O que é um monstro? Como reconhecê-lo? Onde ele vive? E por que achamos que devemos temê-lo (se é que devemos)?
Essas são questões curiosas cujas respostas, assim como o próprio conceito de monstro, sempre são dependentes do período histórico e da cultura que as formula. Cada cultura cria seus monstros. E cada monstro só pode nascer, crescer e gerar descendentes dentro de uma cultura que o alimente e sustente, seja com carinho e glória, seja com ódio e medo, mas sempre lhe dando atenção.
Esses seres incríveis conhecidos por monstros são, por excelência, a marca explícita de algo fora dos pré-supostos de ordem, do “natural” ou, no mínimo, do conhecido. Constantemente, a monstruosidade é entendida como uma transgressão das leis estabelecidas, visando através de sua presença, inspirar temores e dúvidas ou punir contra infrações.
O termo monstro não possui uma origem muito clara. O que se sabe com certeza é que sua origem é latina, podendo vir tanto de monstra que significa “mostrar, apresentar”, quanto de monstrum, com significado de “aquele que revela, aquele que adverte”, ou mesmo de monstrare que possui a idéia de “ ensinar um comportamento, prescrever a via a seguir”.
O importante é que “monstro” é aquele que “mostra” algo: uma revelação divina, a ira de Deus, as infinitas e misteriosas possibilidades da natureza ou aquilo que o homem pode vir a ser. É, portanto, a manifestação de algo fora do comum ou esperado. Representa uma alteração maldita ou benfazeja das regras conhecidas. Mas não é apenas o terror que a figura monstruosa provoca. É também fascínio, encanto, dúvida, fonte de curiosidade e desejo.
Por isso, desde a antiguidade até pelo menos o século XVI, os monstros no Ocidente também eram classificados entre as “maravilhas” ou “prodígios” do mundo e podiam evocar tanto o medo quanto a risada através de suas formas exageradas, assustadoras ou ridículas. O monstro era então a imagem encarnada de um poder sempre além do entendimento dos homens. E como algo que “mostra” ou “revela”, o monstro, ou maravilha, se identificava pelo corpo. Independente de ser um sábio (como o centauro Quíron), ou algo terrível e perigoso (como a Medusa), era na estrutura física que se apresentava a distinção entre “homens” e “monstros”, não no caráter destes.
É somente na baixa Idade Média, com a associação do conceito de monstro com a figura do demônio, que o primeiro passa a ser entendido apenas como a encarnação de algo essencialmente destrutivo, perdendo qualquer outra face que não a da malignidade – mas mantendo ainda na corporeidade a medida de sua classificação “monstruosa”.
Por isso, a partir desse período, com a dominação da ideologia cristã na Europa, a estranheza do “fantástico” vai ser substituída em grande parte pelo temor do maligno. O demônio será de agora em diante a grande fonte geradora de monstros ainda reconhecidos não por atitudes ou intenções, mas pelo físico. Quanto mais esse período chega ao fim, maior é a associação entre o mal e o monstro. Dessa forma, tanto figuras míticas quanto pessoas com corpos distintos, consideradas “deformadas” ou “aleijadas” comungam da idéia de “monstro”, “maravilha” e, cada vez mais, de “periculosidade maligna”.
Culminando este processo, surge a caça às bruxas no século XVI, na qual a Igreja vai identificar o ser delinqüente, satânico e anormal na figura da mulher, preferencialmente a feiticeira, o corpo estranho por excelência em uma cultura fundamentalmente organizada em torno de valores inventados como “masculinos”. Não por acaso, a chamada “caça às bruxas” foi às bruxas, não aos bruxos.
As apresentações de estranhezas humanas já são um grande sucesso na Europa desde o Renascimento, mas é no século XIX, na América do Norte, que tais eventos vão alcançar o auge de sua “profissionalização”. Com o sucesso causado por esses “fenômenos”, surge toda uma cultura de espetacularização do estranho e anormal como um negócio extremamente lucrativo, que vai estar na raiz da nascente cultura de massas. Nascem assim os freak shows, espetáculos em que são apresentados para apreciação pública todo o tipo de coisa estranha, esquisita ou bizarra. O grande sucesso desses eventos se deve às chamadas “anomalias” e “deformidades” humanas. Os mais variados e distintos físicos expõem-se à admiração como verdadeiros monstros e prodígios da natureza, e com isso ganham a vida, fazem carreira e alguns poucos até acumulam fortunas.
Nesse mesmo século, em 1832, o zoologista francês Geoffray Saint-Hilaire cria a “teratologia”, a ciência que estuda as deformidades do corpo. Para se diferenciar dos tratados sobre monstros e prodígios de até então, que misturavam as explicações orgânicas com as mágicas e espirituais, o autor abandona a raiz latina e deriva o nome desse novo ramo da medicina do grego terato, significando ainda “monstruosidade, anomalia”, e originado de terás, “o sinal enviado pelos deuses, uma coisa monstruosa”. Cria-se uma outra nomenclatura, mas seu significado continua o mesmo: o deformado físico é um monstro. A medicina acaba colaborando para a manutenção do caráter de alteridade e estranheza da pessoa de corpo “anômalo”. Os antigos monstros e bufões tornam-se agora erros da natureza; a maravilha corporal é entendida como doença e o medo que antes causavam passa a inspirar pena.
Com o aumento do processo de “desencantamento do mundo” e de tecnologização da existência, a concepção de monstro teve obrigatoriamente de migrar, no século XIX, do corpo para a mente. Já que na crença científica o mundo exterior não traz mais “maravilhas”, apenas aleijões, restou ao homem moderno procurar os encantos e horrores do mundo fantástico dentro de si mesmo. Surge então uma figura que vai assombrar o imaginário social e desestabilizar os padrões normativos até os dias de hoje: o indivíduo anormal, periculoso por si mesmo, pois, justamente, questiona e não se enquadra nas medidas “científicas” de “normalidade”. O anormal, nas palavras de Michel Foucault, “é um monstro cotidiano, um monstro banalizado ”. Mas o medo e o ódio que esta figura vai herdar continuam os mesmos.
Paulatinamente, as ditas “aberrações” orgânicas vão decrescendo no gosto contemporâneo, motivadas principalmente pelo discurso científico que as compreende como doentes que devem ser tratados, não exibidos como mercadorias exóticas, dando lugar aos “desvios” psíquicos. As deformidades que passam a impressionar o público agora vêm da mente grotesca: são os assassinos psicopatas, os masoquistas, os maníacos, e toda a enorme variedade de estranhezas psíquicas.
É nesse contexto que a teratologia proclama que os antigos monstros ou os atuais freaks não passam de doentes, de erros da natureza frente a uma norma sadia, e as nascentes ciências da psique exploram seus “degenerados” e “anormais”, enquanto a criminologia estigmatiza a aparência do criminoso e da prostituta “natos”. Da mesma forma, no campo dos estudos sobre sexualidade, aparecem os conceitos de “perversões” ou “perversidades” sexuais. Tais “problemas” são encarnados pelos recém criados freaks sexuais: a lésbica, o homossexual, o masoquista, a ninfomaníaca, o sádico, o zoófilo.
Assim, na virada do século XIX para o XX, junto às apresentações do cinematógrafo, demonstrações de mesmerismo, de acrobacias e mágicas, a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise ganham relevância social graças ao seu próprio “circo dos horrores”. Enquanto os freaks shows apresentam seus anormais como a mulher barbada, o homem elefante, a família lobo ou o menino crocodilo, as ciências da psique constroem e apresentam tanto às conferências médicas quanto ao imaginário ocidental, a criança masturbadora, a mulher histérica, o homem neurótico, a família degenerada e, claro, os perversos sexuais. E entre todas essas novas “aberrações”, a mulher e seu corpo continuam sendo vistos com estranheza, medo e sendo alvos de uma severa desconfiança. Assim nascem os interiorizados monstros modernos.
Ora, passadas todas as revoluções culturais da metade do século XX, incluindo a “sexual”, conquistados novos espaços sociais para as ditas “minorias” tais como negros, homossexuais e mulheres, o debate sobre os monstros não se concluiu. Ao contrário, em consonância com o refluxo sociocultural conservador a partir dos anos 80, neste início de século XXI tal discussão adquiriu novo fôlego.
Assim, se hoje não enxergamos mais tantos problemas e receios no corpo sexuado da mulher, talvez seja porque transferimos tais medos para a questão do gênero feminino. A antiqüíssima “monstruosidade” feminina hoje parece estar muito mais encarnada na pessoa das travestis, transexuais e outros tantos transgêneros, que assustam e incomodam as bases conceituais sobre o que é ser homem e/ ou mulher, gerando desde a patologização científica à agressão social cotidiana e rotineira que muitas dessas pessoas vivem.
Também a figura do monstro político retorna com toda sua força atávica na idéia dos “terroristas” – arbitrariamente identificados e muitas vezes juridicamente abandonados, quando não rapidamente eliminados – sejam eles quem forem e qual a definição de “terrorismo” que se queira usar. No sexo ou na política, o monstro continua vivendo nos limites. Nos limites do gênero, nos limites das “leis da guerra”, nos limites do flexível conceito de humano.
Nosso ódio historicamente construído pelo monstro, este “grande Outro”, deve ser questionado em suas raízes e não apenas em seus efeitos. E talvez percebamos, perplexos, que o preço para se destruir um monstro é nos tornarmos monstros tão ou mais terríveis do que aquele que queríamos eliminar. Monstros? Somos nós!
Jorge Leite Júnior é mestre em antropologia pela PUC-SP e doutorando nesta área por esta mesma universidade.
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