REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
O signo do vazio e o vazio do signo - Carlos Vogt
Reportagens
A física do “vazio”
Fabio Reynol
Roberto Belisário
“Vazios” que revolucionaram a matemática
Cristina Caldas
O vazio funcional da química
Caroline Borja
Interstícios urbanos
Marina Mezzacappa
Colaboração: Enio Rodrigo
O poder da técnica e o esvaziamento da política
Carolina Raquel Justo
Artigos
Silêncios: presença e ausência
Eni P. Orlandi
O mal-estar na contemporaneidade: performance e tempo
Olgária Matos
O vazio, as marmotas e a arte
Affonso Romano de Sant'Anna
Mark Rothko: filosofia e estética negativa
Cícero Cunha Bezerra
“A passagem de um vazio” em fotografias de escolas
Alik Wunder
Resenha
Vazio palpável
Por Chris Bueno
Entrevista
Gilles Lipovetsky
Entrevistado por Por Flavia Natércia e Luciano Valente
Poema
Trovinha
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
O poder da técnica e o esvaziamento da política
Por Carolina Raquel Justo
10/09/2008

Pesquisadores e filósofos têm procurado entender e explicar o vazio que habitaria o mundo de hoje anunciado pela ruína da essência dos humanos, da “morte” da história, da literatura e dos deuses. O desenvolvimento e aposta no progresso técnico são apontados como os principais catalisadores desses processos. Emergem das análises compreensões distintas sobre como esse vazio impacta as sociedades contemporâneas e seus possíveis perigos e potenciais: a tecnocracia estaria triunfando e destituindo a crença e a política de suas forças, abolindo-as, jogando-as no nada da descrença e despolitização, em que só o tempo presente vale; o vazio da crença e da política seria antes a possibilidade de pensar em “crenças” e “políticas”, múltiplas e inacabadas, a chance que os seres humanos teriam de reinventar suas histórias, pensamentos e futuros. “É do vazio da política que a verdadeira política necessita. Nesses momentos é que podem emergir as ações inesperadas, que possibilitam uma tomada de palavra, um exercício de poder, uma reação que signifique uma reorganização da ordem social”, argumenta o filósofo Silvio Gallo, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

O vazio das crenças e das palavras

Durante séculos da história os homens cultuaram deuses, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Entretanto, desde o século XVIII, o chamado século das luzes, teria ocorrido um processo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”. O avanço da razão sobre o misticismo teria feito com que o mundo perdesse sua aura encantada, tornando os homens mais céticos. “A filosofia crítica e as ciências tornaram o mundo vazio dos deuses que durante milênios pareceram habitá-lo”, explica José Augusto Mourão, da Universidade Nacional de Lisboa.

O filósofo alemão Nietzsche – segundo Mourão um dos pais do niilismo, corrente de pensamento que nega ou dissolve qualquer fundamento último –, afirma que “Deus morreu”. Com isso ele pretende dizer que a crença no Deus cristão caiu em descrédito. Com o vazio dos deuses e das crenças, esvaziaram-se também valores, princípios, normas e categorias que neles se baseavam. “A decomposição duma doutrina cristã deixou a desordem, deixou um vazio em lugar das percepções essenciais de justiça social, de sentido da história humana, das relações entre o corpo e o espírito, do papel do saber na nossa conduta moral”, analisa.

Já Sílvio Gallo, acredita que por sermos conscientes, somos seres cindidos, fragmentados, sem uma essência que nos preencha. Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude. Ou seja: aquilo que nos torna incompletos é exatamente o que nos faz agir; se nada somos, de antemão, se não há uma essência que nos determine, podemos ser qualquer coisa.

Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude. Em outras palavras, nossa grandeza e nossa miséria consiste em sermos seres do vazio, da incompletude.

Viver num mundo vazio de deuses e crenças teria ainda, para José Mourão, outra conseqüência: a morte da literatura: “A literatura vive do imaginário, da utopia que implica a crença num mundo melhor e outro. A literatura está a morrer porque deixou de ser alimentada pela crença de um mundo (admirável porque outro)”.

O mundo repleto de imagens e informações é paradoxalmente o do vazio das palavras. Segundo Mourão, ao mesmo tempo em que a linguagem, como a literatura, pode representar coisas reais, as palavras podem ser não mais do que palavras. “Há um abismo que separa as palavras das coisas”, afirma ele. É o que acontece com palavras “mágicas” da publicidade e da política, exemplifica. Ajoelhamo-nos diante delas sem identificarmos o seu conteúdo, sem capturarmos o seu sentido, a essência do que representam. São palavras vazias.

Poder da técnica e vazio da política

O homem que deixou de acreditar em Deus e de submeter-se a ele tornou-se “o todo poderoso”. O progresso técnico seria o resultado deste homem onipotente: “O homem poderoso, faustiano, é hoje o cientista – que emerge da neurologia ou da biotecnologia, que reduz mesmo o bem e o mal ao biológico e que promete a imortalidade”, analisa Mourão.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vazio/rp_caroljusto/img1.jpg
Matrix (Matrix, Matrix reloaded e Matrix revolutions)
Série dirigida por Andy Wachowski e Larry Wachowski

Franklin Leopoldo e Silva, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), destaca que o homem perdeu o controle do processo civilizatório em decorrência do progresso científico e tecnológico. “Não é mais o homem que é autônomo no exercício da atividade técnica, mas é a técnica que se torna autônoma e a partir daí se desenvolve de maneira irrefletida”, explica. A conclusão do filósofo lembra algumas cenas de Matrix, o homem sendo “engolido” por máquinas todo-poderosas. Hoje o homem subordina-se ao que faz. Ele já não sabe porque faz e deixa de perguntar-se sobre isso. Seria o vazio da reflexão que permitiria a colonização do homem. Para Leopoldo e Silva esta é a base da tecnocracia. A técnica se confunde com o poder e deixa de estar a serviço dele. “Os meios deixam de estar sujeitos aos fins”, diz o professor. A esfera dos fins esvaziou-se e foi ocupada pela dos meios.

Na análise de Leopoldo e Silva, o poder da técnica esvaziou a política, que se diluiu na esfera econômica, numa tecnocracia economicista. “O triunfo da tecnocracia é a abolição da política”, explica. Entretanto, este vazio da política pode ser só aparente: a despolitização é uma estratégia política utilizada pela tecnocracia. Segundo o professor, escondido por trás da máscara de objetividade técnica estaria um projeto político de dominação transnacional. A base deste projeto é negar a política como deliberação, isto é, como exercício das palavras, da discussão. “A tecnoburocracia, que ocupou o vazio da deliberação política, despreza a palavra, trivializa e degrada a interação política que a palavra deveria proporcionar, no propósito, desgraçadamente bem-sucedido, de afirmar o caráter supérfluo do sujeito histórico como agente de transformação”, conclui Leopoldo e Silva.

O vazio político da ausência de deliberação elimina as possibilidades de projeção e planejamento do futuro. O futuro incerto antecipou-se: não representa mais uma possibilidade de ação porque se tornou presente e dado. Como dizem slogans de diversas propagandas, “o futuro já chegou!”. Para Leopoldo e Silva, o futuro foi “presentificado”, apropriado de maneira irrefletida e irreflexiva. O futuro ocupou o presente e mandou-o para trás, para o passado. Com isso, o presente ficou vazio.

O vazio cheio de possibilidades

Sílvio Gallo enxerga o vazio de outra forma. “Se pensamos o mundo como multiplicidade, o vazio não é um problema, ele é mais um constitutivo dessa multiplicidade. O vazio passa então a ser tomado de modo positivo, como possibilidade de traçar linhas de fuga, de inventar, de construir o futuro. Assim, as saídas não estão dadas, não estão definidas de antemão. É preciso inventá-las, é necessário criá-las”, avalia ele. O mundo fragmentado, vazio de crenças e de política, é, na opinião de Gallo, o que permite a ação. O homem está livre para ocupar espaços e com isso (re)criar crenças e a própria política.

Gallo se opõe aos pesquisadores que vêem a vida como uma totalidade cheia de sentido. “Se vejo o vazio, é porque antes o mundo era considerado ‘cheio', ‘pleno'. Mas será mesmo que o mundo foi, alguma vez, pleno de sentido, íntegro, completo?”, questiona ele. “Não será esta uma fantasia que construímos sobre o passado?”, continua. Para Gallo, o vazio, a incompletude, a fragmentação, a falta de essência e de sentido fazem parte da vida, do mundo e do ser humano. Por isso, aí, onde outros pensadores vêem um problema, ele vê uma solução. “O mundo em que vivemos é dinâmico, está aberto, em transformação constante. Esta abertura é justamente onde podemos encontrar possibilidade, projeto, construção”, completa.

Essas possibilidades para o futuro, o filósofo Gallo também encontra na política, no exercício da reflexão e da palavra. “O problema é que costumamos pensar o poder como plenitude, e a política como o exercício dessa plenitude. E quando a plenitude não se dá, incomoda-nos o vazio que fica em seu lugar”, pondera ele.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vazio/rp_caroljusto/img2.jpg
O show de Truman (1998), Peter Weir

O vazio é, para Gallo, o caminho para o pensamento, a criação e a ação. Num mundo onde a informação preenche tudo, onde há, referindo-se aos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, “o império da opinião”, Gallo vê no oposto, no vazio, uma saída. Se a opinião está na plenitude das informações, trata-se, então, de criar um vazio nesta plenitude, de rasgar o céu da opinião e ver o que está atrás dele”. Como no filme O show de Truman, é quando “o céu se rasga e o mundo cai” que a dúvida se instala, as certezas se dissolvem e torna-se preciso desconfiarmos de nós mesmos e do mundo, e irmos atrás das respostas. “Penso que esta é uma boa metáfora para a resistência hoje necessária. Precisamos desconfiar da opinião, inventar um vazio na plenitude de informações que torne possível que pensemos, que inventemos, que ajamos autonomamente, que façamos política (a verdadeira política)”, conclui Gallo.

Leia mais

Resenha Matrix
www.comciencia.br