Entra governo, sai governo, e a questão da reforma tributária
no Brasil permanece interminável. Os debates são intensos, o processo longo, e
os resultados, nem sempre efetivos. Ainda que a necessidade de uma revisão geral no sistema tributário brasileiro
seja reconhecida por praticamente todos os segmentos da sociedade, a
tramitação no Congresso Nacional e as discussões sobre elas, no entanto, não
permitem vislumbrar no horizonte um consenso para sua aprovação.
Isso porque as questões que envolvem o debate são complexas.
Diversos interesses estão em jogo e, muitas vezes, são radicalmente opostos. Entre
eles, a eterna vontade de cidadãos e empresas de pagar o mínimo possível de
impostos e de ver o retorno disso em serviços públicos de qualidade e, ao mesmo
tempo, a também eterna necessidade do Estado de arrecadar impostos para manter
a máquina pública funcionando. Além disso, há a disputa em relação à carga
tributária que cada um dos setores da sociedade deverá pagar e a disputa entre
as diferentes esferas de governo que, independentemente de serem administradas
por partidos afins ou ideologicamente adversários, não querem perder a sua
fatia na arrecadação.
“Toda a renda arrecadada por meio dos impostos será dividida
entre as esferas federal, estadual e municipal, e qualquer mudança no sistema
de tributação afeta a União, os estados e os municípios, e é por isso que
existem tantos interesses em
jogo. Somados aos embates entre cidadão e Estado – um
querendo pagar menos, o outro, querendo arrecadar mais –, e a disputa pela
verba entre a União, os governos estaduais e os governos municipais, você tem
ainda os embates trazidos pelos setores bancário, industrial, de serviços e de
mineração, por exemplo, que travam uma grande disputa em relação à diminuição
da carga tributária para seus produtos e serviços. São vários os embates
envolvidos”, explica Francisco Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
“Sem alterações profundas no gasto público, que levem à sua
redução, o debate sobre reforma tributária será sempre muito difícil, tendendo
a modificações muito marginais. A menos que o Brasil ingressasse numa fase de
crescimento econômico muito acelerado por um longo período (mais de 5% ao ano),
o que, naturalmente, tornaria todo o debate mais fácil, porque a receita
cresceria naturalmente, sendo mais facilmente aceitável uma carga tributária
menor (em relação ao PIB). Nesse caso, abrir-se-iam espaços para reformas mais
profundas do sistema tributário nacional”, observa Edilberto Pontes Lima, Conselheiro
do Tribunal de Contas do Ceará e professor convidado da Universidade Federal do
Ceará (UFCE) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Distrito Federal.
“Como as despesas são dadas, rígidas, e as demandas por
gastos públicos são sempre crescentes, é difícil apostar em reformas que possam
reduzir a arrecadação. Além disso, um novo sistema tributário pode até ser
melhor que o vigente no médio e longo prazos, mas a transição entre um sistema
e outro pode ser dolorosa. Por isso, por um lado, o próprio governo federal,
autor da proposta inicial, não se empenha devidamente para aprovar e, por
outro, estados e municípios se mobilizam fortemente para aumentar sua
participação no bolo, resultando sempre no impasse. É como se cada participante
exercesse o poder de veto e, embora não consiga impor a sua preferência,
consegue evitar que o sistema se altere”, explica Lima.
O imposto e o conceito de Estado Democrático Mas ainda que ninguém goste de pagar impostos para os
governos, não pagar é um desejo irrealizável. “Não dá para você viver numa
sociedade organizada sem pagar imposto. A ideia de sociedade organizada implica
em você ter um Estado e, tendo o Estado, ele precisa de dinheiro para se
manter. É preciso pagar, por exemplo, exército, polícia, serviços de saúde, de
educação. E isso só pode ser mantido com a renda do cidadão”, explica Adalton
Diniz, professor da Faculdade Cásper Líbero e da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). “É por isso que imposto tem esse nome, ele é
imposto. Ele não é voluntário”, evidencia.
Segundo Diniz, o debate é longo porque também vai se
adaptando às mudanças das estruturas políticas e econômicas ao longo do tempo. “Eu
diria que, na verdade, a estrutura tributária estará sempre em pauta. Talvez não
seja possível fazer uma reforma ampla porque são muitos os interesses
envolvidos. E é por essa razão que é necessário mudar o foco do debate. Ao
invés de se falar numa reforma tributária geral, é preciso pensar em reformas
pontuais, porque, no fundo, a reforma deverá ser permanentemente discutida e
reavaliada”, ressalta.
Na medida em que um país vai se desenvolvendo, a população
aumenta e o Estado se burocratiza ainda mais, fazendo com que, cada vez mais,
novos recursos sejam necessários para dar conta dessa nova complexidade. E todo
esse processo de modernização implica em uma mudança da estrutura tributária,
tendo em vista que, naturalmente, alguns impostos deixam de ser produtivos e,
ao mesmo tempo, outros precisam criados.
Ao longo da história da humanidade, diferentes embates se
deram em torno desse tema e importantes guerras e revoluções foram declaradas
em seu nome. A Guerra de Canudos, por exemplo, na qual se destacou a figura de
Antônio Conselheiro, foi uma delas. Não concordando com o fato dos habitantes
de Canudos, liderados por ele, não pagarem impostos e viverem sem seguir as
leis estabelecidas, contestando a monarquia e a situação de injustiça social
que reinava na região, o governo da Bahia, apoiado pela corte, declarou guerra
aos habitantes e dizimou a população local. A nível mundial, a Revolução
Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688, foi a mais importante e resultou na
criação do conceito de Estado Democrático.
De acordo com Diniz, “é porque o cidadão paga o imposto que
ele tem o direito de participar da administração do Estado, de cobrar, exigir;
é porque eu estou dando o meu dinheiro para o governo que eu tenho o direito de
saber onde ele está sendo aplicado, e é por isso também que eu tenho o direito
de eleger representantes que vão decidir quanto de imposto o Estado vai cobrar,
quanto e onde ele vai colocar esse dinheiro. É assim que nasce o Estado
Democrático: da reivindicação dos cidadãos de controlar a ação do Estado em cobrar
impostos e de decidir para onde vai esse dinheiro. É com esse intuito que a
Revolução Gloriosa da Inglaterra criou o Parlamento”, explica.
Após essa revolução, o governo inglês não poderia mais criar
impostos sem colocar uma proposta em votação no Parlamento, justificando por
que estava precisando de mais dinheiro. Era o Parlamento, na essência, quem
iria decidir se, de fato, aquela necessidade deveria ser atendida com impostos
ou não. Além disso, o governo passou a prestar contas, todos os anos, de como
estava utilizando o dinheiro arrecadado.
Segundo Diniz, o imposto é, em certo sentido, um mal
necessário, pois formas alternativas de o Estado arrecadar dinheiro poderiam
ser, na verdade, um veneno para democracia. “Antes de ter o Parlamento, de ter
essa obrigatoriedade de ouvir a população e de dar satisfações, o Estado inglês
poderia fazer o que bem quisesse com os impostos. Ele podia, por exemplo,
declarar guerra a um país sem prestar contas a ninguém, porque ele tinha renda
própria – parte da renda dos governos, de fato, provinha de negócios privados
do rei, então ele não precisava prestar contas para ninguém. É, mais ou menos,
como funcionam os países árabes, onde a renda do Estado vem das propriedades e
da exploração das jazidas de petróleo. Como a renda não vem de impostos, eles
não precisam prestar contas para a população”, sinaliza.
As reformas no Brasil A estrutura de arrecadação dos impostos no Brasil passou por
diversas alterações ao longo dos séculos, mas, quase sempre, elas não passavam de
meros remendos em uma estrutura já existente. A situação só se alterou após o
golpe militar, quando, em 1967, o governo decidiu que era hora de alterar
radicalmente a regras que regiam a arrecadação e a distribuição dos impostos.
Até então, a estrutura tributária do Brasil, já antiquada e
muito remendada, ainda guardava resquícios da economia predominantemente
agrícola dos séculos anteriores. Desde a década de 1950, no entanto,
percebia-se que era preciso que ela fosse alterada. Mas, como em toda reforma
tributária, a discussão gerou muita polêmica e nada aconteceu nos governos
civis.
Lima explica que a reforma de 1967 foi uma das que, de fato,
modernizou o sistema tributário brasileiro de forma radical, eliminando
diversos impostos e criando novos, melhorando, assim, o perfil da arrecadação. “Introduziu-se,
nesse período, o ICM, imposto sobre valor adicionado, na época só existente na
França, eliminando-se boa parte dos tributos cumulativos. Houve um substancial
aumento da carga tributária, em decorrência, principalmente, de a máquina
arrecadadora ter adquirido maior organização. Um marco do período é a
instituição do Código Tributário Nacional. Além disso, também é digna de nota a
centralização da legislação tributária, restando pouca margem para Estados
legislarem sobre tributos, notadamente sobre o ICM, tributo pelo qual ficaram
responsáveis por arrecadar”, enumera.
Segundo Diniz, uma reforma tributária tão ampla como essa só
pôde ser feita precisamente porque estávamos em um período de fraca democracia.
“Uma reforma tão ordenada, amarrada, só pode acontecer numa ditadura ou numa
situação em que a crise seja tão grave que todos percebam que é preciso alterar
radicalmente essa situação para que todos, de alguma forma, possam ganhar. E
ainda assim vai ter polêmica, porque cada um vai defender os seus interesses. O
cidadão e o empresário querem pagar menos imposto, os governos, ao mesmo tempo,
querem mais dinheiro. Como você concilia todos esses interesses? Impossível”, opina.
A reforma de 1967, na verdade, resultou na estrutura sobre a
qual ainda estamos vivendo, pois dela decorrem diversos problemas tributários
da atualidade. Com o fim da ditadura, veio a abertura democrática e, com ela, a
elaboração da Constituição promulgada em 1988, que alterou as responsabilidades
das instâncias do Estado sem, no entanto, redistribuir a renda advinda dos
impostos. Algumas atribuições que antes eram da alçada da União passaram a ser
responsabilidade dos governos estaduais; outras que eram da alçada dos estados
passaram a ser responsabilidade dos governos municipais. Ainda que algumas
medidas tivessem sido tomadas no sentido da redistribuição tributária, no
fundo, essas alterações não passaram de meros remendos na estrutura já
existente.
“A Constituição de 1988 trouxe o espírito descentralizador.
Aumentou a base de arrecadação dos tributos estaduais, principalmente do ICM,
que se tornou ICMS, e aumentou os percentuais nos fundos de participação
estaduais e municipais. Por muito tempo, ela foi acusada de descentralizar as
receitas, mas não descentralizar os encargos. Isso fez com que a União fosse
obrigada a criar uma série de tributos novos ou ampliar alíquotas de tributos
existentes. É o caso da Cofins, da CPMF (inicialmente, IPMF), da CSLL, tributos
com objetivo precípuo de arrecadar, sem maiores preocupações com qualidade
(não-cumulatividade, progressividade, neutralidade etc). Posteriormente, o que
houve foram ajustes pontuais. Redução da cumulatividade, principalmente nos
produtos destinados à exportação, fim da CPMF, entre outras. A última
modificação constitucional foi a emenda nº 42/2003, no início do governo Lula.
Apesar do ímpeto inicial, o que foi aprovado não constituiu propriamente uma
reforma tributária, apenas mudanças pontuais. Talvez a principal tenha sido sobre
a tributação de microempresas, que permitiu o regime simplificado para as
empresas desse porte, o que ficou conhecido como Super Simples”, aponta Lima.
Uma das consequências trazidas pela reforma de 1988 foi a
questão das guerras fiscais realizadas hoje entre os governos estaduais e, em
menor grau, entre os municípios, para atrair empresas para seus domínios. O
Imposto sobre Circulação de Mercadorias, que depois virou o ICMS, foi criado em
1967 pelo governo federal para ser arrecadado, desde o início, pelos governos
estaduais com uma alíquota fixa. Com a Constituição de 1988 e a reabertura
democrática, os estados recuperaram a autonomia tributária e puderam então
alterar essa alíquota, manipulando os seus impostos para tentar atrair empresas
instaladas em outros lugares.
“O grande problema trazido pela guerra fiscal é em relação
ao desenvolvimento regional”, explica Lopreato. “Durante o regime militar, tudo
era centralizado pelo governo federal, mas depois da reabertura, o governo
deixou de ter uma política centralizada de desenvolvimento regional e aí cada
estado ou município tentou fazer isso por si só, distribuindo benefícios
fiscais para atrair as empresas para seus domínios. Isso trouxe benefícios e
malefícios. Em termos de estados e municípios, não há um consenso. Há casos que
foram bastante lucrativos e outros que, ao contrário, deram prejuízo. E em
termos de país, de desenvolvimento nacional, acabou sendo prejudicial, porque
diversas empresas internacionais vieram para cá e se beneficiaram com baixíssimas
alíquotas, e às vezes até isenção fiscal por longos períodos, sem que houvesse
nenhuma necessidade, pois se essas empresas vieram para cá, é porque haviam
escolhido realizar os seus investimentos aqui e não em outro lugar”, aponta.
Para Lima, a discussão sobre a cobrança do ICMS na origem ou
no destino envolve basicamente os mesmos problemas da reforma tributária como
um todo. “Ninguém quer perder arrecadação, porque a demanda por gastos é enorme
e os recursos disponíveis são sempre insuficientes. As compensações propostas
por eventuais perdas não dão a devida segurança sobre a neutralidade em relação
às receitas disponíveis. Na prática, o que há, no Brasil, é um sistema híbrido,
parte da cobrança na origem, parte no destino, o que dá margem a fraudes,
passeios de notas fiscais e distorções de diversas naturezas. Um sistema puro (destino
ou mesmo origem) reduziria drasticamente a margem para fraudes. Estados
produtores argumentam em prol da origem, enquanto Estados consumidores defendem
a tributação no destino. O resultado é o impasse. A força dos governadores é
grande, pois influenciam suas bancadas no Congresso Nacional e têm interesse
direto no tema, pois o ICMS é o principal tributo individual do país”, explica.
Diversas propostas vêm sendo apresentadas nas últimas
décadas no Congresso Nacional por diferentes partidos. Em comum, está a
necessidade de fomentar o desenvolvimento do país, eliminando obstáculos para uma produção mais eficiente e menos
custosa, simplificando e desburocratizando o sistema tributário. Para isso,
é fundamental eliminar as
distorções da estrutura tributária, diminuindo o custo dos investimentos e das
exportações, por um lado, e ampliar a competitividade do país e reduzindo a
carga fiscal que incide sobre produtores e consumidores, estimulando, assim, um
desenvolvimento mais equilibrado entre estados e municípios. Além disso,
busca-se ainda o aumento da formalidade, na tentativa de que a carga tributária
seja distribuída equitativamente, e a eliminação da guerra fiscal, que poderia
resultar em aumento dos investimentos e da eficiência econômica e no
aperfeiçoamento da política de desenvolvimento regional, introduzindo mecanismos
mais eficientes de desenvolvimento nas regiões mais pobres.
Muitos especialistas apontam que, antes da reforma
tributária, é preciso acontecer a reforma dos gastos públicos. “Enquanto o
gasto público brasileiro estiver no patamar em que se encontra (acima de 35% do
PIB), reformar o sistema tributário é uma utopia. O problema é que na agenda
política brasileira, não há movimentos relevantes para reduções substanciais do
gasto público. Pelo contrário, os movimentos mais importantes são de expansão.
Nesse sentido, pouco se fala da reforma da previdência, um problema muito
grave, em face do rápido envelhecimento da população. Pressiona-se pela
ampliação dos gastos sociais (expansão do bolsa-família, por exemplo) e dos
investimentos públicos que, faz muito tempo, estão em patamares bastante
reduzidos. Os espaços, portanto, para reformas tributárias profundas acabam
sendo muito estreitos”, sinaliza Lima.
A presidente Dilma Roussef divulgou, recentemente, que o
governo federal está elaborando uma nova proposta sem, no entanto, revelar
detalhes. Segundo Lopreato, ainda não se sabe exatamente qual o caminho que a
presidente vai seguir, se retomará a proposta do governo Lula ou se vai trazer
novidades. “O fato é que o início de um governo é sempre um bom momento para se
discutir essa questão. A discussão sobre a inflação, contudo, está atrapalhando
agora e pode prejudicar essa negociação”, avalia.
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