08/10/2009
A astronomia tornou-se uma “big science”: alguns projetos de bilhões de dólares só são viabilizados em colaborações internacionais. É assim com o DES, em que o Brasil tem foco temático bem claro, participando com competência em software. Para Nicolaci, o Sloan Digital Sky Survey (SDSS-III) e o Convection Rotation and Planetary Transits (Corot) também seriam projetos mais atraentes que comprar tempo de uso de telescópio. Nesta entrevista, ele apresenta opiniões firmes em relação à área no Brasil, apontando questões de prioridade, foco e gestão. Para a ausência de esprit de corps e o aproveitamento de sinergias, Nicolaci dá uma solução simples: sentar e conversar.
O estudo da astronomia hoje, muito diferente dos tempos de Copérnico, Kepler e Galileu, é essencialmente coletivo, com insights individuais. Nesse sentido, como se posiciona o Brasil em meio a grandes projetos internacionais?
Nicolaci - A grande mudança na forma de trabalhar em astronomia é recente. Até os anos 1990, era possível ter impacto com colaborações relativamente pequenas e custos pequenos, de centenas de milhares de dólares. Por exemplo, na década de 1980, pudemos dar uma importante contribuição para a cosmologia mapeando a distribuição espacial de galáxias no universo próximo com um grupo de menos de dez pesquisadores do Observatório Nacional (ON) e do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics. Atualmente, uma contribuição significativa exige projetos de várias dezenas de milhões de dólares, envolvendo pesquisadores e tecnologistas com diferentes expertises. Para viabilizar esses projetos, colaborações internacionais são organizadas, com um grande número de instituições e com centenas de pesquisadores. Esse é o caso do SDSS-III e do DES, ambos com um custo da ordem de US$ 50 milhões. Em resumo, a astronomia se tornou, nos últimos vinte anos, big science, da mesma forma que aconteceu com a física de altas energias. Quanto à nossa participação em projetos internacionais, é importante distinguir as duas diferentes formas que existem. Uma é a compra de tempo de telescópio, por meio da qual o Brasil tem 2,5% das noites no Gemini (no Chile e no Havaí) e 30% no Soar (no Chile). Embora tenha ajudado o desenvolvimento da área, na época em que esses acordos foram feitos, discordei da estratégia, que para mim, foi precoce. Comprar tempo não necessariamente aumenta ou estimula a colaboração com a comunidade internacional. Você obtém seus dados, desenvolve seus projetos, mas não existe necessariamente uma interação científica. Além do mais, o retorno científico é muito a longo prazo, como ilustra o caso do Soar, pois depende da construção de equipamentos, o que nunca é uma coisa trivial. A outra forma, como é o caso do DES e do SDSS-III, é o contrário. Você tem foco temático bem claro, participa da colaboração científica. Outro exemplo é a participação de um grupo brasileiro no projeto Corot, que pelo que sei, alavancou sua participação em troca do rastreamento do satélite em instalações brasileiras. De certa forma, essa é a estratégia adotada pela Nasa, que abandonou poucos grandes projetos por vários pequenos projetos com mais foco, atendendo a um espectro maior de interesses.
Uma das contribuições brasileiras e do Observatório Nacional para o DES, em termos de suporte, é o Projeto Estruturante Astrosoft. Como está seu desenvolvimento e o alcance de metas?
Nicolaci - O projeto Astrosoft tem sido um sucesso. Apesar de contar com uma equipe pequena de tecnologistas e pesquisadores, tem feito um enorme progresso em infraestrutura de hardware e software. Com apoio do MCT (Ministério de Ciência e Tecnologia), da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro) e da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), foi montado um pequeno centro de dados que serve de base para a implantação de um sistema voltado para o armazenamento, processamento e distribuição, para a América do Sul, do grande volume de dados gerados pelo DES (imagens) e pelo SDSS-III (imagens e espectros). Para isso, estamos elaborando um termo de cooperação entre o ON, o CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), o LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica) e a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), para viabilizar o acesso rápido a esses dados por toda a comunidade astronômica. O centro pretende ainda usar o equipamento e software para hospedar todos os dados produzidos por pesquisadores brasileiros, seja na forma bruta ou produtos científicos derivados, de forma a multiplicar o uso em diferentes projetos. Com esse esforço, pretendemos nos habilitar para futuros projetos em astronomia previstos para a próxima década, como o Large Synoptic Survey Telescope. Mais impressionante tem sido o desenvolvimento de software. No momento, a equipe brasileira está envolvida no desenvolvimento de uma pacote de redução das imagens da DECam (Câmera de Energia Escura), que será montada no Cerro-Tololo Inter-American Observatory (CTIO). O sistema será usado para avaliar a qualidade das imagens produzidas pela câmera. Mais importante ainda é o portal científico que está sendo desenvolvido para exploração dos dados do DES e do SDSS-III. O projeto Astrosoft, além de viabilizar o compromisso assumido perante a Finep e aos parceiros internacionais, de distribuir os dados dos levantamentos para a comunidade, pode ainda ser usado para armazenar todos os dados da astronomia brasileira, inclusive os provenientes de outras fontes, como o Soar e o Gemini. O projeto estruturante está dentro do cronograma do plano diretor, naquilo que depende do ON. No entanto, devido ao escopo do projeto, é necessária a contratação de novas pessoas para atingir os objetivos desejados. Uma coisa é clara: o desenvolvimento de software deve ser incentivado e preferido em relação ao desenvolvimento instrumental como moeda de troca em colaborações internacionais, já que a astronomia brasileira não tem tradição em desenvolver equipamentos, a indústria brasileira ainda é fraca em muitas áreas de relevância e os gastos são, em geral, em moeda estrangeira. Em compensação, no desenvolvimento de software, temos jovens inteligentes, entusiastas e competentes, que podem competir a nível internacional, como já está comprovado. Essa estratégia foi adotada para a nossa entrada no DES com sucesso.
Respeitadas as condições brasileiras, há muitos projetos considerados importantes sem a participação do país?
Nicolaci - O Brasil tem uma participação muito pequena nos grandes projetos internacionais e, portanto, é mais fácil listar os projetos nos quais participa. Aqui é importante distinguir entre projetos temáticos internacionais, como o DES, o SDSS-III, o Corot, e instalações internacionais como o Gemini e o Soar. No telescópio Gemini, repito, o Brasil tem 2,5% do tempo e é para a execução de observações de pesquisadores individuais. O que se pode fazer com 2,5% das noites? Muitas pessoas acham que sou contra estarmos no Gemini, o que não é verdade. É óbvio que é interessante se ter acesso a telescópios de grande porte. O que eu sou contrário é com relação à estratégia adotada, já que o pequeno número de noites favorece implicitamente certos tipos de pesquisa em detrimento de outros. Portanto, fazer parte do Gemini não é por si só bom para toda a comunidade, pois ela pode congelar investimentos em outros tipos de atividade. Além do mais, a meu ver, ao contrário do que é dito aos quatro ventos, o retorno científico feito não foi o desejado. Quanto à participação internacional, os países procuram colaborações que viabilizem suas pesquisas. O que há sempre é a garimpagem, e individual. Os Estados Unidos, por exemplo, criam uma agenda para uma década. O processo envolve toda a comunidade, com a organização de painéis e grupos de estudo, encontros, discussões que procuram definir as grandes questões e, a partir delas, sugerem (não definem) uma lista de prioridades para projetos que possam atacar esses problemas. Essas prioridades servem como um guia para as agências de financiamento. A partir disso, institutos e pesquisadores procuram organizar colaborações que viabilizem esses projetos. Hoje, os custos estão tão elevados que nem os Estados Unidos desenvolvem projetos sozinhos, cooperando com Europa e Japão.
Das observações a olho nu aos recursos tecnológicos de hoje, onde estão situados os marcos divisórios do instrumental da astronomia e o que se busca atualmente?
Nicolaci - O grande marco foi a transição da placa fotográfica para detectores de estado sólido, no final da década de 1970, que transformou a astronomia de uma ciência pobre em dados em uma cujo grande desafio é o gerenciamento de grande volume de dados. Atualmente, entre os grandes projetos instrumentais está a construção de telescópios ópticos de 40 a 100 metros de diâmetro, como o Large Synoptic Survey Telescope (LSST), com uma câmera grande-angular montada num telescópio de 8 metros e dedicado ao mapeamento do hemisfério sul, e interferômetros de rádio como o Alma ( Atacama Large Millimeter Array) e o SKA ( Square Kilometer Array), além de vários projetos espaciais. Todos esses projetos foram apresentados na reunião realizada no ON em maio de 2008 (“Uma espiadela no futuro da astronomia – A glimpse into the future of astronomy), que na minha opinião, foi um marco para a astronomia brasileira.
Falando de interdisciplinaridade, quais as ciências ou tecnologias que mais contribuem hoje para o desenvolvimento das hipóteses e descobertas na astronomia?
Nicolaci - Física, matemática, química e biologia. Tecnologias de detectores digitais (em diferentes intervalos de comprimento de ondas) e informática, sem as quais não haveria astronomia observacional.
Quais são, a seu ver, as grandes prioridades da astronomia e as grandes controvérsias atuais?
Nicolaci – As prioridades são desvendar a natureza da energia e matéria escura, tendo em vista que elas correspondem a 95% da composição do universo. Também a descoberta de planetas e, num contexto maior, a busca de vida extraterrestre, um problema não trivial, mas que a cada dia ganha em importância. No momento, acho que, em relação a essas questões, não existem grandes controvérsias como as que aconteceram no passado. Apenas várias propostas que precisam ser verificadas experimentalmente.
Em termos de gestão, o que é preciso para uma “aurora tropical” em nossa astronomia?
Nicolaci - O MCT demonstra boa vontade ao desenvolver um plano plurianual, mas o grande impedimento para sinergias é a desorganização da comunidade astronômica brasileira e a tentativa, por parte de certas lideranças, de controlar o debate a qualquer custo, impedindo a definição de uma estratégia de consenso de longo prazo. Certas propostas chegam a ser irresponsáveis, por não serem apropriadamente dimensionadas financeiramente. Só com a criação de fóruns representativos e inclusivos, podemos criar soluções que possam ser absorvidas no orçamento nacional e atendam aspirações de diferentes grupos de pesquisa com algum grau de racionalização de recursos humanos e financeiros. Você não pode fazer uma lista de projetos como se fosse um catálogo de compras, sem um debate técnico-científico que envolva grupos atuantes, e achar que isso é um plano estratégico de longo prazo envolvendo toda a comunidade. Já há algum tempo, proponho que o mais importante é organizar a astronomia e pensar em um processo para a definição dos grandes investimentos a serem feitos na área como um todo. Isso, em poucas palavras, requer: 1) Definir o que é um grande projeto que deve ser debatido nacionalmente. Não podemos inibir boas iniciativas de pesquisadores individuais. 2) Definir o papel das universidades e dos institutos de pesquisa do MCT no processo, já que a operação dos grandes projetos caberá a essas unidades. Caso contrário, para que elas existem? Isso é particularmente importante na astronomia, já que um dos institutos na área pretende funcionar como se representasse a astronomia do MCT e vem procurando ocupar, na minha opinião, indevidamente, as funções das cinco unidades de pesquisa do MCT que atuam na área. 3) Deve haver uma maior coordenação dessas unidades de pesquisa para que haja mais projetos integrados, maior compartilhamento de recursos humanos e de missões, e que, em conjunto, ajam como representantes do MCT no âmbito nacional e internacional. 4) A implementação de processos de gestão de projetos, de tal forma a evitar fracassos. Isso exige maior atenção aos problemas de gestão e acompanhamento de grandes projetos financiados com recursos públicos, o que não é muito usual no Brasil. Como é o costume em todo o mundo, todo projeto de porte tem que ser revisto periodicamente por um painel de especialistas, para assegurar que está obedecendo o cronograma e o orçamento proposto, e se necessário, fazer as devidas correções. O DES, por exemplo, passa anualmente por duas reviews, uma pelos diretores dos principais institutos dos Estados Unidos envolvidos – de onde vem grande parte do dinheiro –, e depois, pelo Departamento de Energia e pela National Science Foundation (NSF). São apresentações de dois ou três dias e todos os aspectos do projeto são analisados, da parte financeira à científica, software, hardware. No fim, fazem recomendações bem específicas. No Brasil, isso não existe, com terríveis consequências conhecidas por todos nós. Infelizmente, pelo que eu sei, essa discussão já foi atropelada, com cada grupo alardeando seu projeto favorito, como se fosse a grande solução para todos os males da astronomia nacional. O que me preocupa é saber como será feito o critério de seleção, já que o próprio processo não foi debatido. A culpa não é do MCT, mas sim de um lobby feito por pessoas que estão mais interessadas no seu prestígio pessoal do que nos resultados e no legado que seria deixado para a nossa área.
A astronomia estaria hoje diante de uma crise, uma eclipse de criatividade, como deu a entender Simon White, do Instituto Max Planck, em recente entrevista à Folha de S. Paulo ?
Nicolaci - Não acho que existe nenhuma crise e sim um grande problema que tem que ser atacado tanto teórica como observacionalmente, o que, aliás, é sempre o caso. É de crise em crise que a ciência avança. Como sempre, precisamos de modelos e de observações que comprovem as previsões desses modelos.
Em 2008 e neste ano, o Brasil sediou encontros relevantes, como "Uma espiadela no futuro da astronomia" e a XXVII Assembleia Geral da União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês). Que contribuições e resultados de curto prazo esses eventos trouxeram?
Nicolaci - Ambos contribuíram de forma diferente. A reunião Glimpse (espiadela) foi, a meu ver, um despertar para a comunidade brasileira se posicionar para a próxima década. Até então, o debate se resumia a aumentar o tempo de acesso ao Gemini e financiar novas instrumentações para o Gemini e o Soar. Desde então, já foram propostos ao MCT, mas de forma desorganizada, vários projetos, todos apresentados no Glimpse. Já a IAU é uma reunião internacional tradicional, que serviu para mostrar à população brasileira, em especial aos cariocas, a força da astronomia. Essa reunião também deu a oportunidade de jovens pesquisadores conhecerem as pessoas atrás dos nomes nos artigos lidos para suas pesquisas.
Existe evasão de cérebros na astronomia e astrofísica do Brasil para outros centros?
Nicolaci - Não numa escala assustadora. Alguns bolsistas sanduíche ou pós-doc, após conhecerem toda a infra-estrutura das grandes universidades, acabam não voltando, ante a perspectiva de não conseguirem sequer um emprego temporário no Brasil. Deveria haver uma política de absorção pelos próprios institutos do MCT, fornecendo uma bolsa de longo prazo, talvez cinco anos, para que mostrem sua qualidade, visando depois posições melhores também nas universidades.
Quanto à participação da iniciativa privada no Brasil, em termos de fomento à pesquisa e parcerias, ela está aquém de Europa e Estados Unidos?
Nicolaci - A participação da iniciativa privada brasileira é praticamente inexistente, assim como a filantrópica. Isso é uma pena, já que esta última é que permitiu a construção dos telescópios Keck (Havaí), financiou grande parte do Sloan (Novo México), entre muitas outras parcerias de fundações privadas. Normalmente, os projetos são financiados pela parceria de instituições como NSF, Departamento de Energia, Nasa e fundações privadas.
O que o senhor diria sobre as pseudociências e protociências que orbitam a astronomia?
Nicolaci - É importante que a astronomia seja vista como uma das ciências mais completas, pois ela tenta responder todas as grandes perguntas feitas pela humanidade – isto é, a origem do universo, das galáxias, das estrelas, dos planetas e da vida como conhecemos, usando ciências como a física, a matemática, a química e a biologia nessa tentativa. No entanto, há duas coisas muito prejudiciais para a astronomia. A associação com astrologia – que só faz um desserviço – e com a imagem do astrônomo clássico, místico. Não é isso que temos que vender, mas, sim, uma ciência extremamente moderna, de altíssima tecnologia e exigências. Em termos de protociências, há uma que eu acho um esforço válido: a astrobiologia, se feita com o devido zelo e rigor científico.
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