A formação de pesquisadores altamente qualificados e a preservação do associado progresso da ciência são tarefas essenciais da universidade contemporânea. Entretanto, quais são as condições necessárias para que esses objetivos sejam atingidos?
Para a identificação de algumas dessas condições, talvez seja útil lembrar que os mais reconhecidos analistas da História das Ideias admitem que a ciência contemporânea é empreendimento fundamentalmente social, nunca circunscrito à órbita individual de um iluminado, mas sim fruto do intercâmbio crítico entre profissionais competentes. Mesmo quando lembramos nomes marcantes do cenário científico dos séculos dezenove e vinte, como Darwin e Einstein ou, na órbita das ciências humanas, Marx e Weber, é impossível não se levar em conta o contexto crítico em que atuaram, e suas dívidas – e conscientes afastamentos – em relação a outros tantos autores que, como eles, se preocuparam com as questões básicas de seus respectivos campos. É do constante diálogo intelectual que surgem novos enfoques, conjecturas originais e respeitáveis, que posteriormente serão aceitas, ou não, conforme o crivo crítico da comunidade acadêmica.
Depreende-se, portanto, que uma das condições essenciais à preservação do progresso e à caracterização do competente pesquisador científico seja a do engajamento de todos, pesquisadores individuais e comunidade em geral, no fluxo amplo de comunicação científica: o investigador deve ter acesso às ideias correntes em seu campo e em seu tempo, tanto quanto deve participar do circuito com a exposição de sua própria contribuição ao debate acadêmico. Por mais maravilhosa que seja, uma contribuição científica só acarretará avanço genuíno quando e se estiver ao alcance de seus pares. Uma bela ideia trancada em uma gaveta nunca implicará aperfeiçoamento científico, a não ser que seja resgatada de seu claustro e apresentada à avaliação da comunidade. E o mesmo pode ser dito quanto ao pesquisador individual considerado como receptor (e não apenas gerador) de conhecimento: a não ser que se integre no circuito de informação e debate de seus pares acadêmicos, não poderá emprestar seu tirocínio crítico às conjecturas que analisa e também não assimilará o universo disciplinar de ideias que dominam seu campo de atuação. Em síntese, pode-se dizer que o pesquisador contemporâneo é necessariamente um ser comunitário, e por mais heroica que seja a trajetória de um Robinson Crusoé, não é desse heroísmo que é pavimentado o caminho heroico da ciência.
Dado que a comunicação científica é elemento constitutivo da formação de pesquisadores e do progresso científico, não é de se admirar que qualquer aperfeiçoamento dessa rede de intercâmbio refletirá em vantagens para a academia e sobre o avanço da pesquisa. Nesse contexto, cabe observar que um dos desafios concretos que assolam a universidade atual decorre paradoxalmente de sua própria pujança. Nunca houve tamanho fluxo de produção acadêmica. De ano para ano, universidades de todos os recantos do mundo apresentam números cada vez mais impressionantes e o universo de dissertações e teses defendidas alcança dimensões antes inimaginadas. Evidentemente, temos aqui um resultado que pode ser considerado alvissareiro: a universidade contemporânea pode e deve estimular a formação de pesquisadores, e os caminhos canônicos para isso passam pela elaboração de textos acadêmicos, tipicamente dissertações e teses. No entanto, esses conteúdos estariam sendo apropriadamente integrados à rede de diálogo acadêmico? O dinamismo demonstrado pelas universidades na produção de seus textos não evidencia um profundo descompasso paralelo em relação à produção e distribuição editoriais daqueles conteúdos a ponto de tornar cada vez mais difícil o diálogo entre os praticantes de uma disciplina?
Alguns autores afirmam ser exatamente esse o quadro que enfrentamos hoje. A própria massa da produção acadêmica, de um lado, torna impossível que as editoras disponíveis publiquem mesmo a parcela mais competente desse conjunto e, de outro, impede uma distribuição rápida e ágil que chegue até os leitores potenciais qualificados, nacionais ou internacionais. Assim, parcela significativa das teses produzidas é fadada ao esquecimento, e mesmo quando publicadas em formato livro, por exemplo, ainda precisam trilhar percurso difícil e incerto até que seu leitor ou interlocutor apropriado seja alcançado. Independentemente do detalhamento desse cenário - que pode variar e efetivamente muda de país para país e conforme a subárea de conhecimento -, é fácil encontrar no dia a dia da universidade pesquisadores angustiados pela ausência de um canal editorial para os seus trabalhos; e, da mesma forma, também não é rara a queixa de autores e editoras universitárias (ou mesmo de promotores de ações editoriais isoladas promovidas pelas universidades) de que os livros afinal publicados não vendem e se avolumam nos estoques. Em ambas essas situações, verifica-se o pesadelo anunciado: mesmo que o pesquisador cumpra todos os passos usualmente exigíveis da atividade acadêmica e sua investigação chegue a resultados notáveis, isso não garante sua participação no circuito acadêmico-científico, dado que sua produção não constitui peça editorialmente eficiente nesse mesmo circuito. Caso as pesquisas não sejam publicadas ou, se publicadas, não circulem e não sejam acessíveis, não podem desempenhar seu papel acadêmico fundamental.
É em meio a esse cenário amplo e preocupante que a Pró-Reitoria de Pós-Graduação (Propg) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Fundação Editora Unesp (FEU) inauguraram, em 2009, o Programa de Publicações Digitais. Nosso objetivo imediato foi o de criar um braço editorial adicional que ampliasse o acesso dos pesquisadores da Unesp à edição, ao mesmo tempo em que se usufrui da típica agilidade e eficácia da plataforma digital na comunicação científica. Dessa forma, pretendeu-se contribuir para o fortalecimento dos canais clássicos de comunicação acadêmica e indicar um caminho possível para atenuar as já citadas restrições que contemporaneamente afligem o debate interno à comunidade científica. Para isso, estabeleceu-se mecânica prática de captação de originais. Todos os programas de pós-graduação em ciências humanas da Unesp foram convidados a estruturar conselhos editoriais locais capazes de selecionar, a cada ano, dois textos dentre aqueles produzidos por alunos, pesquisadores e docentes do programa respectivo. Assim, cabe a cada conselho de programa de pós-graduação a responsabilidade da escolha e o encaminhamento dos textos para a Editora. À Editora cabe desempenhar seu papel regular de preparação editorial do original e posterior digitalização e inserção no site www.culturaacademica.com.br, onde se disponibiliza o acesso e download dos diversos livros. Saliente-se que tal disponibilização é gratuita, ação coerente com o papel previsto para uma universidade pública, que retribui sua produção à sociedade que a gerou e patrocinou.
Após três anos de atividade, mesmo um exame superficial confirma que nossos objetivos originais foram plenamente atingidos. De um lado, o programa multiplicou a capacidade de produção editorial prevista pelos modelos corriqueiros. Conteúdos digitais, na medida em que prescindem da impressão gráfica tradicional, são significativamente mais baratos, permitindo, com os mesmos recursos, a elaboração de um número muito maior de títulos. De outro lado, ponto talvez ainda mais importante, construiu-se um acervo digital capaz de alcançar um público que de outra forma não seria atingido. Ou seja, alicerçou-se um canal eficaz para a distribuição dos livros produzidos, canal que dá acesso mesmo a regiões, como a Amazônia, normalmente alheias ao comércio livreiro, e isso em um momento em que a rede de livrarias no Brasil experimenta um gradual encolhimento.
Os números de publicações e downloads das obras editadas corroboram o sucesso desse programa. Desde o lançamento da leva inaugural de livros, no primeiro trimestre de 2010, chegamos, no início de 2012, a um universo de 138 títulos publicados, oriundos de praticamente todas as subáreas das ciências humanas. E os acessos e downloads recebidos confirmam, por sua vez, um avanço constante na recepção desses textos. De fato, durante os primeiros cinco meses deste ano, chegou-se à cifra marcante de 100.000 downloads, 88% dos quais promovidos por leitores com nível universitário, incluindo-se aí 6.700 com doutorado e 17.000 com mestrado. Mais que o número de downloads em si, é notável que se tenha chegado a um montante equivalente àquele alcançado ao longo de todo o ano anterior. Tudo leva a crer que o ímpeto da comunicação digital esteja se acelerando e que tenha se aprofundado o reconhecimento dessa série entre o público universitário. Na esteira disso, observa-se que a grande maioria desses títulos foram devidamente incluídos na plataforma Scielo Livros, elaborada com títulos representativos da produção científica brasileira.
A constituição do acervo do Programa de Publicações Digitais da Unesp é tarefa ainda em andamento. A intenção é a de se concretizar um veio constante de publicações para os próximos anos, de modo a constituir um ponto de referência editorial que franqueie um site confiável e de qualidade, que dê ao interessado um porto seguro de conteúdos academicamente sólidos em meio a um universo digital cada vez mais caótico e superpovoado. Temos a esperança fundada de que essa iniciativa da Unesp seja sucedida por outros esforços, de outras instituições de fomento, ensino e pesquisa, para o fortalecimento das plataformas editoriais digitais, tão necessárias à academia brasileira. Por ora, cabe-nos apenas saudar os resultados até aqui obtidos e convidar toda a comunidade acadêmica para que visite essa coleção, escolha seu livro e usufrua dos conteúdos disponibilizados.
Marilza Vieira Cunha Rudge é pró-reitora de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora da Faculdade de Medicina, campus de Botucatu.
Jézio Hernani Bomfim Gutierre é editor executivo da Editora Unesp e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências, campus de Marília.
|