“Brasil
e Portugal: mais que parceiros, irmãos”
(slogan
do estande português – Bienal do Livro – São Paulo,
2000)
A
frase acima é emblemática das relações
entre Brasil e Portugal durante a década de 1990. Envolvidos
pelo cenário celebrativo dos “500 anos de descobrimento”,
os dois países colocaram-se mutuamente em destaque, passando a
freqüentar com uma assiduidade inédita a mídia e
os veículos de imprensa um do outro. De fato, uma certa
distância em que se mantiveram durante os anos anteriores foi
se rompendo por diferentes meios e, entre os diversos eventos que se
conjugaram em torno desse processo de aproximação, dois
podem ser considerados cruciais: os investimentos portugueses no
Brasil a partir de 1997 e o início de uma intensa migração
de brasileiros para Portugal.
Quanto
aos investimentos, o Brasil saído de uma ditadura
engajou-se num processo de privatizações abertas
ao capital estrangeiro que, após o plano Real, e sob a
justificativa de estabilização econômica, avançou
década adentro gerando grandes movimentações
financeiras em setores fundamentais da economia. Paralelamente em
Portugal, enquanto a injeção de fundos da União
Européia atingia seu auge, criaram-se diversas iniciativas
estatais de estímulo à internacionalização
da economia portuguesa, com base na idéia de que essa era uma
etapa necessária para a inserção definitiva de
Portugal como membro da UE. Nesse contexto, Portugal tornou-se o
terceiro maior investidor estrangeiro no Brasil (de 1997 a 2000), e
o Brasil por sua vez, o principal
destino dos investimentos portugueses no mesmo período.
Na
contracorrente dos fluxos de capitais que recebeu, o Brasil se
consolidou como um exportador de migrantes e Portugal, embora
continuasse um tradicional território de emigração,
foi surpreendido com a condição de novo destino
imigratório recebendo representativos contingentes migrantes
oriundos principalmente de suas ex-colônias africanas, do leste
europeu e do Brasil. No espaço de uma década, os
migrantes brasileiros tornaram-se uma das principais populações
estrangeiras em território português e Portugal, por sua
vez, um dos principais destinos da diáspora brasileira em
formação.
As
relações entre Brasil e Portugal, portanto, foram se
redesenhando no decorrer dos anos noventa. Porém, o novo
quadro dessas relações com novos problemas e novos
interesses em jogo foi buscar o seu repertório discursivo nas
memórias do passado colonial, trazendo à tona
estereótipos e preconceitos recíprocos dos mais
inofensivos até mesmo os francamente xenofóbicos. A
particularidade desse fenômeno compõe mais um capítulo
de uma longa história das relações entre as duas
nações, caracterizada por sua intermitência e
ambivalência. De fato, as próprias escolhas dos
investimentos portugueses pelo Brasil e da migração
brasileira para Portugal sugerem a importância que um país
tem para o outro, talvez na condição de uma primeira
externalidade, menos externa que outras. Antes, a migração
portuguesa para o Brasil e os investimentos brasileiros (ou de
migrantes portugueses do Brasil) em Portugal já tinham apelado
à essa mesma lógica. Contudo é a recorrente
significação desses novos eventos num horizonte
referido às figuras de Portugal-Metrópole e
Brasil-Colônia que nos coloca diante de uma atualidade e de
uma inquietude duradoura sobre o passado.
Foi
dentro dessa universo simbólico que a presença de
migrantes brasileiros em Portugal foi progressivamente sendo
interpretada como uma “invasão”. O caminho que levou à
hostilidade portuguesa contra a migração brasileira
sofreu, de início, a influência do caso dos dentistas
brasileiros, cujos diplomas foram contestados em Portugal pela
associação de dentistas portugueses. A repercussão
do caso se deu por conta da utilização de
representações recíprocas preconceituosas sobre
brasileiros e portugueses o que transformou uma discussão de
classe profissional numa defesa de interesses nacionais de parte à
parte. Nos anos seguintes, migrantes brasileiros de outras classes
sociais, com baixa escolaridade e pouca qualificação
profissional continuaram a seguir a mesma rota, atraídos pela
idéia de Portugal como uma porta de entrada para a Europa ou
mesmo uma passagem facilitada para os Estados Unidos. É dessa
mesma época, a adesão portuguesa às resoluções
do Tratado de Schengen, que restringiu as entradas dos cidadãos
dos países não aderentes ao território
português. O estatuto privilegiado de brasileiros em Portugal e
portugueses no Brasil, fruto de tratados diplomáticos firmados
a partir de 1953, foi fortemente abalado com a apreensão e
deportação de brasileiros nos aeroportos portugueses e
a resposta dada na mesma moeda pelo governo brasileiro. As discussões
entre autoridades dos dois países expôs publicamente
visões estereotipadas e preconceitos mútuos antes
restritos ao cotidiano dos migrantes brasileiros em Portugal ou
portugueses no Brasil.
Mais
ao fim da década, a entrada de capitais portugueses no Brasil
ganhou o emblemático apelido de “redescoberta”, trazendo a
reboque toda uma série de imagens e discursos com referência
ao mito do descobrimento. A publicidade das empresas e o vocabulário
da mídia muniram-se de caravelas e outros símbolos para
noticiar uma nova chegada dos portugueses ao Brasil. Nas palavras do
então 1º Ministro português, Antonio Guterrez, as
oportunidades de negócios faziam do Brasil novamente a “jóia
da Coroa”. O momento dessas referências parecia dos mais
propícios às vésperas dos 500 anos da chegada da
frota de Cabral à terra de Vera Cruz e fazia eco a uma extensa
agenda comemorativa programada pelos dois países para
comemorar o 22 de abril. Contudo, a mobilização
empreendida no âmbito estatal serviu antes para tornar nítida
uma forte diferença de sentido da data para portugueses e para
brasileiros, além das diferentes interpretações
que os diferentes setores das duas sociedades nacionais tinham sobre
o simbolismo do 22 de abril. Um debate público deliberadamente
evitado sobre as relações de Brasil e Portugal acabou
por ocorrer de improviso. Entre a aventura dos descobridores e o
inferno dos degredados, índios e escravos não houve
comemoração possível. A contestação,
auto-batizada de “outros 500” tomou de assalto o clima
comemorativo e fez a sua própria festa.
As
discussões e os conflitos relativos às comemorações
dos “500 anos” atrelados à publicidade dos investimentos
portugueses e as medidas de restrição e a hostilidade à
migração de brasileiros em Portugal, tiveram em comum a
busca de seus argumentos em categorias referidas à relação
colonizador-metrópole. A invasão e a redescoberta, a
malandragem brasileira e a cobiça portuguesa, a degeneração
tropical e a estupidez ibérica, dentre outras visões
preconceituosas estiveram presentes em imagens, palavras,
ressentimentos e referências implícitas formamdo a teia
discursiva na qual se narravam os eventos. No mais das vezes, como
solução das querelas, o apelo pacificador foi feito em
nome de uma irmandade cujo sentido remetia, de forma geral, a
uma evocação de proximidade.
Se
nos perguntarmos por que a figura da irmandade – se tantas outras
seriam possíveis para representar a proximidade – chegaremos
a algumas observações importantes sobre o mecanismo
utilizado por portugueses e brasileiros para classificar suas
relações. De fato, a figura fraterna, elixir das
desavenças luso-brasileiras, alude a um tipo de hierarquia e
posição relativa que emprestada do modelo familiar,
estabelece uma ordem de proximidade e distância,
ao mesmo tempo em que institui uma hieraquia e uma divisão de
poder. Irmãos sem outros qualificativos que os
distingam, ocupam a mesma posição numa família e
ainda que próximos, é comum estarem em conflito. A
irmandade, assim, tinha a capacidade de dirimir os conflitos ao
preconizá-los como naturais numa relação entre
irmãos. Por outra instância, a proeminência da
irmandade introduz um princípio de ruptura numa história
imaginada como contínua e ligada diretamente ao passado
colonial. Nesse sentido, a irmandade se opõe a idéia
subjacente de uma ascendência portuguesa sobre o Brasil. A
visão de Portugal como passado do Brasil e do Brasil como
futuro de Portugal, condensada em expressões como “Portugal,
meu avôzinho” de Manuel Bandeira ou num destino anunciado em
“Fado Tropical” de Chico Buarque e Ruy Guerra cede com o tempo ao
simbolismo horizontal da irmandade.
À
época dos conflitos em torno dos descobrimentos, perguntava-se
o que sobraria de tanta agitação após o
anticlímax de 2000 e uma década toda de relacionamento
tumultuado. Passados poucos anos, nota-se novamente um gradual
distanciamento entre Brasil e Portugal. Os capitais portugueses
permaneceram apesar de poucas novas entradas e se associaram a outros
capitais estrangeiros. Diálogos culturais e científicos
parecem progredir de forma mais perene. A migração de
brasileiros para Portugal diminuiu, mas continua e ser relevante. Um
Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, assinado em
2000, reuniu e procurou dar coerência há uma série
de acordos e tratados anteriores, abrindo com dificuldades caminho
para futuras negociações, notadamente no campo da
migração, no qual novos acordos foram assinados no ano
de 2003.
É
sobre esse último aspecto talvez, que tenhámos espaço
para uma reflexão ampliada. A visita do presidente Lula, em
2003, a Portugal teve como ponto alto da agenda negociações
acerca das condições dos migrantes brasileiros. Todos
os avanços nesse sentido sempre colocam em pauta a presença
de outros migrantes em Portugal, nomeadamente os migrantes de suas
ex-colônias africanas. A irmandade que se firmou como o
discurso marcante das relações entre Brasil e Portugal
se confronta nesse contexto com as relações seja de
Portugal, seja do Brasil com outros países de língua
portuguesa. Timor Leste no decorrer de seu processo de independência
chegou a ser chamado de irmão mais novo, mas essa
possibilidade não se coloca para Angola, por exemplo. Nesse sentido, deve-se
assinalar que data de 1996 a criação da CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que se
constituiu com o objetivo de ser o lugar privilegiado da cooperação
cultural, política, ecônomica e de promoção
da língua portuguesa. Ainda longe de ser um espaço
verdadeiramente ativo, seu lento progresso nos revela, antes, os
limites estreitos de uma lusofonia vítima dos cacoetes
imperialistas portugueses e do descaso brasileiro. Da irmandade que
toma a língua por um sangue comum fazemos o caminho de volta
aos desconhecimentos e mal-entendidos. No cenário mais largo
dos países lusófonos, outras hierarquias e conflitos
calcados num colonialismo muito mais recente introduzem impasses
menos contornáveis.
Por
fim, da reflexão problemática e parcial conduzida quase
que forçosamente por Portugal e Brasil acerca de suas próprias
relações durante a década passada, restou um
campo de dúvidas e questões sobre a tangibilidade das
afinidades luso-brasileiras. Nos termos do que podemos chamar de
relações internacionais, para além da reificação
da língua e das retóricas sentimentalistas, deveríamos nos
perguntar quais os interesses, os valores ou objetivos comuns de que
podem se valer Portugal e Brasil em um posicionamento conjunto?
Talvez, seja a circulação, os encontros e confrontos,
de pessoas e idéias de diferentes histórias de um
antigo e de um menos antigo ex-império colonial português
que construirão essa resposta. Colocando as suas diferentes
perspectivas de pertença, passada ou presente, e seus anseios
futuros a essa comunidade por ora chamada lusófona, será
talvez esse fluxo e as tensões que o acompanharão, o
elemento subversor da fraternidade de fim de século
luso-brasileira. Saberemos então se Brasil
e Portugal, mas quiçá também Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe,
Timor Leste, entre outros, poderão ser mais que irmãos,
parceiros. E parcerias, diferentemente de irmandades, são uma
questão de escolha.
Eduardo Caetano da Silva é
pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais, da Unicamp e doutorando
em antropologia social na mesma universidade.
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