Já faz algum tempo que a aviação brasileira vem se tornando um setor
com reputação bastante negativa na mídia nacional. Os preços das
tarifas, o extravio de bagagens, a prática do overbooking
e os efeitos sempre chocantes de acidentes aéreos, por mais raros que
eles sejam, têm colocado o setor aéreo em um papel de vilão há pelo
menos quinze anos. Infelizmente, o final de 2006 e este início de 2007
não estão contribuindo em nada para mudar este quadro.
A falência da Varig, empresa que completaria 80 anos de atividades em
2007, acaba por representar o fim de um tempo em que a aviação ainda
contava com glamour
e era reconhecida como um serviço eficiente que orgulhava os
brasileiros. A Varig juntou-se à Vasp e à Transbrasil, empresas que
dominaram os céus nos anos 70 e 80, para deixar o setor em prol das
companhias que se destacaram a partir dos anos 90: a TAM, a GOL e as
empresas estrangeiras autorizadas a voar com mais frequência ao Brasil.
Logo em seguida à falência da Varig, um grave acidente trouxe a aviação
de volta às manchetes: o acidente com a aeronave da GOL. Como todos os
acidentes da aviação, também este foi uma sucessão de erros não
detectados. Mas a busca por culpados fez a imprensa acuar os pilotos
norte-americanos e, posteriormente, o sistema de controle de tráfego
aéreo. Tal situação acabou por deixar na defensiva os controladores de
vôo, submetidos a enormes responsabilidades e com insuficiente quadro
de técnicos capacitados.
Esses dois fatores estão na raiz do que vem sendo chamado, nos últimos
meses, de apagão aéreo. As empresas aéreas remanescentes não dispõem de
uma estrutura nacional ou internacional capaz de atender aos
passageiros que não contam mais com a Varig (apesar da sua crise, em
2005, a Varig ainda respondia por 30% dos passageiros transportados no
país). E os controladores de vôo passam a atuar de uma maneira mais
cautelosa, o que tem causado enormes atrasos e grande número de
cancelamento de vôos.
Para melhor entender tal situação é preciso ter em mente que as
inovações tecnológicas e gerenciais do setor aéreo sempre causaram
enormes transtornos à infra-estrutura, que se mostra incapaz de
responder de maneira ágil às mudanças em curso.
A evolução das aeronaves — que ganharam peso, tamanho e velocidade —
deixava os aeroportos constantemente desatualizados, carecendo de novos
investimentos para se adequar às exigências dos novos aviões. Foi assim
quando a Boeing, em 1966, anunciou que começaria a fabricar o modelo
747, capaz de acomodar mais de 350 passageiros, e obrigou o redesenho e
o uso de novos materiais nas pistas de pouso e decolagem. Atualmente, a
Airbus conta com um projeto de avião com capacidade entre 500 e 800
passageiros. Quando essa aeronave começar a operar, novamente toda a
estrutura aeroportuária terá que ser revista para poder recebê-la
adequadamente.
Em 1978, os EUA iniciaram um processo de desregulamentação de sua
aviação. Este processo foi se disseminando pelos países, coerente com a
orientação política e econômica de liberalização da atividade econômica
que também torna-se dominante nessa época. Com a desregulamentação, as
empresas ganharam autonomia para estipular suas rotas e horários de
vôos segundo suas conveniências apenas. Desenvolveu-se, então, o
sistema Hub-and-Spoke, com o objetivo de otimizar o uso das aeronaves.
O uso de aeroportos principais (Hubs) e secundários (Spokes) obriga a
um gerenciamento mais complexo do tráfego aéreo. O Hub é o aeroporto
onde as empresas centralizam suas operações em uma determinada região.
A partir deste centro, espalham-se conexões para cidades próximas com
menor demanda. Com isto, há uma concentração de vôos chegando na mesma
faixa horária ao aeroporto, a fim de viabilizar as conexões necessárias
para os passageiros seguirem viagem. Esse acúmulo de vôos torna mais
complexo o esforço de gerir todos esses aviões que se cruzam num espaço
limitado.
Outro impacto relevante da desregulamentação da aviação, é um enorme
aumento na demanda e na oferta de vôos aéreos. Um aumento que
internacionalmente causa preocupação devido às dificuldades de, repito,
prover uma infra-estrutura que garanta a segurança e a pontualidade das
operações. Segundo estudiosos do tema, em 1997, os trinta e três
maiores aeroportos dos EUA excederam 20.000 horas de atraso (Andreatta et alli,
1997). O Livro Branco, que traça as projeções da União Européia (EU)
para os transportes até 2010, estima que em 2000 um em cada seis vôos
em espaço aéreo europeu se atrasou, em média, 22 minutos. Segundo o
citado Livro Branco, em 2000, a necessidade de novos controladores de
vôo nos países da EU variava entre 800 e 1.600 profissionais, de um
conjunto total de 15.000.
Nos parágrafos acima, temos exemplos de mudança tecnológica e de
mudanças gerenciais que obrigam as autoridades aeronáuticas a adaptar -
sob pressão de processos em andamento - o gerenciamento do tráfego
aéreo.
No Brasil, o processo de flexibilização se inicia com a V Conferência
Nacional de Aviação Civil (Conac), de 1991. A conferência não teve
caráter deliberativo, constituindo-se apenas em um fórum de discussão
onde diversos atores do setor puderam propor e criticar as políticas
adotadas pelo governo. Esta Conac marcou uma inflexão na política do
Departamento de Aviação Civil (ligado ao Ministério da Aeronáutica) e a
negação dos princípios que levaram ao controle governamental da
concorrência. Cabe lembrar que a “concorrência controlada” foi adotada
em função da crença das autoridades aeronáuticas que a livre competição
entre as empresas poderia levar a uma situação de enfraquecimento
técnico, operacional e financeiro das mesmas.
Também no Brasil, os efeitos da flexibilização seguiram (com algumas
ressalvas) o modelo norte-americano. O tráfego nacional se concentra em
alguns pontos (especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) que
acabam ficando saturados — e os problemas em aroportos dessas
localidades conseguem muita visibilidade por conta do volume de
passageiros afetados. O preço médio das tarifas baixou, o que fez com
que uma parcela da população, que antes não cogitava o transporte
aéreo, passassem a demandar mais vôos.
Alguns pontos, entretanto, são traços brasileiros com pouca
correspondência em outros países. O primeiro é a militarização do
controle de vôo, ocorrido em 1967 e em vigência até os dias de hoje.
Esta é uma barreira ao acesso de servidores que poderiam seguir essa
carreira, mas que não querem ter uma vida militar, e também à
viabilidade de traçar uma política salarial específica para este grupo
de trabalhadores do qual se exige tanto. Em 1987-8, os sindicatos de
trabalhadores civis da aviação tentou mobilizar os deputados
constituintes para acabar com essa vinculação. Mas o movimento, chamado
de “Pássaro Civil”, não foi capaz de vencer o lobby dos militares.
A segunda particularidade brasileira é a vasta extensão do território,
fato este que obriga o sistema de controle de vôo a ter uma amplitude
muito grande, certamente mais complicado de gerenciar do que em países
de menor tamanho.
Torna-se portanto urgente que o governo federal tome providências no
sentido de regularizar a situação. Mais do que turistas rumo ao
carnaval (que também não devem ser desconsiderados), o gargalo em um
setor de transporte tão importante no mundo atual constitui-se em um
forte obstáculo à retomada do crescimento econômico tão esperado pela
sociedade.
Rodrigo Coelho é pesquisador do Núcleo de Políticas Públicas da Unicamp.
Bibliografia:
ANDREATTA, G. et alli (1997) The flow management problem. Control Engineering Practice nº6.
COELHO, R. (2003) Impactos da desregulamentação do setor aéreo
comercial sobre os trabalhadores: uma análise dos casos brasileiro e
norte-americano. (Dissertação de Mestrado). Campinas: IE/UNICAMP.
Disponível na biblioteca digital da Unicamp.
COELHO, R. e NASCIMENTO, R. (2001) Aviação civil e regulação econômica:
considerações sobre a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Archétypon, v.9, nº25. Rio de Janeiro: UCAM.
COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS (2001) Livro Branco: a política européia de transportes no horizonte de 2010. Bruxelas: EU.
DAC (1992) Política para os serviços de transporte aéreo comercial do Brasil. Brasília: Ministério da Aeronáutica.
JESUS, C. G. (2005) Desregulamentação e trabalho na aviação comercial brasilera (1990-2002). (Dissertação de Mestrado). Campinas: IG/Unicamp. Disponível na biblioteca digital da Unicamp.
OLIVEIRA, A. L. org. (2003) Decola, aeronauta: o dia a dia do SNA (1980-2001). Mimeo.
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