Há
quem acredite que basta a genialidade de um jogador para definir o placar de
uma partida de futebol. Trata-se, no entanto, de um esporte coletivo e o
desempenho de uma equipe abrange não apenas o conjunto de atletas envolvidos
nos treinamentos, incluindo titulares e reservas: o tamanho de um time é bem
maior que isso. Hoje, muito antes de entrar em campo, há um verdadeiro exército
cuidando da equipe e, com o avanço da ciência, pesquisas têm sido realizadas
para investigar e testar métodos que auxiliem nas especificidades de cada
atleta e suas necessidades, evitando desgastes físicos excessivos e eventuais
contusões. Ainda é comum no futebol a contratação de ex-atletas para
o cargo de treinadores – geralmente aqueles que se destacaram durante o período
de atuação. Bruno Pasquarelli, professor de educação física da Universidade
Paulista (Unip), menciona o estudo de um aluno seu que mostra que a maioria dos
treinadores de clubes paulistas não possui graduação em educação física,
ciências do esporte ou ao menos curso de treinador de futebol. Porém, de acordo
com Miguel de Arruda, doutor em educação física e diretor associado da
Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a
maioria dos clubes conta com um completo grupo de profissionais: fisiologistas,
nutricionistas, psicólogos, médicos, terapeutas e massagistas. “Hoje, a grande
maioria dos preparadores físicos tem formação em educação física. Muitos têm
especialização em fisiologia, nutrição ou treinamento esportivo” comenta Arruda.
Segundo o pesquisador da Unicamp, a ciência aplicada aos
treinamentos aumenta significantemente o desempenho dos atletas, elevando a
longevidade esportiva. Assim, alguns jogadores com quase 40 anos conseguem
competir em bom nível, auxiliados pelo acompanhamento específico do seu
desempenho por especialistas. “Antigamente, não havia ciência em campo, o
jogador era submetido a diferentes cargas de treinos e a longevidade era cada
vez menor, com baixa qualidade de rendimento esportivo”, acrescenta.
Se, para a longevidade do atleta, a ciência aplicada ao
treinamento é algo crucial, sua importância é indiscutível no que se refere às
categorias de base, para os treinos de jovens a partir dos 10 anos “Meus dois
projetos são na categoria de base, pesquisando como se dá o crescimento e a
maturação, além do treino, desempenho, qualidade de vida atlética, sendo (os
atletas) cuidados desde os estágios iniciais. O trabalho é bem novo e é visível
a diferença no desenvolvimento desses meninos”, diz Arruda. Entre seus estudos,
está um artigo, escrito com colaboradores,
sobre o desenvolvimento da força explosiva durante o período de preparação de
jovens futebolistas durante e após a puberdade.
Para os jogadores iniciantes, é necessário um melhor
preparo, pois os frutos serão colhidos futuramente. “Em uma categoria de
base com meninos de 10 a 15 anos, por exemplo, as necessidades do treinador, do
professor, do pedagogo do esporte são diferentes das de quem está no futebol
profissional. As pesquisas atuais deveriam contextualizar a discussão com o
intuito de conhecer o corpo, a mente, o contexto social, o método de ensino, os
conteúdos a serem ensinados, a intervenção do professor etc. Crianças e
adolescentes são o público que mais pratica futebol no mundo todo e merecem,
portanto, um olhar investigativo por parte dos pesquisadores”, avalia
Pasquarelli, da Unip, que é doutorando em educação física na Unicamp.
Já
nas categorias profissionais, os clubes de futebol procuram oferecer treinos de
acordo com o potencial de cada atleta. São realizados ajustes com relação a
força, resistência e velocidade, e os jogadores são acompanhados de perto para
verificar as respostas do corpo. É perceptível a diferença entre os
treinamentos ao longo dos anos. “Os fisiologistas, quando eu atuava, faziam
mais testes de campo, corridas de velocidade, força de membros inferiores e
saltos”, lembra Arruda. Hoje, além desses, as comissões técnicas contam com
testes laboratoriais para mensurar os efeitos do treino, tais como volume
máximo de oxigênio de cada jogador (VO2 máximo), perfil hormonal,
excretas, saliva e sangue.
O
VO2 máximo indica, por exemplo, o volume máximo de oxigênio que o
corpo consegue levar aos tecidos por meio do sistema circulatório e utilizar,
de fato, na produção de energia. Como indicador de intensidade de treino, a
concentração de lactato pode ser rapidamente checada a partir de exames de
sangue. A análise hormonal de cortisol (o hormônio do estresse) e testosterona
(hormônio responsável pelas características masculinas) indicam a capacidade de
recuperação do atleta, pois em condições de treinamento excessivo, verificam-se
índices altos de cortisol e baixos de testosterona e, na recuperação física,
obtém-se o contrário.
Em
relação às análises biomecânicas, são utilizadas medidas antropométricas,
cálculos da massa corporal segundo um modelo matemático – que serve para
determinar, entre outros parâmetros, o centro de gravidade do corpo – e a
densitometria por DEXA (dual energy x-ray absorptiometry),
técnica usada para mensurar a densidade mineral óssea. Utilizando essas
técnicas, os preparadores físicos são capazes de analisar a evolução do volume
e da densidade óssea.
Clubes grandes versus pequenos
Clubes
considerados sérios pelos profissionais de educação física, mesmo sendo menores
ou menos conhecidos, geralmente não possuem expressivas diferenças se
comparados aos clubes grandes em relação à aplicação de ciência e tecnologia. “No
São Bernardo, por exemplo, temos uma estrutura de time grande. A preparação
realizada pelos clubes menores tem a mesma qualidade dos maiores, e muitas
vezes obtém-se resultados mais expressivos na parte física, pelo fato de terem mais tempo de preparação, compensando, em parte, a menor qualidade técnica
de alguns jogadores”, comenta Luciano Capelli, mestre em educação física pela Universidade
Federal Paulista (Unifesp) e fisiologista do São Bernardo Futebol Clube.
“Estive
envolvido por cinco anos em campeonatos nacionais em categorias de base, dois
anos no campeonato da Federação Paranaense e três no campeonato da Federação
Paulista. Encontrei profissionais muito bons em clubes menores. Não é
coincidência que os clubes com bons profissionais eram os que ‘dificultavam a
vida’ dos times maiores”, conta Pasquarelli.
A
especialização do profissional tem grande impacto no desenvolvimento e na evolução
do time e a pesquisa científica é fundamental, por isso é preciso um olhar
cuidadoso sobre os estudos de educação física no Brasil. “Consultando uma das
principais bases de dados (PubMed), verifiquei o aumento de aproximadamente 25%
no número de estudos relacionados ao futebol entre 2012 e 2013. Entretanto, não
podemos analisar os dados de forma somente quantitativa, temos que pensar no
quanto se utiliza desses estudos, de fato, na intervenção didático-pedagógica”,
pondera Pasquarelli.
Assim
como em outros ramos da pesquisa científica, muitas vezes o que é discutido no
meio acadêmico não é revertido para a prática social ou demora mais do que o
esperado para que isso aconteça. “Apesar da crescente produção científica,
ainda encontramos certa estagnação nos métodos de treinamento no futebol. Nem
sempre a pesquisa contempla os interesses e necessidades dos profissionais com
função de ensinar/treinar o futebol”, completa Pasquarelli.
A
tendência dos jogos adaptados
O pesquisador Renato Buscariolli de Oliveira, doutorando em biodinâmica
do esporte pelo Laboratório de Bioquímica do Exercício (Labex), da Unicamp, e preparador do Clube Atlético Penapolense
(CAP), é um dos que tem dedicado parte de tempo dentro e fora dos campos para
repensar as metodologias de treino. Em sua pesquisa de doutorado
“Sistematização de um modelo de periodização no futebol baseado nos jogos
desportivos coletivos: um estudo de caso”, ele aponta os benefícios dos
chamados jogos reduzidos na preparação dos jogadores, que hoje é sub utilizado
como ferramenta de treino. Nessa abordagem, ao invés das tradicionais sessões
de corrida amplamente utilizadas, ele aposta na ênfase de modelos de treinos
específicos, ou seja, inseridos na realidade do jogo.
Uma das características do futebol é o
caráter intermitente, no qual períodos curtos de alta intensidade (tiros de
corrida rápida) são intercalados por períodos mais longos de recuperação ativa
ou passiva. As ações de jogo realizam-se num contexto diversificado,
configurado a partir de uma intrincada trama de relações de oposição e
cooperação e, em geral, as atividades de alta intensidade são as que possuem
maior relação com o placar final das partidas. Assim, a variação de atividades
é alta e imprevisível – em média, em uma partida de futebol há entre 1000 a
1400 ações motoras.
Por isso, o futebol exige um jogador com alta
capacidade de adaptação às situações imprevisíveis, e isso faz com que os jogos
reduzidos tenham papel fundamental, embora não sejam hoje largamente aplicados
pelos treinadores. Esses jogos são adaptados para áreas pequenas, com poucos
jogadores e regras modificadas. “Uma das principais vantagens é que, ao mesmo
tempo em que exigem tomadas de decisão sob pressão de tempo, espaço e fadiga,
reproduzem a demanda de movimentos, a intensidade e as exigências técnicas dos
jogos oficiais. Além disso, em virtude da alta especificidade, facilitam o
desenvolvimento técnico-tático”, explica Oliveira.
São inúmeros os exemplos de que com a maior
profissionalização das equipes e a inserção irrevogável da ciência nos
treinamentos, devem perder cada vez mais espaço aqueles que não derem a devida
atenção ao avanço do conhecimento na área. Será cada vez menos surpreendente
que um clube pequeno com uma boa estrutura de treinamento, como o Penapolense,
jogue de igual pra igual e até elimine da competição um clube grande como o São
Paulo, como aconteceu na atual edição do Campeonato Paulista. Assim como é cada
vez mais evidente a evolução física de craques como Robinho e Neymar após a sua
ida para clubes europeus, o que mostra que o talento é indissociável do
trabalho físico. A ciência entrou em campo para ficar.
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