Se nós olharmos
os campos disciplinares como territórios, podemos dizer que
os
esforços interdisciplinares têm provocado
transformações
significativas no mapa das ciências sociais. Novos
territórios
têm sido construídos a partir de
recombinações
entre especialidades de disciplinas, principalmente com aquela que
é
considerada uma especialidade em franca expansão: a biologia
evolutiva. Chamamos de abordagens biossociais as
recombinações
entre especialidades das ciências sociais e a biologia
evolutiva. A história da sociologia nos mostra
várias
tentativas de diálogo com a biologia. Na década
de
1920, sociólogos americanos darwinistas confrontavam-se com
sociólogos de orientação radicalmente
culturalista sobre a importância da biologia para se entender
o
comportamento social humano. No início da década
de
1930, esse confronto havia arrefecido com o triunfo da perspectiva
culturalista de Franz Boas e suas alunas Margareth Mead e Ruth
Benedict. Um triunfo que foi muito mais ideológico do que
científico, conforme nos mostrou Carl Degler em seu livro
sobre a história do evolucionismo social. Razões
ideológicas para recusar a explicação
evolucionista não faltavam visto que ele se apresentava de
maneira racista e sexista. Mas a explicação
culturalista não se mostrou mais consistente que a
perspectiva
biossocial dos sociólogos darwinistas, apenas mais
politicamente correta.
Nos
anos 60, em função do grande avanço
teórico
experimentado pela biologia evolutiva, novas
recombinações
biossociais anunciavam a necessidade de introduzir a
dimensão
biológica para se entender o comportamento social humano. A
repercussão dos trabalhos de primatólogos sobre o
sistema social de primatas não-humanos e de
etólogos
sobre a evolução do comportamento social trouxe
Darwin
de volta para a teoria sociológica. Conforme atestamos na
análise que fizemos de dois periódicos
tradicionais de
sociologia americana, o American Sociological Review
e o
American Journal of Sociology, são
poucos, mas
ilustrativos, os artigos e resenhas que desde os anos 60 reclamam da
negligência dos sociólogos em
relação a
variável biológica e chamam
atenção para
as implicações sociológicas dos
trabalhos de
etólogos e primatólogos:
“biólogos estão
falando de sociologia”, alguns resenhistas afirmavam.
Se nos anos 1960 os
sociólogos estavam
tomando conhecimento dos avanços da ciência
biológica,
no começo dos anos 1970 as
recombinações
biossociais que, até então, tinham sido
fundamentalmente construções a partir de
especialidades
da biologia em direção às
ciências
sociais, passam agora a ter também
recombinações
de especialidades das ciências sociais em
direção
à biologia evolutiva. Allan Mazur, Bruce Eckland, Pierre Van
Den Berghe, Claude Fisher e Leon Robertson são alguns dos
sociólogos envolvidos na tarefa de pensar uma abordagem
biossocial, uma sociologia entre espécies, e de discutir as
reflexões pioneiras, nesse sentido, dos
antropólogos
Lionel Tiger e Robin Fox, cujo diálogo com a etologia foi e
ainda é duramente criticado.
Em
meados da década de 1970, o diálogo incipiente
entre a
sociologia e as emergentes abordagens biossociais ganhou novos
contornos pelo surgimento de uma nova e radical abordagem biossocial,
a sociobiologia. O território sociobiológico pode
ser
demarcado pela aproximação entre os estudos
etológicos,
métodos da genética de
populações e da
teoria dos jogos e ecologia. Edward Wilson, autor da obra que
representa o marco no surgimento dessa nova disciplina,
Sociobiologia: a nova síntese,
apresenta-a como uma
explicação sistemática dos fundamentos
biológicos dos comportamentos sociais. A sociobiologia
enquanto abordagem biossocial pode ser vista como um esforço
de síntese e de superação das
barreiras entre as
ciências naturais e as ciências sociais
através de
uma aproximação biológica dos
comportamentos
sociais dos animais e dos seres humanos.
Vista
como uma tentativa suspeita de absorção das
ciências
sociais – sociologia e antropologia fundamentalmente - a
sociobiologia enfrentou uma virulenta resistência nas
ciências
sociais. Na sociologia só fez reaparecer a biofobia dos
sociólogos. Apenas três resenhas no American
Journal
of Sociology discutiram a proposta wilsoniana, que provocou
amplas discussões na antropologia e psicologia. Mas ao longo
dos anos oitenta um grupo de sociólogos começou a
se
interessar pela agenda de pesquisas aberta pela
sociobiologia.Temáticas como a
evolução da
cooperação e fenômenos como incesto,
crime,
sexualidade adolescente e o diálogo entre as perspectivas
sociológica e evolutiva das diferenças entre os
sexos
passaram a ter um tratamento biossocial. Ao longo dos anos oitenta e
início dos anos noventa assistimos ao aparecimento de novas
abordagens biossociais: a ecologia comportamental, a psiquiatria
darwinista e a psicologia evolucionista, por exemplo. A agenda de
pesquisas da psicologia evolucionista tem atraído alguns
sociólogos. O foco dessa nova área de
conhecimento é
o estudo das características básicas das
adaptações
psicológicas humanas baseadas no conhecimento existente
sobre
evolução humana e modelos de pressões
seletivas
no curso do tempo evolutivo. As adaptações
comportamentais e psicológicas que temos hoje foram
selecionadas no nosso ambiente de adaptação
evolutiva
ancestral (AAE).
Os esforços
biossociais de alguns sociólogos americanos criaram uma nova
especialidade dentro do campo sociológico que vem sendo
chamada de biossociologia. Alguns biossociólogos, como Allan
Mazur, são declaradamente antievolucionistas enquanto Pierre
Van Den Berghe, que no final dos anos setenta e início dos
anos oitenta também fazia referências à
biossociologia, era evolucionista e considerado um
sociobiólogo
por trabalhar com a agenda da sociobiologia. Esta diferença
na
“comunidade de biossociólogos” sugere
que há
mais resistências entre os sociólogos a uma
perspectiva
evolutiva do que a um diálogo com a biologia. Survey
aplicado
por Stephen Sanderson e Lee Ellis em membros da
Associação
Americana de Sociologia revelou que apenas 3,7% dos
sociólogos
americanos eram receptivos a sociobiologia e evolucionismo. Na
interpretação de seus dados, os pesquisadores
descobriram que os respondentes tinham uma visão fortemente
antibiológica.
Embora a resistência
dos sociólogos a um diálogo com a biologia
persista, a
criação da subseção
Evolução
e Sociologia na Associação Americana de
Sociologia em
2004 constitui um acontecimento marcante na história da
sociologia, pois tem como objetivo fundamental permitir que
sociólogos possam legitimamente incorporar
evolução
e biologia em suas teorias e pesquisas. Talvez possamos dizer que o
fato dessa seção ter hoje mais de 300 membros
indica
que uma nova etapa está sendo inaugurada no
diálogo da
sociologia com a ciência biológica. Parece que
Darwin
voltou para ficar.
André
Luís
Ribeiro Ferreira é graduado e doutor em sociologia pela
Universidade de Brasília e professor de sociologia na
Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá.
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