Criada
pelo biólogo Edward O. Wilson, a sociobiologia nasceu nos
Estados Unidos, entre o fim da década de 1960 e o
início
dos anos 1970, com uma proposta de síntese entre dois
objetos
que são estudados separadamente: as sociedades humanas e as
sociedades de outros animais. Os sociobiólogos
começaram
a considerar que as sociedades humanas apresentam muitos aspectos em
comum com os agrupamentos estudados pelos zoólogos,
também
denominados sociedades, como as colméias e os formigueiros,
supondo assim a existência de um estímulo
altruísta
para formações gregárias entre animais
(incluindo aí os seres humanos).
Por
vários motivos os antropólogos, cientistas
sociais
voltados para o estudo das diferenças culturais, discordam
completamente da explicação
sociobiológica.
Assim, logo um ano depois de Wilson ter lançado o seu The
sociobiology: the new synthesis, Marshall Sahlins, importante
antropólogo norte-americano e crítico ferrenho de
seus
compatriotas sociobiólogos, publicou, em 1976, um livro
intitulado The use and abuse of biology, an anthropological
critique of sociobiology, onde analisa minuciosamente todos
os
raciocínios simplificadores e etnocêntricos
desenvolvidos e aceitos pelos sociobiologistas.
Embora
não seja possível citar aqui todos os aspectos
relevantes do debate (ao qual me refiro também numa
publicação
intitulada O que é sociobiologia, da
coleção
Primeiros Passos, ed. Brasiliense), creio fundamental citar alguns
móveis dessa controvérsia: (1) o etnocentrismo
dos
sociobiólogos, que julgam universais condutas e/ou
categorias
de pensamento presentes somente em algumas sociedades humanas; (2) a
“genetização” das culturas
humanas pelos
sociobiólogos, que atribuem aos genes papel preponderante na
explicação dos comportamentos, o que acaba
levando a
análises reducionistas e que desmerecem a
dimensão
simbólica das sociedades humanas; (3) o antropocentrismo dos
antropólogos, que lidam com as características
humanas
como se não pudessem ser encontradas, em alguma medida, em
outras espécies, ditas naturais; (4) o relativismo cultural
aceito pelos antropólogos, que então consideram
que os
processos sociais só podem ser explicados pela
socialização,
isto é, pelo aprendizado, nutrindo certo
descrédito com
relação à possibilidade de aspectos
físicos
e fisiológicos terem aí interferência e
dispensando a busca de universais culturais.
Para
ilustrar com apenas um exemplo o etnocentrismo dos
sociobiólogos,
recorremos ao fato de Wilson enfatizar dois tipos de condutas
–
egoístas e altruístas –, para explicar
as
interações animais em sociedade. Essas suas
noções
são escolhidas pelos sociobiólogos porque elas
explicariam a vida em sociedade. Há um pressuposto que o
egoísmo é adaptativo –
“Farinha pouca? Meu
pirão primeiro”. Mas esse, conforme o contexto,
também
pode ser considerado um comportamento anti-social. Se a sociedade
é
uma forma adaptativa selecionada pela natureza, então, os
seres sociais devem temperar seu egoísmo com uma dose de
altruísmo que permita a sobrevivência da
sociedade, ou,
pelo menos, de meus genes. Nesse caso o altruísmo
é
apenas a aparência de um egoísmo
genético.
A
crítica que se pode fazer aos sociobiólogos
é
que essas categorias não são nem
inequívocas
(aliás, nada científicas), nem universais,
estando
ausentes de muitas sociedades humanas que não problematizam
suas condutas por esse viés. Hábitos e atitudes
que um
ocidental poderia facilmente enquadrar como altruísmo ou
egoísmo recebem explicações muito mais
complexas
em sua terra de origem.
Consideramos
altruísta aquela pessoa que se dedica aos outros e que
é
capaz de dar sua vida por um ideal ou alguém. Já
no
Japão, essas atitudes são encaradas de um ponto
de
vista totalmente distinto da dicotomia
altruísmo/egoísmo.
Um trabalho escrito por Ruth Benedict, antropóloga
norte-americana, na década de 40, procura mostrar as grandes
diferenças que existem entre a cultura japonesa e a dos
Estados Unidos. Neste livro, intitulado O
crisântemo e a espada
ela afirma que morrer pelo imperador, pela pátria ou pelo
seu
nome de família não significa na sociedade
japonesa ser
altruísta; trata-se de manter a própria honra,
idéia
básica que, ao menos na época em que o trabalho
foi
feito, norteava o sentido da vida na cultura japonesa. Logo, dar a
vida em troca da de outrem entre os japoneses não pode ser
explicado pelas premissas da sociobiologia que admitem duas
categorias classificatórias para essas condutas.
Outra
crítica dirigida aos sociobiólogos é o
fato de
destituírem a sociedade humana de sua dimensão
simbólica; só assim podem atribuir unidade a dois
fenômenos que embora designados pelo mesmo nome
são
bastante distintos. Isso acontece com o próprio termo
“sociedade”. Os biólogos denominam
“sociedade”
um tipo de associação existente entre as
formigas. Nela
há funções diferenciadas assumidas por
tipos de
formigas que, embora pertençam à mesma
espécie,
nascem diferentes, umas especializadas na
reprodução,
outras na manutenção do formigueiro. Os
entomologistas
também conhecem um comportamento comum entre as formigas que
reconhecem um indivíduo morto pelo cheiro e assim retiram-no
do formigueiro. Numa experiência, cientistas que estudavam
formas de comportamentos inatos, “perfumaram”
algumas
formigas saudáveis com a substância exalada pelas
formigas mortas. Embora vivas, as “perfumadas” eram
carregadas para fora do formigueiro; tantas vezes voltassem, tantas
vezes seriam retiradas. Só por esse aspecto, pode-se
concluir
que qualquer comparação entre sociedades de
insetos e
as humanas merece, no mínimo, extremo cuidado.
Durante
décadas, então, a crítica formulada
por Marshall
Sahlins pôde sintetizar o pensamento quase unânime
dos
antropólogos sobre a sociobiologia. O acúmulo de
etnografias evidenciando a grande diversidade das sociedades humanas
e, sobretudo, atestando a importância de se levar em conta
seus
aspectos simbólicos para a compreensão adequada
das
diferenças culturais, contradizia a
argumentação
baseada na existência de uma natureza humana geneticamente
determinada e moldada pela seleção natural.
Sem
abandonar a argumentação contrária
à
sociobiologia tecida inicialmente por Marshall Sahlins, os
antropólogos puderam, entretanto, ultimamente desenvolver
uma
auto-crítica no sentido de reivindicar para si
também a
ambição de re-avaliarem as causas e
conseqüências
colocadas pelo grande fosso que criamos entre natureza e sociedade.
Afinal, o que quer boa parte dos biólogos que se intitulam
também “sócio”
senão a superação
da seguinte dualidade: por um lado, o homem como um ser social,
racional, criativo, moral e autônomo; por outro, o homem
animal, naturalmente social, que nasce, cresce, se reproduz e morre?
Essa
dualidade tem uma longa história, e ela se mostra
especialmente bem assentada e desenvolvida em nossa sociedade, a
ocidental. Outras sociedades, como a dos Ashuar, por exemplo,
estudada pelo proeminente etnólogo francês
Philippe
Descola, não opõem a espécie humana
às
demais espécies naturais. Também os Makuna, outro
povo
da Amazônia, classificam como “gente” as
pessoas,
os animais e as plantas, já que são todos seres
vivos e
possuem “vida social”.
Pode-se
afirmar que mesmo que as conclusões e os
raciocínios
excessivamente biologizantes e simplificadores dos biólogos
(que se intitulam sócio) nunca tenham convencido –
com
razão – os antropólogos, a
sociobiologia aponta
para uma questão importante, que é a da dupla
classificação humana: os seres humanos
são
radicalmente distintos de todos os (outros) animais, mas não
deixam de ser animais.
Tim
Ingold, influente antropólogo britânico, que, a
partir
da década de 1980, levanta a questão da
“animalidade
do homem” de uma forma bastante pertinente, afirma que se
enfatizar a singularidade da condição humana
não
é por si só uma postura
antropocêntrica. É
a radicalidade da distinção que manifesta um
antropocentrismo, e não a distinção em
si. Para
Ingold, poderíamos trocar a fratura que separa radicalmente
a
humanidade da animalidade por uma escala que gradualmente as ligasse,
reconhecendo em outros animais atributos considerados essencialmente
humanos (formas de linguagem, engenhosidade e inteligência).
Apoiado em outros autores, ele sustenta que assim como os habitantes
das sociedades tribais da África, Américas e
Oceania
tiveram, no passado, seu pertencimento à humanidade
questionado pelos primeiros estudiosos do assunto, os animais podem
estar sendo vítimas, de um movimento análogo.
É
verdade que o antropocentrismo foi durante muito tempo um aspecto que
tornou sem importância, aos olhos dos
antropólogos, a
questão da “animalidade” do homem; mas
não
foi o único. O relativismo cultural, extremamente bem aceito
na antropologia contemporânea, e cujo exercício
propiciou a colocação em causa do etnocentrismo,
foi
outro. Ele se estabeleceu internamente à disciplina
dispensando a procura de universais entre as sociedades humanas de
forma a considerar que a diferença (cultural) é a
grande semelhança entre os homens. Embora antropocentrismo e
relativismo cultural não precisem caminhar sempre juntos,
é
claro que o segundo associando-se ao primeiro torna ainda mais
difícil a busca de superação do corte
antropocêntrico entre o animal homem e os outros.
Mais
do que tentar um intercâmbio com outras disciplinas,
antropólogos como Ingold têm refinado a
reflexão
antropológica a partir da observação
de como
outras sociedades classificam a si próprias e pensam a
natureza em geral; os antropólogos têm questionado
também sua prática, examinando em que medida suas
categorias de pensamento refletem um modo de pensar culturalmente
referido e historicamente datado. Penso que se trata de um caminho
muito mais profícuo do que o dos sociobiólogos,
que
tentam fazer uma síntese juntando campos
científicos de
forma a hierarquizar seus objetos. Em outras palavras, o homem
é
um só. As ciências é que, ao elegeram
seus
objetos, o dividiram em animal e social. Para se reaver a unidade
perdida, não basta reunir disciplinas, mas sim reconstruir o
objeto. Voltando a Ingold, podemos concluir que nem as
ciências
humanas são as únicas que podem explicar as
culturas
nem as ciências naturais sozinhas podem dar conta de
compreender as outras formas de vida e os universos dos animais
não-humanos.
Gláucia
Silva é antropóloga, professora adjunta da
Universidade
Federal Fluminense.
|