Não é qualquer edifício que consegue ser um Guggenheim. Quando é dada maior ênfase à imagem, o projeto final pode acabar com pouca funcionalidade. Quando a técnica prevalece, o aspecto resultante pode não chamar a atenção do público. O equilíbrio entre configuração espacial, engenharia e lugar parece ser a receita para a arquitetura atingir o status de arte. Mas, como essa receita pode ser executada de diversas formas, vale a pena detalhar a multiplicidade de soluções propostas pelos arquitetos contemporâneos em destaque no Brasil e no mundo.
Durante o Renascimento, a racionalidade propiciada pela emergência da matemática não afetou apenas a prática científica (ver “Homem-máquina e o progresso da ciência”, mas todas as áreas do conhecimento. Dentre elas, a arquitetura, a partir de uma interpretação matemática da realidade, configurou-se como arte no espaço urbano. A Basílica di Santa Maria Del Fiore, em Florença, por exemplo, é uma das expressões artísticas mais notáveis da época. Com início no século XII, sua construção marcou a história da arquitetura mundial. Nas palavras de Giorgio Vasari, pintor e arquiteto italiano, “a cúpula projetada por Brunelleschi eleva-se de tal forma que se mistura aos montes de Florença”, como revela Eunice Abascal no texto “Cidade e arquitetura contemporânea: uma relação necessária”.
Mas a cidade renascentista já não existe. Os parâmetros e meios de representação do espaço dessa época não são mais suficientes para retratar o mundo contemporâneo, cuja mobilidade e fluxo de informações, pessoas e mercadorias parecem contrariar a lógica da identidade. Tomando São Paulo como referência dessa nova realidade, Abascal diz que se trata de “uma totalidade impossível de representar, fragmentada e palco de profundas desigualdades, dilacerada por sistemas de vias e acessos. Entretanto, buscamos a identidade, o reconhecimento na diversidade, o lugar em meio à rede de nós ou fragmentos urbanos”.
Diante dessa dualidade entre lugar e não-lugar, quais seriam as possibilidades da arquitetura contemporânea expressar-se artisticamente?
Ao falar em contemporâneo, quase sempre buscamos um marco para datar o momento de transição entre a modernidade e a contemporaneidade. No caso da ciência, a ruptura do paradigma mecanicista é reconhecida como um processo que se deu por volta de 1930 com a ascensão da mecânica quântica. Para a arquitetura, a divisão não tem muita consistência conceitual. Segundo Renato Anelli, coordenador da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, “quando classificamos o moderno como algo reduzido às vanguardas do entre-guerras, não conseguimos entender como os princípios daquela produção se mantêm até hoje em trabalhos como os do arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha. O limite entre moderno e contemporâneo tende a se deslocar com o passar do tempo, o que revela a sua fragilidade. Assim, podemos dizer que toda arquitetura já foi um dia contemporânea”.
Sem, então, buscar uma definição do que seria o contemporâneo e assumindo que o termo se aplica à atualidade, a arquitetura pode ser interpretada artisticamente sob três instâncias, de acordo com Marcos Tognon, professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas: imagem, técnica e lugar (assista ao vídeo Arquitetura Contemporânea no Brasil). A imagem seria o modo com que a arquitetura se configura na paisagem; a técnica estaria relacionada com a engenharia necessária para vencer a gravidade; e o lugar, à forma como a arquitetura se sedimenta num dado local. Cada uma dessas três ênfases pode ser ainda ampliada em várias dimensões, como a questão da solução formal, plástica e estrutural, ou, até mesmo, a economia de materiais para solucionar as questões relacionadas à técnica. Quando o projeto consegue abarcar bem essas três ênfases, dentro das aspirações sociais, então não é difícil entender seu reconhecimento e valor artístico.
Destaques artísticos pelo mundo
Se o Museu Guggenheim de Nova Iorque (1959) já impressionava pela sua arquitetura arrojada, dadas as formas geométricas e camadas em sobreposição, o que pode ser dito sobre o Guggenheim de Bilbao, na Espanha, que foi inaugurado quase 40 anos mais tarde? As superfícies ondulantes de titânio se contorcem num conturbado arranjo que se unifica no topo numa espécie de flor metálica. “Nada sugere unidade e a fragmentação é a metáfora arquitetônica que serve para descrever a realidade à nossa volta. Pluralidade, descontinuidade, ruptura estão entre as características dos objetos arquitetônicos contemporâneos”, afirma Renato Leão Rego, professor do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá (Guggenheim Bilbao Museo, Frank O Gehry, 1991-97).
Essa fragmentação, que se torna recorrente em diversas outras obras contemporâneas, nada mais é do que um recurso para resgatar a identidade da cidade, cuja ênfase ao lugar é tão importante quanto à da imagem. No caso do Guggenheim, o titânio utilizado em suas superfícies ondulantes é uma liga metálica e Bilbao está justamente localizada numa região de extração de minério de ferro, o que mostra a forte correlação entre os materiais utilizados e o entorno. Além disso, o museu foi construído sob uma base de titânio de modo a lembrar um grande navio, o que também resgata a importância da atividade portuária da capital basca.
Outro exemplo típico da contemporaneidade é o Opera House, em Sidney, cuja cobertura em cerâmica faz lembrar um balé de barcos a vela deslizando pelo mar. O design expressionista foi um desafio à arquitetura e engenharia da época, que não dispunha da técnica necessária para executá-lo, ficando o projeto atrasado em 20 anos até ser concluído em 1973. Do mesmo modo que o Guggenheim Bilbao e diversas obras contemporâneas, foi construído sobre uma plataforma que lhe permitiu recriar o espaço aberto e valorizar o lugar, como explica o arquiteto Julio Collares, em artigo sobre o idealizador do prédio, o dinamarquês Jørn Utzon. O Opera House está tão integrado à paisagem que mais parece uma embarcação atracada no porto do que uma casa de espetáculos.
Opera House, Austrália (1973) Foto: Fernanda Alves
Destaques pelo Brasil contemporâneo
“Não podemos falar de arquitetura contemporânea no Brasil sem nos referirmos à Brasília (leia “A Brasília utópica e seu lado B”) que representou um momento fundamental no século XX para um reconhecimento interno e externo da arquitetura brasileira em sua especificidade”, afirma Tognon. E completa: “Se Brasília é o marco zero de nossa arquitetura contemporânea é porque, apesar de sua porosidade às grandes tendências internacionais, procurou recriar relações muito específicas de identidade com seu território”.
Projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, Brasília é a expressão do Brasil como uma nação moderna, explica Renato Anelli, da USP. Nesse caso, ao invés de resgatar a identidade da cidade, o objetivo era descontextualizar, simbolizar uma ruptura com o Brasil colonial para criar algo totalmente novo. “Explorando as potencialidades da construção em concreto armado, desenhado de modo a representar a natureza do país – sinuosidade do relevo e silhuetas antropomórficas – Niemeyer criou imagens de rápida assimilação visual, como as colunas do Palácio da Alvorada, a Catedral de Brasília e o Congresso Nacional”.
Contudo, o trabalho de Niemeyer não pode ser reduzido à imagem, uma vez que suas obras também revelam uma preocupação com a função no espaço. “Um sinal claro disso é quando ele desenha o famoso olho que deslumbra os eixos de percurso, herança de Le Corbusier”, explica Tognon. Isso significa que tanto a cidade como as edificações de Brasília foram planejadas para ter funcionalidade, garantindo, por exemplo, a boa circulação de pessoas.
O sistema de eixos na forma de avião, proposto pelo plano piloto de Lúcio Costa, também garantiu mobilidade à capital, além de se constituir como símbolo do poder. O arqueamento da linha horizontal de modo a encaixar na grande lagoa (3) foi não só uma solução criativa às características topográficas da região, como também bastante significativa por partir de uma figura muito simples, mas tradicional ao povo brasileiro, que é a cruz (1).
Croquis de Lúcio Costa para Projeto Piloto de Brasília (1957) Imagem retirada do Relatório do Plano Piloto de Brasília, disponibilizado pelo Arquivo Público do Distrito Federal
Além de Niemeyer, diversos outros arquitetos marcaram a multiplicidade da arquitetura contemporânea no final do século XX no Brasil, como João Filgueiras Lima (Lelé) com a Rede Sarah de Hospitais, Paulo Mendes da Rocha com a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Zanine Caldas e suas técnicas vernaculares, Eolo Maia com a Praça do Timirim e Lina Bo Bardi com a Casa de Vidro.
A arquiteta italiana, por exemplo, trouxe para o Brasil uma vertente voltada para a valorização da cultura popular sem entrar em contradição com o suposto ideal da modernidade. Para Bo Bardi, tal característica pode ser contemplada no projeto do Sesc Pompéia, centro de lazer que abriga projetos artísticos e culturais em uma área central de São Paulo, idealizado a partir de uma estrutura já existente de uma antiga fábrica de geladeiras, sem que fosse preciso descaracterizá-la.
Já a Casa de Vidro, de acordo com as palavras de Anelli, que também é membro do conselho curador do Instituto Lina Bo Bardi, é “uma obra marcada pela radicalidade, dada a transparência em três de seus lados e a suspensão em relação ao solo. A integração com a Mata Atlântica ao redor criou certa intimidade entre seu espaço interior e a natureza circundante”. Essa transparência das paredes, associada à falta de divisórias internas, foi propícia para um ensaio do que viria ser o Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), o imponente prédio localizado na Avenida Paulista, apoiado sobre quatro gigantescos pilares pintados de vermelho, cujo vão livre, que se estende por mais de 70 metros, é o que chama mais atenção. Dentre essa multiplicidade de soluções, espera-se que a arquitetura prossiga com sua atuação que compreende a ressignificação do espaço, consolidando-se como arte não só do ponto de vista estético, mas também da identidade e funcionalidade no mundo contemporâneo.
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