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Resenhas
Inversão comportamental
Nessa crítica ao Estado totalitário e à repressão ao pensamento questionador, uma reflexão sobre como se define o que é ser “normal”
Por Isabela Palhares
10/03/2011

Fahrenheit 451 “é a temperatura à qual o papel de livros arde e se consome...”. Com essa frase, Ray Bradbury, autor desse livro adaptado para os cinemas por François Truffaut, em 1966, inicia a história do bombeiro Montag que, ao invés de combater incêndios, é encarregado de queimar livros. Este não é o único paradoxo do livro, no que se refere aos objetos, às pessoas e suas funções. Imagine-se num mundo em que os padrões de comportamento estão invertidos: questionar e conversar são atividades anti-sociais, mas interagir com a televisão como se ela fizesse parte de sua família é normal. Durante a história, somos confrontados com valores comportamentais contrários ao nosso senso comum sobre normalidade e anormalidade, ou mesmo a noções de normalidade usadas em classificações como a do DSM, o manual sobre transtornos mentais, para caracterizar, por exemplo, transtornos que podem levar ao suicídio.

O autor de Fahrenheit 451 nos apresenta uma sociedade na qual os livros são considerados nocivos à sociedade; o fogo a protege, destruindo as memórias, pois estas prejudicariam o desenvolvimento e o progresso. Além disso, os intelectuais devem ser anulados para que não transmitam suas teorias e ideias. Nesse cenário, o objetivo é que as conquistas humanas sejam destruídas.

A história ocorre num futuro não muito distante, onde uma sociedade totalitária educa as pessoas a desempenharem certas funções sem que questionem sobre o que estão de fato realizando. O Estado consegue tal submissão devido à forma com que trata a educação. Na escola, as crianças aprendem que os livros não devem ser lidos, apenas queimados, e que as opiniões próprias são anti-sociais e hedonistas. No entanto, o cotidiano dessa aparente sociedade obediente é extremamente caótico. Jovens jogando carros contra pessoas apenas por diversão, cães de caça mecânicos que são ajustados para caçar animais em sua toca apenas porque os homens sentem prazer em assisti-los morrer.

Montag é um legítimo soldado, obediente aos comandos de seu capitão e que cumpre o dever de queimar livros com prazer. No início, ele acredita ser feliz, tem um bom emprego, família e uma casa cheia de confortos e luxos de sua época. Sua esposa, Mildred, passa a maior parte de seu tempo em frente a imensas telas de televisão que cobrem as paredes de sua sala, a quem ela chama de “família”. Algumas vezes, a mulher recorre a excessivas doses de calmante, que seriam fatais não fosse a pronta intervenção de técnicos da saúde, acostumados a esse tipo de procedimento.

A “felicidade” que Montag acredita ter é colocada em xeque quando conhece sua vizinha, Clarisse, uma jovem que é considerada anti-social, pois tem um espírito questionador. A partir disso, ele começa a reconsiderar seu modo de vida, seus ideais e sua noção de felicidade. Sua curiosidade é despertada e ele pergunta a si próprio o que haverá nos livros que leva algumas pessoas a arriscar suas vidas para tê-los em casa, ou até mesmo renunciar à vida deixar de viver quando suas bibliotecas são descobertas.

A partir desses questionamentos do protagonista, a narrativa muda. Pois se, antes, a história era marcada pela descrição de seus atos, nesse momento são relatados os pensamentos do bombeiro e todas as suas curiosidades e lembranças da infância que estavam escondidas. E à medida que isso se intensifica, os diálogos, que antes praticamente não existiam, começam a ser desenvolvidos. A princípio, ele mal conseguia manter uma conversa com sua vizinha; no final, ele sente necessidade de se comunicar até mesmo com sua mulher, para fazer com que ela desperte de sua “semi-vida”. Ele instiga conversas com seu capitão e vai atrás de pessoas que possam lhe dar respostas para suas dúvidas.

O ambiente também é alterado: a princípio, o cenário é árido, nada merece atenção. As pessoas saem de seus trabalhos com pressa para chegar em casa e escutar o que a “família” tem a dizer; em momentos de lazer, a grande diversão é dirigir na maior velocidade possível, de forma que não possam nem enxergar o que há ao seu redor. No entanto, através da amizade com Clarisse, Montag passa a perceber a paisagem ao seu redor, a natureza, a chuva, o seu cheiro, que antes não lhe eram perceptíveis.

A história é marcada pela oposição dos elementos. Enquanto o fogo representa proteção à sociedade, os livros são considerados a causa da infelicidade, pois eles promovem desigualdade intelectual entre as pessoas.

No entanto, suas vidas se tornam vazias e sem sentido e, portanto, sem valor; por isso, o suicídio é tão comum e banal. Para que as pessoas não percebam o quanto sofrem, são feitas pílulas que resolvem todos os problemas. Por isso, muitas pessoas recorrem a doses excessivas de medicação, acreditando que isso resolverá o que as está incomodando, seja problemas com sono, apetite, ou até mesmo, solidão – um cenário muito parecido com histórias reais da nossa sociedade contemporânea que envolvem generalização de diagnósticos e medicalização excessiva.

Mildred, a esposa do bombeiro, que já tentou se matar, não sai de casa e conversa com uma televisão; tem um comportamento que não apenas é considerado normal, mas é incentivado e bem visto por essa sociedade. Já Clarisse, a vizinha, é considerada uma pessoa perigosa, pois a sua curiosidade faz com que ela questione tudo, inclusive a eficácia do Estado. Por isso, ela e outros intelectuais são marginalizados e perseguidos, para que não corrompam mais pessoas com seu espírito contestador.

Trata-se de um dos grandes clássicos da distopia. Apesar de ser classificada como ficção científica, a realidade e atualidade desta obra são impressionantes. Como analisou o escritor português Jorge Candeias, “Fahrenheit 451 é um terrível espelho dos tempos que vivemos. Um livro atemporal. Um livro que fica”.


Fahrenheit 451
Ray Douglas Bradbury
Editora Globo, 2009
215 páginas