REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO


Editorial
Quem não arrisca...
Por Carlos Vogt
10/12/2008

Uma das características marcantes da economia global e da sociedade do conhecimento − outra forma de designar a mesma contemporaneidade movida a gás, petróleo, etanol, energia nuclear e densa especulação financeira −, relacionada mais diretamente com o papel estruturante das tecnociências nessa sociedade, é o risco. O risco, não como comportamento irresponsável, adolescente, doidivanas, mas o risco como cálculo, como elemento de composição do mosaico de certezas que todos gostaríamos de ter, principalmente os investidores que jogam, sempre com expectativas fundadas de retornos lucrativos. Jogam no presente, jogam no futuro e, se um dia for possível, jogam no passado.

Mas, como preconiza Mallarmé, poeta da modernidade, um lance de dados jamais abolirá o acaso, por mais cálculo que o risco admita para sua contensão, ele próprio é incapaz de calcular-se, enquanto elemento do imprevisível.

O fato é que o desenvolvimento do conhecimento científico, suas aplicações práticas e as tecnologias que dele derivaram, e derivam numa velocidade cada vez maior e cada vez mais acelerada pelas próprias tecnologias de informação e de comunicação, criaram como que um carrossel de novidades que não param de girar. Utensílios e ferramentas se substituem com o mesmo ímpeto com que aparecem e desaparecem para tornar a vida mais fácil no seu cotidiano e cotidianamente mais carregada de dúvidas e incertezas sobre os riscos e os benefícios que tais facilidades efetivamente propiciam.

Desde o uso da energia nuclear transformada em bombas de destruição maciça, no final da Segunda Grande Guerra, aumentou por parte dos governos responsáveis por essa catástrofe, a preocupação com a desconfiança da sociedade em relação à “bondade” da ciência e da tecnologia. Campanhas foram feitas, pesquisas sobre percepção pública da ciência foram desencadeadas e estudos sistemáticos sobre os riscos trazidos pelas descobertas científicas e principalmente pelas inovações tecnológicas foram desencadeados, passando a constituir, nos anos seguintes e até hoje, um campo de estudo dos mais ricos, controversos e pleno de cruzamentos epistemológicos, − multidisciplinar, portanto, − com abordagens, além de científicas e tecnológicas, filosóficas, sociológicas, antropológicas, lingüísticas, literárias e artísticas.

Em atenção aos riscos, moratórias se constituíram, sendo, talvez, a mais famosa a que decorreu da Conferência do Monte Asilomar, nos EUA, em 1975, que a formalizou, promulgando a necessidade de se manterem sob proteção e isolamento todos os experimentos de recombinação genética e também os organismos deles resultantes, pelo tempo necessário à produção de certezas de que não seriam nocivos ao homem e ao meio ambiente.

Os protocolos de precaução passaram a acompanhar os produtos da tecnologia sobre os quais as dúvidas ou as incertezas quanto ao grau de benefício ou de nocividade continuaram a persistir na percepção das populações consumidoras dessas mercadorias.

A bioética foi se consolidando como disciplina fundamental para os estudos e as discussões empenhadas em estabelecer normas de conduta e de procedimento nos casos das inovações da área, sobretudo nas questões envolvendo alimentos, medicamentos e as pesquisas abertas e desencadeadas pela biologia molecular.

Inúmeras enquetes passaram a ser aplicadas, trazendo perguntas sobre os riscos e os benefícios da ciência e da tecnologia ao mesmo tempo em que, cada vez mais, foram se constituindo mecanismos representativos da sociedade civil para atuar, participar, influir e decidir sobre os destinos, as prioridades e as cautelas a serem tomadas para prevenir os possíveis riscos de cada passo da célere transformação científica e tecnológica do mundo contemporâneo.

O risco, que sempre esteve ligado ao conhecimento e ao desvendamento do novo, que se acentuou quando mais a sociedade acreditou no poder redentor da ciência, no século XIX, com o positivismo, que de atitude racional passou a ser dogma de fé científica; o risco, que o Frankenstein, de Mary Shelley, apontava como o horror trágico de um novo Prometeu, continua a nos acompanhar na saga de aventuras do conhecimento, agora mais domesticado que antes, mas nem por isso falso de artimanhas e de surpresas para uma sociedade que parece, culturalmente, cada vez mais propensa ao petisco, de preferência sem risco.