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Artigo
Brasil-Portugal: depois dos "500" e além da irmandade
Por Eduardo Caetano da Silva
10/04/2006

Brasil e Portugal: mais que parceiros, irmãos
(slogan do estande português – Bienal do Livro – São Paulo, 2000)

A frase acima é emblemática das relações entre Brasil e Portugal durante a década de 1990. Envolvidos pelo cenário celebrativo dos “500 anos de descobrimento”, os dois países colocaram-se mutuamente em destaque, passando a freqüentar com uma assiduidade inédita a mídia e os veículos de imprensa um do outro. De fato, uma certa distância em que se mantiveram durante os anos anteriores foi se rompendo por diferentes meios e, entre os diversos eventos que se conjugaram em torno desse processo de aproximação, dois podem ser considerados cruciais: os investimentos portugueses no Brasil a partir de 1997 e o início de uma intensa migração de brasileiros para Portugal.

Quanto aos investimentos, o Brasil saído de uma ditadura engajou-se num processo de privatizações abertas ao capital estrangeiro que, após o plano Real, e sob a justificativa de estabilização econômica, avançou década adentro gerando grandes movimentações financeiras em setores fundamentais da economia. Paralelamente em Portugal, enquanto a injeção de fundos da União Européia atingia seu auge, criaram-se diversas iniciativas estatais de estímulo à internacionalização da economia portuguesa, com base na idéia de que essa era uma etapa necessária para a inserção definitiva de Portugal como membro da UE. Nesse contexto, Portugal tornou-se o terceiro maior investidor estrangeiro no Brasil (de 1997 a 2000), e o Brasil por sua vez, o principal destino dos investimentos portugueses no mesmo período.

Na contracorrente dos fluxos de capitais que recebeu, o Brasil se consolidou como um exportador de migrantes e Portugal, embora continuasse um tradicional território de emigração, foi surpreendido com a condição de novo destino imigratório recebendo representativos contingentes migrantes oriundos principalmente de suas ex-colônias africanas, do leste europeu e do Brasil. No espaço de uma década, os migrantes brasileiros tornaram-se uma das principais populações estrangeiras em território português e Portugal, por sua vez, um dos principais destinos da diáspora brasileira em formação.

As relações entre Brasil e Portugal, portanto, foram se redesenhando no decorrer dos anos noventa. Porém, o novo quadro dessas relações com novos problemas e novos interesses em jogo foi buscar o seu repertório discursivo nas memórias do passado colonial, trazendo à tona estereótipos e preconceitos recíprocos dos mais inofensivos até mesmo os francamente xenofóbicos. A particularidade desse fenômeno compõe mais um capítulo de uma longa história das relações entre as duas nações, caracterizada por sua intermitência e ambivalência. De fato, as próprias escolhas dos investimentos portugueses pelo Brasil e da migração brasileira para Portugal sugerem a importância que um país tem para o outro, talvez na condição de uma primeira externalidade, menos externa que outras. Antes, a migração portuguesa para o Brasil e os investimentos brasileiros (ou de migrantes portugueses do Brasil) em Portugal já tinham apelado à essa mesma lógica. Contudo é a recorrente significação desses novos eventos num horizonte referido às figuras de Portugal-Metrópole e Brasil-Colônia que nos coloca diante de uma atualidade e de uma inquietude duradoura sobre o passado.

Foi dentro dessa universo simbólico que a presença de migrantes brasileiros em Portugal foi progressivamente sendo interpretada como uma “invasão”. O caminho que levou à hostilidade portuguesa contra a migração brasileira sofreu, de início, a influência do caso dos dentistas brasileiros, cujos diplomas foram contestados em Portugal pela associação de dentistas portugueses. A repercussão do caso se deu por conta da utilização de representações recíprocas preconceituosas sobre brasileiros e portugueses o que transformou uma discussão de classe profissional numa defesa de interesses nacionais de parte à parte. Nos anos seguintes, migrantes brasileiros de outras classes sociais, com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional continuaram a seguir a mesma rota, atraídos pela idéia de Portugal como uma porta de entrada para a Europa ou mesmo uma passagem facilitada para os Estados Unidos. É dessa mesma época, a adesão portuguesa às resoluções do Tratado de Schengen, que restringiu as entradas dos cidadãos dos países não aderentes ao território português. O estatuto privilegiado de brasileiros em Portugal e portugueses no Brasil, fruto de tratados diplomáticos firmados a partir de 1953, foi fortemente abalado com a apreensão e deportação de brasileiros nos aeroportos portugueses e a resposta dada na mesma moeda pelo governo brasileiro. As discussões entre autoridades dos dois países expôs publicamente visões estereotipadas e preconceitos mútuos antes restritos ao cotidiano dos migrantes brasileiros em Portugal ou portugueses no Brasil.

Mais ao fim da década, a entrada de capitais portugueses no Brasil ganhou o emblemático apelido de “redescoberta”, trazendo a reboque toda uma série de imagens e discursos com referência ao mito do descobrimento. A publicidade das empresas e o vocabulário da mídia muniram-se de caravelas e outros símbolos para noticiar uma nova chegada dos portugueses ao Brasil. Nas palavras do então 1º Ministro português, Antonio Guterrez, as oportunidades de negócios faziam do Brasil novamente a “jóia da Coroa”. O momento dessas referências parecia dos mais propícios às vésperas dos 500 anos da chegada da frota de Cabral à terra de Vera Cruz e fazia eco a uma extensa agenda comemorativa programada pelos dois países para comemorar o 22 de abril. Contudo, a mobilização empreendida no âmbito estatal serviu antes para tornar nítida uma forte diferença de sentido da data para portugueses e para brasileiros, além das diferentes interpretações que os diferentes setores das duas sociedades nacionais tinham sobre o simbolismo do 22 de abril. Um debate público deliberadamente evitado sobre as relações de Brasil e Portugal acabou por ocorrer de improviso. Entre a aventura dos descobridores e o inferno dos degredados, índios e escravos não houve comemoração possível. A contestação, auto-batizada de “outros 500” tomou de assalto o clima comemorativo e fez a sua própria festa.

As discussões e os conflitos relativos às comemorações dos “500 anos” atrelados à publicidade dos investimentos portugueses e as medidas de restrição e a hostilidade à migração de brasileiros em Portugal, tiveram em comum a busca de seus argumentos em categorias referidas à relação colonizador-metrópole. A invasão e a redescoberta, a malandragem brasileira e a cobiça portuguesa, a degeneração tropical e a estupidez ibérica, dentre outras visões preconceituosas estiveram presentes em imagens, palavras, ressentimentos e referências implícitas formamdo a teia discursiva na qual se narravam os eventos. No mais das vezes, como solução das querelas, o apelo pacificador foi feito em nome de uma irmandade cujo sentido remetia, de forma geral, a uma evocação de proximidade.

Se nos perguntarmos por que a figura da irmandade – se tantas outras seriam possíveis para representar a proximidade – chegaremos a algumas observações importantes sobre o mecanismo utilizado por portugueses e brasileiros para classificar suas relações. De fato, a figura fraterna, elixir das desavenças luso-brasileiras, alude a um tipo de hierarquia e posição relativa que emprestada do modelo familiar, estabelece uma ordem de proximidade e distância, ao mesmo tempo em que institui uma hieraquia e uma divisão de poder. Irmãos sem outros qualificativos que os distingam, ocupam a mesma posição numa família e ainda que próximos, é comum estarem em conflito. A irmandade, assim, tinha a capacidade de dirimir os conflitos ao preconizá-los como naturais numa relação entre irmãos. Por outra instância, a proeminência da irmandade introduz um princípio de ruptura numa história imaginada como contínua e ligada diretamente ao passado colonial. Nesse sentido, a irmandade se opõe a idéia subjacente de uma ascendência portuguesa sobre o Brasil. A visão de Portugal como passado do Brasil e do Brasil como futuro de Portugal, condensada em expressões como “Portugal, meu avôzinho” de Manuel Bandeira ou num destino anunciado em “Fado Tropical” de Chico Buarque e Ruy Guerra cede com o tempo ao simbolismo horizontal da irmandade.

À época dos conflitos em torno dos descobrimentos, perguntava-se o que sobraria de tanta agitação após o anticlímax de 2000 e uma década toda de relacionamento tumultuado. Passados poucos anos, nota-se novamente um gradual distanciamento entre Brasil e Portugal. Os capitais portugueses permaneceram apesar de poucas novas entradas e se associaram a outros capitais estrangeiros. Diálogos culturais e científicos parecem progredir de forma mais perene. A migração de brasileiros para Portugal diminuiu, mas continua e ser relevante. Um Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, assinado em 2000, reuniu e procurou dar coerência há uma série de acordos e tratados anteriores, abrindo com dificuldades caminho para futuras negociações, notadamente no campo da migração, no qual novos acordos foram assinados no ano de 2003.

É sobre esse último aspecto talvez, que tenhámos espaço para uma reflexão ampliada. A visita do presidente Lula, em 2003, a Portugal teve como ponto alto da agenda negociações acerca das condições dos migrantes brasileiros. Todos os avanços nesse sentido sempre colocam em pauta a presença de outros migrantes em Portugal, nomeadamente os migrantes de suas ex-colônias africanas. A irmandade que se firmou como o discurso marcante das relações entre Brasil e Portugal se confronta nesse contexto com as relações seja de Portugal, seja do Brasil com outros países de língua portuguesa. Timor Leste no decorrer de seu processo de independência chegou a ser chamado de irmão mais novo, mas essa possibilidade não se coloca para Angola, por exemplo. Nesse sentido, deve-se assinalar que data de 1996 a criação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que se constituiu com o objetivo de ser o lugar privilegiado da cooperação cultural, política, ecônomica e de promoção da língua portuguesa. Ainda longe de ser um espaço verdadeiramente ativo, seu lento progresso nos revela, antes, os limites estreitos de uma lusofonia vítima dos cacoetes imperialistas portugueses e do descaso brasileiro. Da irmandade que toma a língua por um sangue comum fazemos o caminho de volta aos desconhecimentos e mal-entendidos. No cenário mais largo dos países lusófonos, outras hierarquias e conflitos calcados num colonialismo muito mais recente introduzem impasses menos contornáveis.

Por fim, da reflexão problemática e parcial conduzida quase que forçosamente por Portugal e Brasil acerca de suas próprias relações durante a década passada, restou um campo de dúvidas e questões sobre a tangibilidade das afinidades luso-brasileiras. Nos termos do que podemos chamar de relações internacionais, para além da reificação da língua e das retóricas sentimentalistas, deveríamos nos perguntar quais os interesses, os valores ou objetivos comuns de que podem se valer Portugal e Brasil em um posicionamento conjunto? Talvez, seja a circulação, os encontros e confrontos, de pessoas e idéias de diferentes histórias de um antigo e de um menos antigo ex-império colonial português que construirão essa resposta. Colocando as suas diferentes perspectivas de pertença, passada ou presente, e seus anseios futuros a essa comunidade por ora chamada lusófona, será talvez esse fluxo e as tensões que o acompanharão, o elemento subversor da fraternidade de fim de século luso-brasileira. Saberemos então se Brasil e Portugal, mas quiçá também Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, entre outros, poderão ser mais que irmãos, parceiros. E parcerias, diferentemente de irmandades, são uma questão de escolha.


Eduardo Caetano da Silva é pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais, da Unicamp e doutorando em antropologia social na mesma universidade.