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Artigo
A sociobiologia e a crítica dos antropólogos
Por Gláucia Silva
10/09/2006

Criada pelo biólogo Edward O. Wilson, a sociobiologia nasceu nos Estados Unidos, entre o fim da década de 1960 e o início dos anos 1970, com uma proposta de síntese entre dois objetos que são estudados separadamente: as sociedades humanas e as sociedades de outros animais. Os sociobiólogos começaram a considerar que as sociedades humanas apresentam muitos aspectos em comum com os agrupamentos estudados pelos zoólogos, também denominados sociedades, como as colméias e os formigueiros, supondo assim a existência de um estímulo altruísta para formações gregárias entre animais (incluindo aí os seres humanos).

Por vários motivos os antropólogos, cientistas sociais voltados para o estudo das diferenças culturais, discordam completamente da explicação sociobiológica. Assim, logo um ano depois de Wilson ter lançado o seu The sociobiology: the new synthesis, Marshall Sahlins, importante antropólogo norte-americano e crítico ferrenho de seus compatriotas sociobiólogos, publicou, em 1976, um livro intitulado The use and abuse of biology, an anthropological critique of sociobiology, onde analisa minuciosamente todos os raciocínios simplificadores e etnocêntricos desenvolvidos e aceitos pelos sociobiologistas.

Embora não seja possível citar aqui todos os aspectos relevantes do debate (ao qual me refiro também numa publicação intitulada O que é sociobiologia, da coleção Primeiros Passos, ed. Brasiliense), creio fundamental citar alguns móveis dessa controvérsia: (1) o etnocentrismo dos sociobiólogos, que julgam universais condutas e/ou categorias de pensamento presentes somente em algumas sociedades humanas; (2) a “genetização” das culturas humanas pelos sociobiólogos, que atribuem aos genes papel preponderante na explicação dos comportamentos, o que acaba levando a análises reducionistas e que desmerecem a dimensão simbólica das sociedades humanas; (3) o antropocentrismo dos antropólogos, que lidam com as características humanas como se não pudessem ser encontradas, em alguma medida, em outras espécies, ditas naturais; (4) o relativismo cultural aceito pelos antropólogos, que então consideram que os processos sociais só podem ser explicados pela socialização, isto é, pelo aprendizado, nutrindo certo descrédito com relação à possibilidade de aspectos físicos e fisiológicos terem aí interferência e dispensando a busca de universais culturais.

Para ilustrar com apenas um exemplo o etnocentrismo dos sociobiólogos, recorremos ao fato de Wilson enfatizar dois tipos de condutas – egoístas e altruístas –, para explicar as interações animais em sociedade. Essas suas noções são escolhidas pelos sociobiólogos porque elas explicariam a vida em sociedade. Há um pressuposto que o egoísmo é adaptativo – “Farinha pouca? Meu pirão primeiro”. Mas esse, conforme o contexto, também pode ser considerado um comportamento anti-social. Se a sociedade é uma forma adaptativa selecionada pela natureza, então, os seres sociais devem temperar seu egoísmo com uma dose de altruísmo que permita a sobrevivência da sociedade, ou, pelo menos, de meus genes. Nesse caso o altruísmo é apenas a aparência de um egoísmo genético.

A crítica que se pode fazer aos sociobiólogos é que essas categorias não são nem inequívocas (aliás, nada científicas), nem universais, estando ausentes de muitas sociedades humanas que não problematizam suas condutas por esse viés. Hábitos e atitudes que um ocidental poderia facilmente enquadrar como altruísmo ou egoísmo recebem explicações muito mais complexas em sua terra de origem.

Consideramos altruísta aquela pessoa que se dedica aos outros e que é capaz de dar sua vida por um ideal ou alguém. Já no Japão, essas atitudes são encaradas de um ponto de vista totalmente distinto da dicotomia altruísmo/egoísmo. Um trabalho escrito por Ruth Benedict, antropóloga norte-americana, na década de 40, procura mostrar as grandes diferenças que existem entre a cultura japonesa e a dos Estados Unidos. Neste livro, intitulado O crisântemo e a espada ela afirma que morrer pelo imperador, pela pátria ou pelo seu nome de família não significa na sociedade japonesa ser altruísta; trata-se de manter a própria honra, idéia básica que, ao menos na época em que o trabalho foi feito, norteava o sentido da vida na cultura japonesa. Logo, dar a vida em troca da de outrem entre os japoneses não pode ser explicado pelas premissas da sociobiologia que admitem duas categorias classificatórias para essas condutas.

Outra crítica dirigida aos sociobiólogos é o fato de destituírem a sociedade humana de sua dimensão simbólica; só assim podem atribuir unidade a dois fenômenos que embora designados pelo mesmo nome são bastante distintos. Isso acontece com o próprio termo “sociedade”. Os biólogos denominam “sociedade” um tipo de associação existente entre as formigas. Nela há funções diferenciadas assumidas por tipos de formigas que, embora pertençam à mesma espécie, nascem diferentes, umas especializadas na reprodução, outras na manutenção do formigueiro. Os entomologistas também conhecem um comportamento comum entre as formigas que reconhecem um indivíduo morto pelo cheiro e assim retiram-no do formigueiro. Numa experiência, cientistas que estudavam formas de comportamentos inatos, “perfumaram” algumas formigas saudáveis com a substância exalada pelas formigas mortas. Embora vivas, as “perfumadas” eram carregadas para fora do formigueiro; tantas vezes voltassem, tantas vezes seriam retiradas. Só por esse aspecto, pode-se concluir que qualquer comparação entre sociedades de insetos e as humanas merece, no mínimo, extremo cuidado.

Durante décadas, então, a crítica formulada por Marshall Sahlins pôde sintetizar o pensamento quase unânime dos antropólogos sobre a sociobiologia. O acúmulo de etnografias evidenciando a grande diversidade das sociedades humanas e, sobretudo, atestando a importância de se levar em conta seus aspectos simbólicos para a compreensão adequada das diferenças culturais, contradizia a argumentação baseada na existência de uma natureza humana geneticamente determinada e moldada pela seleção natural.

Sem abandonar a argumentação contrária à sociobiologia tecida inicialmente por Marshall Sahlins, os antropólogos puderam, entretanto, ultimamente desenvolver uma auto-crítica no sentido de reivindicar para si também a ambição de re-avaliarem as causas e conseqüências colocadas pelo grande fosso que criamos entre natureza e sociedade. Afinal, o que quer boa parte dos biólogos que se intitulam também “sócio” senão a superação da seguinte dualidade: por um lado, o homem como um ser social, racional, criativo, moral e autônomo; por outro, o homem animal, naturalmente social, que nasce, cresce, se reproduz e morre?

Essa dualidade tem uma longa história, e ela se mostra especialmente bem assentada e desenvolvida em nossa sociedade, a ocidental. Outras sociedades, como a dos Ashuar, por exemplo, estudada pelo proeminente etnólogo francês Philippe Descola, não opõem a espécie humana às demais espécies naturais. Também os Makuna, outro povo da Amazônia, classificam como “gente” as pessoas, os animais e as plantas, já que são todos seres vivos e possuem “vida social”.

Pode-se afirmar que mesmo que as conclusões e os raciocínios excessivamente biologizantes e simplificadores dos biólogos (que se intitulam sócio) nunca tenham convencido – com razão – os antropólogos, a sociobiologia aponta para uma questão importante, que é a da dupla classificação humana: os seres humanos são radicalmente distintos de todos os (outros) animais, mas não deixam de ser animais.

Tim Ingold, influente antropólogo britânico, que, a partir da década de 1980, levanta a questão da “animalidade do homem” de uma forma bastante pertinente, afirma que se enfatizar a singularidade da condição humana não é por si só uma postura antropocêntrica. É a radicalidade da distinção que manifesta um antropocentrismo, e não a distinção em si. Para Ingold, poderíamos trocar a fratura que separa radicalmente a humanidade da animalidade por uma escala que gradualmente as ligasse, reconhecendo em outros animais atributos considerados essencialmente humanos (formas de linguagem, engenhosidade e inteligência). Apoiado em outros autores, ele sustenta que assim como os habitantes das sociedades tribais da África, Américas e Oceania tiveram, no passado, seu pertencimento à humanidade questionado pelos primeiros estudiosos do assunto, os animais podem estar sendo vítimas, de um movimento análogo.

É verdade que o antropocentrismo foi durante muito tempo um aspecto que tornou sem importância, aos olhos dos antropólogos, a questão da “animalidade” do homem; mas não foi o único. O relativismo cultural, extremamente bem aceito na antropologia contemporânea, e cujo exercício propiciou a colocação em causa do etnocentrismo, foi outro. Ele se estabeleceu internamente à disciplina dispensando a procura de universais entre as sociedades humanas de forma a considerar que a diferença (cultural) é a grande semelhança entre os homens. Embora antropocentrismo e relativismo cultural não precisem caminhar sempre juntos, é claro que o segundo associando-se ao primeiro torna ainda mais difícil a busca de superação do corte antropocêntrico entre o animal homem e os outros.

Mais do que tentar um intercâmbio com outras disciplinas, antropólogos como Ingold têm refinado a reflexão antropológica a partir da observação de como outras sociedades classificam a si próprias e pensam a natureza em geral; os antropólogos têm questionado também sua prática, examinando em que medida suas categorias de pensamento refletem um modo de pensar culturalmente referido e historicamente datado. Penso que se trata de um caminho muito mais profícuo do que o dos sociobiólogos, que tentam fazer uma síntese juntando campos científicos de forma a hierarquizar seus objetos. Em outras palavras, o homem é um só. As ciências é que, ao elegeram seus objetos, o dividiram em animal e social. Para se reaver a unidade perdida, não basta reunir disciplinas, mas sim reconstruir o objeto. Voltando a Ingold, podemos concluir que nem as ciências humanas são as únicas que podem explicar as culturas nem as ciências naturais sozinhas podem dar conta de compreender as outras formas de vida e os universos dos animais não-humanos.

Gláucia Silva é antropóloga, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense.