A Aids, pela forma
como foi enunciada quando de seu surgimento no
início da década de 1980, tornou-se
sentença de
morte para os homossexuais masculinos, para os usuários de
drogas injetáveis e para os hemofílicos.
Os
dois signos que identificaram a Aids -
a transmissibilidade e a incurabilidade -,
ao mesmo tempo em que definiam os limites do conhecimento
médico-científico, contribuíram para
que a
experiência coletiva da doença fosse marcada pela
estigmatização do doente, pois este como portador
do
agente infeccioso, passava a corporificar o próprio mal e
consequentemente a morte.
Contudo,
em resposta ao medo e atitudes preconceituosas e estigmatizantes em
relação aos soropositivos para o HIV e doentes de
Aids,
organizaram-se grupos sociais comprometidos com o combate a essa
doença e às respectivas formas de sua
percepção.
Em quase todos os países do mundo criaram-se
organizações
não-governamentais (ONGs) para lidar com a epidemia. As
primeiras ONGs a serem criadas respondiam às necessidades de
informação sobre a doença e logo
originaram um
movimento mundial que buscou desestigmatizar aqueles afetados pela
doença, desconstruindo a identificação
do doente
com o fenômeno patológico.
No
Brasil, quando a Aids surge em cena pública, no
início
dos anos 1980, a sociedade experimentava a emergência de
movimentos sociais autônomos, herdeiros dos pequenos grupos
clandestinos que vinham atuando desde o início da ditadura
militar. O processo de construção
democrática
instaurado no Brasil, nessa década de 1980, levou as ONGs
então existentes a se inserirem no projeto
político de
criação de uma nação
democrática.
A questão da cidadania e a
estruturação de uma
subjetividade apta ao exercício de direitos coletivos eram
os
principais itens de pauta das ONGs.
No
caso das ONGs/Aids, o processo de construção da
cidadania adquiriu uma característica especial em
decorrência
da própria origem social daqueles que primeiro foram
diagnosticados soropositivos no país, em sua maioria
intelectuais e artistas da classe média e, quase todos, com
um
ideal libertário de esquerda incorporado em sua
história
pessoal. Nessa medida, as ONGs que se organizaram no campo da Aids
não eram apenas entidades de apoio aos soropositivos para o
HIV, mas a trincheira avançada de
reivindicações
de direitos, de denúncia de preconceitos e de
difusão
de um exercício de cidadania numa sociedade onde essas
atitudes eram há algumas décadas reprimidas.
Assim,
os próprios indivíduos atingidos diretamente pelo
HIV/Aids levantaram-se em defesa de seus direitos, na
intenção
de “fazer do fato de que todos somos mortais, uma garantia de
que
teremos todos uma vida plena, no gozo de todos os nossos direitos
civis”.
Nessa perspectiva ideológica, as ONGs/Aids reivindicaram o
direito à saúde, que implica
informação
sobre a doença, educação para a
prevenção
do HIV/Aids, acesso aos serviços de saúde e
assistência
médico-hospitalar - tudo
isto como expressão do exercício pleno da
cidadania.
A
Abia
Associação
Brasileira Interdisciplinar da Aids e o Grupo
pela Vidda são dois grandes exemplos
de grupos
comprometidos com a discussão da Aids. ONGs
constituídas
por segmentos da sociedade civil, distintas nas suas linhas de
atuação, não foram as primeiras a
serem criadas
no Brasil, mas, no Rio de Janeiro, foram as de maior visibilidade
pública desde sua fundação.
Criada
no Rio de Janeiro em 1986, sob a liderança de Herbert de
Souza, a Abia aglutinou cientistas, intelectuais de diversas
áreas
e militantes de vários grupos comunitários que,
por
entenderem a Aids como uma doença que envolve não
somente a ciência médica mas a sociedade como um
todo,
colocaram-se como meta tanto o monitoramento das políticas
públicas relacionadas ao HIV/Aids quanto a
produção
e disseminação de
informação atualizada
sobre a doença.
Em
1989, foi criado também no Rio de Janeiro, com o objetivo de
lutar pela valorização,
integração e
dignidade do doente de Aids, o Grupo pela Vidda. Seu fundador, o
jornalista Herbert Daniel, ele próprio contaminado com o HIV
pôde experimentar o peso do estigma associado à
doença.
Herbert
de Souza, na Abia, e Herbert Daniel, no Grupo pela Vidda, trouxeram
para a luta contra a Aids suas tradições
oposicionistas, cunhadas numa militância política
de
esquerda, e acreditavam que a exclusão e a vulnerabilidade
sociais eram facilitadores e potencializadores da
infecção
pelo HIV.
Com
estratégias distintas - a
Abia procurou agregar pessoas expressivas da sociedade brasileira, de
forma que o seu discurso e suas ações ecoassem
socialmente; o Grupo pela Vidda teve como objetivo dar voz aos
portadores do HIV e doentes de Aids, retirando-os da
posição
passiva e vitimizada comum na época -,
ambas caracterizaram-se num primeiro momento por um intenso ativismo
de oposição ao Estado.
Sem
ter a pretensão de assumir o lugar do Estado na
responsabilidade de estabelecer uma política de controle da
Aids que garantisse aos soropositivos e doentes o atendimento
médico-hospitalar em todos os níveis de
desenvolvimento
da doença, um dos principais alvos das denúncias
das
ONGs era exatamente o Estado, que, além de não
promover
uma política mais efetiva de controle da doença,
produzia campanhas de prevenção carregadas de
preconceitos.
À
medida que o Estado foi assumindo a responsabilidade com a epidemia
de Aids no país, numa interlocução com
a
sociedade civil organizada em torno da questão, com
ações
concretas de controle da doença, seja a partir da
promulgação
de leis no sentido de viabilizar o enfrentamento da epidemia seja com
o investimento de altos recursos financeiros num programa nacional de
controle da doença, as ONGs, sem abandonar a
posição
crítica em relação às
políticas
governamentais de controle da Aids, também mudaram a
estratégia, substituindo o confronto com o Estado por uma
ação
propositiva e co-responsável com o Ministério da
Saúde.
A
par de uma pressão internacional no sentido de minimizar
mundialmente a incidência da Aids, essas ONGs/Aids
também
exerceram forte pressão para que o Estado assumisse o
compromisso de combate ao HIV/Aids. E esse compromisso foi crescente:
por exemplo, a partir de 1996, o governo distribui gratuitamente os
remédios necessários ao tratamento da Aids.
Além
disso, sem dúvida, a organização de
pessoas
comprometidas, em diversos graus, com o problema da Aids significou
avanços quanto a uma melhor
assimilação, por
parte da sociedade, da idéia de convivência com a
doença.
Dilene
Raimundo do Nascimento é pesquisadora
e docente no Programa de História das Ciências e
da
Saúde da
Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz.
E-mail:
dilene@coc.fiocruz.br.
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