10/10/2008
Usar a intuição para rotular o que está e o que não está vivo ao nosso redor é aparentemente fácil. Uma planta em um vaso, um peixe no aquário, uma criança que passa correndo. Todos estão vivos (e como estão!). No entanto, para a biologia, área do conhecimento que se dedica ao estudo da vida, por mais paradoxo que possa parecer, não existe consenso sobre “o que é vida”.
Isso fica claro no livro What is life? Investigating the nature of life in the age of synthetic biology, publicado em abril deste ano. Ed Regis (Farrar Straus Giroux, 2008), por meio de uma narrativa que começa citando um encontro entre três cientistas e um filósofo no verão de 2002, na Itália, resgata discussões acerca da sempre frustrada tentativa de chegar a um conceito universal de vida, mas agora na interface com a biologia sintética.
A obra problematiza tal dificuldade tateando três eixos clássicos: para ser considerado vivo, o organismo precisa se reproduzir, evoluir e ter um metabolismo ativo. Um a um, Regis apresenta os argumentos que desbancam tais atributos. Uma pessoa que não deixa descendentes não é considerada viva? E os demais organismos que não se reproduzem, não são vivos?
A evolução nos moldes do paradigma darwiniano dominante, via seleção natural, também é questionada pelo doutor em filosofia pela Universidade de Nova Iorque. Nem tudo na natureza ocorre à luz da adaptação, e para tal Stephen Jay Gould e seu parceiro Richard Lewontin são acionados. Regis conta a história da reveladora viagem de Gould à basílica de San Marco, em Veneza, na Itália, e as idéias que certas estruturas arquitetônicas (spandrels) despertaram no paleontólogo. Surgiu o questionamento: será que a habilidade de evoluir é mesmo condição necessária para considerar viva uma entidade?
O metabolismo – uma série de reações químicas que convertem o alimento em estruturas do corpo e energia cinética – também é usado como mecanismo chave para definir a vida. Regis usa de sua notada capacidade em escrever sobre ciência – sua profissão em tempo integral, contribuindo para a Scientific American, Harper's Magazine, Wired, Discover e The New York Times – e descreve inúmeras histórias, resgatando figuras como o médico Santorio Santorio e descrevendo detalhes, por vezes dispensáveis, sobre o ciclo de Krebs (respiração celular) e a molécula de ATP (adenosina trifosfato, responsável pelo armazenamento de energia na célula). Tudo isso para levar o leitor a compreender a importância das mais diversas reações metabólicas para a sobrevivência de todo e qualquer tipo de organismo vivo. E já fornece pistas a respeito de seu posicionamento. Entre a reprodução (é possível viver sem) e o metabolismo (sem ele as conseqüências são extremamente sérias), “qual parece estar mais próximo da essência da vida?”, questiona. Mas há exceções: sementes e esporos são vivos enquanto dormentes?
Os argumentos são certamente muito mais profundos e contextualizados, citando nomes como os físicos Carl Sagan, Stephen Wolfram (A new kind of science, Wolfram Media Inc, 2002), e os filósofos Mark Bedau (How to understand the question “What is life?”, Bradford Books, 2004) e Édouard Macherey (Why I stopped worrying about the definition of life... and why you should as well, 2006), entre outros. Cita também a frase de Wolfram que resume as dificuldades: “No final, cada definição geral apresentada, inclui tanto sistemas que normalmente não são considerados vivos, quanto exclui os que são”.
Sem uma cronologia linear, os capítulos são construídos com idas e vindas aos séculos XVI e XVII até os tempos atuais, e borbulham, efervescem acontecimentos de meados do século XX. A leitura do livro, por mais agradável e leve, e ao mesmo tempo profunda, que seja, provoca certa angústia. Onde entra a vida sintética? O filósofo escritor se perde ao longo de sua narrativa, delongando em encaixar os clássicos e os atores atuais na discussão que propõe.
Mas vale a leitura pela síntese de achados da ciência contemporânea, inseridos numa interessante narrativa na qual personagens participantes do movimento atual da vida sintética, como Jack Szostak, Drew Endy e Tom Knight (BioBricks), Eckard Wimmer (pela síntese do primeiro organismo sintético, o vírus da pólio), entre outros, são apresentados. No entanto, fica evidente que seu amor manifesto é mesmo por Norman Packard, Steen Rasmussen, John McCaskill e o filósofo Mark Bedau, a quem ele chama de os "quatro mosqueteiros", em alusão ao clássico romance de Alexandre Dumas. Nomes que chamam atenção por suas contribuições para o avanço da biologia sintética e que, certamente, ainda terão muito o que dizer.
No verão de 2002, os "quatro mosqueteiros" decidiram que era o momento de trabalhar em um projeto importante, ambicioso e desafiador: criar vida. “Não uma simulação de vida. Não uma imitação de vida. Não vida falsa. Ao invés disso, vida real, uma entidade viva genuinamente nova”, sem os ingredientes biológicos corriqueiros como DNA, biomoléculas convencionais, núcleo, entre outros. O resultado, passados seis anos, foi a estruturação de uma série de instituições e redes de pesquisa com olhos voltados para a vida sintética: consórcio internacional Pace (Programmable Artificial Cell Evolution, liderado por McCaskill), empresa ProtoLife (Packard e Bedau) e ECLT (The European Center for Living Technology). Steen Rasmussen (LANL, Los Alamos National Laboratory), por sua vez, entrou com a idéia de protocélula como entidade viva mínima, composta por três estruturas: container feito de moléculas de ácido graxo (ou gorduras), um sistema metabólico primitivo e um novo tipo de material genético chamado PNA (ácido nucléico peptídico). A idéia do grupo foi então implantar e ampliar as idéias de Rasmussen.
Nesse contexto, fica praticamente de fora o tão comentado Craig Venter, visto pela mídia como protagonista da biologia sintética. Venter ficou mundialmente conhecido há quase dez anos, quando na liderança da empresa Celera Genomics, correu uma versão paralela do projeto genoma humano, concorrendo com iniciativas públicas do National Institute of Health. Atualmente, o biólogo empreendedor voltou suas atenções para a biologia sintética, fundando a empresa Synthetic Genomics, que objetiva modificar e gerar microorganismos para a produção de combustíveis alternativos.
Regis dedica apenas meia das 190 páginas para comentar que Venter sintetizou em laboratório o vírus phiX174. É possível que isso reflita certa resistência da comunidade acadêmica ao empresário, que, entre inúmeros feitos, gerou alarde por querer patentear uma vida gerada em laboratório. Por outro lado, os desafios venterianos, tanto técnicos quanto científicos, parecem mais simples do que os almejados pelo grupo da biologia sintética, preocupado em gerar “uma entidade viva genuinamente nova”, dedicando-se a estudar, por exemplo, sistemas adaptativos complexos.
O título escolhido pelo autor de What is life? é um tributo ao livro de mesmo nome escrito pelo físico Erwin Schrödinger, publicado em 1944 e um dos textos mais influentes da biologia do século XX. Talvez a mesma crítica que Regis aponta para o livro de Schrödinger (que ele não teria respondido à pergunta “O que é vida?”) possa ser aplicada em sua obra, que pouco enfatiza os questionamentos que a vida sintética traz para o conceito de vida. Mas conclui: “Aparentemente, há um único atributo significativo em comum entre uma célula sintética mínima e um corpo humano minimamente vivo mantido vivo por aparelhos que prolongam artificialmente a vida: metabolismo. O metabolismo é uma característica inescapável de todas as entidades vivas, desde os minimamente até os maximamente vivos”.
Todas as fragilidades e pontos fortes dos mais diversos conceitos de vida apresentados no livro extravasam os muros da academia e fazem parte de discussões recorrentes na sociedade, como aborto, eutanásia, células-tronco embrionárias. Para todas estas situações, que apelam a conceitos de vida, Ed Regis é categórico: “Há divisões de trabalho em muitas áreas da atividade humana”. “A ciência e a tecnologia podem manter uma pessoa viva artificialmente por períodos de tempo virtualmente arbitrários; mas a decisão de quanto desligar os aparelhos é uma questão moral, não científica”.
What is life? Investigating the nature of life in the age of synthetic biology
Ed Regis
Editora: Farrar, Straus and Giroux
198 páginas
2008
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