Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
P. único: A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
Apesar de ter prevalecido o entendimento de que apenas por ordem judicial se deveria exigir a remoção de conteúdo, é natural que, no debate democrático, houvesse ainda quem defendesse a orientação anterior. Afinal, argumentavam, muitas vezes a celeridade demandada para a retirada de um conteúdo ilícito da internet é incompatível com a muitas vezes morosa apreciação pelo poder judiciário.
III. A Lei 12.985/14, que aprovou o texto do Marco Civil, manteve a determinação de que somente mediante ordem judicial será possível a remoção de conteúdo da internet. A regra, segundo o art. 18 da lei, é de que o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Contudo, prevê o art. 19 que, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário .
O art. 19 faz uma ressalva interessante em seu parágrafo segundo. Ao mesmo tempo em que o Marco Civil estava sendo discutido no Congresso Nacional, a lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98, ou apenas "LDA") passava por uma consulta pública semelhante, que resultou em um anteprojeto de lei ainda não levado à apreciação do poder legislativo.
Como a discussão de violação de direitos autorais no sistema de responsabilização criado pelo Marco Civil tornaria seu debate ainda mais complexo (e mais difícil sua aprovação), preferiu-se criar uma exceção à regra, de modo que a aplicação do disposto no art. 19 para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica. Ou seja, remete-se a discussão da responsabilidade sobre violação de direitos autorais para lei própria. Contudo, a lei assegura, desde logo, que a previsão legal, quando consumada, deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5 da Constituição Federal.
De modo a privilegiar a boa-fé nas relações e a transparência das decisões judiciais, o art. 20 da Lei 12.965/14 prevê que sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. Assim, cria-se um dever de informar, por parte do administrador do website alvo da determinação judicial, de comunicar os motivos da remoção ao terceiro que teve seu conteúdo removido.
Além disso, quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, em determinados casos o website deverá substituir esse conteúdo pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização. Dessa forma, dá-se transparência aos usuários do website, que terão informações acerca da remoção do conteúdo.
Finalmente, prevê a Lei 12.965/14 um sistema de responsabilização especial, que não constava das versões iniciais do projeto. Entendendo que alguns casos são mais graves do que outros, o legislador optou por dar tratamento diferenciado quando o material ilegalmente tornado disponível diz respeito a cenas de nudez ou de atos sexuais. Muitas vezes esses atos constituem o que se convencionou chamar "revenge porn" ou "pornografia de vingança", quando após o fim de um relacionamento amoroso uma das partes divulga na internet fotos e vídeos de natureza íntima, que não tinham essa destinação no momento em que foram captados.
Uma vez que nesse caso a conduta poderia causar danos irreparáveis muito rapidamente, com extensão imprevisível, o legislador abriu mão da segurança jurídica decorrente das ordens judiciais para privilegiar a celeridade. Por isso, o art. 21 da lei conta com a seguinte redação.
Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
IV. A leitura acima do sistema de responsabilidade civil na Lei 12.965/14 é necessariamente incompleta. Uma vez que o Marco Civil foi concebido como uma verdadeira carta de princípios, há no corpo da própria lei uma série de direitos, garantias e definições que deverão ser levados em conta pelo poder judiciário na análise da responsabilidade pelo conteúdo disponível na rede.
Partilhando com o Código Civil de 2002 e outros importantes diplomas legais uma estrutura aberta, flexível, pautada em princípios, o Marco Civil aprovado é também um voto de confiança no poder judiciário, que estará encarregado de dar efetividade a uma lei que colocou o Brasil na liderança mundial do debate da internet.
Com a entrada em vigor da lei, em 60 dias contados da sua publicação, esperamos ter uma internet mais livre e mais segura capaz de promover os valores constitucionais e assegurar direitos e deveres, garantindo a liberdade de expressão sem permitir abusos.
Sérgio Branco é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro e coordenador adjunto do curso de direito do Ibmec.
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