10/03/2011
Fahrenheit
451 “é a temperatura à qual o papel de livros arde e se
consome...”. Com essa frase, Ray Bradbury, autor desse livro
adaptado para os cinemas por François Truffaut, em 1966, inicia a
história do bombeiro Montag que, ao invés de combater incêndios, é
encarregado de queimar livros. Este não é o único paradoxo do
livro, no que se refere aos objetos, às pessoas e suas funções.
Imagine-se num mundo em que os padrões de comportamento estão
invertidos: questionar e conversar são atividades anti-sociais, mas
interagir com a televisão como se ela fizesse parte de sua família
é normal. Durante a história, somos confrontados com valores
comportamentais contrários ao nosso senso comum sobre normalidade e
anormalidade, ou mesmo a noções de normalidade usadas em
classificações como a do DSM, o manual sobre transtornos mentais,
para caracterizar, por exemplo, transtornos que podem levar ao
suicídio.
O autor
de Fahrenheit 451 nos apresenta uma sociedade na qual os
livros são considerados nocivos à sociedade; o fogo a protege,
destruindo as memórias, pois estas prejudicariam o desenvolvimento e
o progresso. Além disso, os intelectuais devem ser anulados para que
não transmitam suas teorias e ideias. Nesse cenário, o objetivo é
que as conquistas humanas sejam destruídas.
A
história ocorre num futuro não muito distante, onde uma sociedade
totalitária educa as pessoas a desempenharem certas funções sem
que questionem sobre o que estão de fato realizando. O Estado
consegue tal submissão devido à forma com que trata a educação.
Na escola, as crianças aprendem que os livros não devem ser lidos,
apenas queimados, e que as opiniões próprias são anti-sociais e
hedonistas. No entanto, o cotidiano dessa aparente sociedade
obediente é extremamente caótico. Jovens jogando carros contra
pessoas apenas por diversão, cães de caça mecânicos que são
ajustados para caçar animais em sua toca apenas porque os homens
sentem prazer em assisti-los morrer.
Montag é
um legítimo soldado, obediente aos comandos de seu capitão e que
cumpre o dever de queimar livros com prazer. No início, ele acredita
ser feliz, tem um bom emprego, família e uma casa cheia de confortos
e luxos de sua época. Sua esposa, Mildred, passa a maior parte de
seu tempo em frente a imensas telas de televisão que cobrem as
paredes de sua sala, a quem ela chama de “família”. Algumas
vezes, a mulher recorre a excessivas doses de calmante, que seriam
fatais não fosse a pronta intervenção de técnicos da saúde,
acostumados a esse tipo de procedimento.
A
“felicidade” que Montag acredita ter é colocada em xeque quando
conhece sua vizinha, Clarisse, uma jovem que é considerada
anti-social, pois tem um espírito questionador. A partir disso, ele
começa a reconsiderar seu modo de vida, seus ideais e sua noção de
felicidade. Sua curiosidade é despertada e ele pergunta a si próprio
o que haverá nos livros que leva algumas pessoas a arriscar suas
vidas para tê-los em casa, ou até mesmo renunciar à vida deixar de
viver quando suas bibliotecas são descobertas.
A partir
desses questionamentos do protagonista, a narrativa muda. Pois se,
antes, a história era marcada pela descrição de seus atos, nesse
momento são relatados os pensamentos do bombeiro e todas as suas
curiosidades e lembranças da infância que estavam escondidas. E à
medida que isso se intensifica, os diálogos, que antes praticamente
não existiam, começam a ser desenvolvidos. A princípio, ele mal
conseguia manter uma conversa com sua vizinha; no final, ele sente
necessidade de se comunicar até mesmo com sua mulher, para fazer com
que ela desperte de sua “semi-vida”. Ele instiga conversas com
seu capitão e vai atrás de pessoas que possam lhe dar respostas
para suas dúvidas.
O
ambiente também é alterado: a princípio, o cenário é árido,
nada merece atenção. As pessoas saem de seus trabalhos com pressa
para chegar em casa e escutar o que a “família” tem a dizer; em
momentos de lazer, a grande diversão é dirigir na maior velocidade
possível, de forma que não possam nem enxergar o que há ao seu
redor. No entanto, através da amizade com Clarisse, Montag passa a
perceber a paisagem ao seu redor, a natureza, a chuva, o seu cheiro,
que antes não lhe eram perceptíveis.
A
história é marcada pela oposição dos elementos. Enquanto o fogo
representa proteção à sociedade, os livros são considerados a
causa da infelicidade, pois eles promovem desigualdade intelectual
entre as pessoas.
No
entanto, suas vidas se tornam vazias e sem sentido e, portanto, sem
valor; por isso, o suicídio é tão comum e banal. Para que as
pessoas não percebam o quanto sofrem, são feitas pílulas que
resolvem todos os problemas. Por isso, muitas pessoas recorrem a
doses excessivas de medicação, acreditando que isso resolverá o
que as está incomodando, seja problemas com sono, apetite, ou até
mesmo, solidão – um cenário muito parecido com histórias reais
da nossa sociedade contemporânea que envolvem generalização de
diagnósticos e medicalização excessiva.
Mildred,
a esposa do bombeiro, que já tentou se matar, não sai de casa e
conversa com uma televisão; tem um comportamento que não apenas é
considerado normal, mas é incentivado e bem visto por essa
sociedade. Já Clarisse, a vizinha, é considerada uma pessoa
perigosa, pois a sua curiosidade faz com que ela questione tudo,
inclusive a eficácia do Estado. Por isso, ela e outros intelectuais
são marginalizados e perseguidos, para que não corrompam mais
pessoas com seu espírito contestador.
Trata-se
de um dos grandes clássicos da distopia. Apesar de ser classificada
como ficção científica, a realidade e atualidade desta obra são
impressionantes. Como analisou o escritor português Jorge Candeias,
“Fahrenheit 451 é um terrível espelho dos tempos que
vivemos. Um livro atemporal. Um livro que fica”.
Fahrenheit 451
Ray Douglas Bradbury
Editora Globo, 2009
215 páginas
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