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Artigo
Um viajante a serviço da colonização do Grão Pará e Maranhão
Por Maria Lucia Abaurre Gnerre
10/06/2006

Segundo Sérgio Buarque de Holanda,i o que caracteriza a forma como a colonização lusitana se organiza no Brasil é a postura de semeador, do colonizador que planta cidades e civilizações como quem joga sementes ao vento sem um plano certo, racional. Em oposição a esta postura, teríamos o ladrilhador, representado pelo colonizador espanhol, que organiza racionalmente seu empreendimento, planeja nos mínimos detalhes as formas de suas cidades, de suas civilizações. A partir da segunda metade do século XVIII, no entanto, encontramos vários textos e cartas produzidos na colônia, dentre eles Roteiros de Viagens, onde planos de povoamento dos sertões são minuciosamente desenhados, em sintonia com a racionalidade que norteia as ciências da época na Europa.

O Roteiro do Maranhão a Goyaz pela Capitania do Piauhy ii é um desses textos, que propõe justamente o estabelecimento de cidades, planos de desenvolvimento econômico, e rotas para o escoamento do ouro. Nesse texto, escrito por um autor anônimo no fim do século XVIII, vemos emergir um modelo de colonização baseada na razão e em leis universais, que possibilitariam à colônia cumprir com sua função dentro da lógica a partir da qual foi estabelecida – fornecer o máximo de lucros à metrópole. Em passagens como esta, do referido texto, fica explícito este ideal de colonização:

Esta impossibilidade de subsistir qualquer indivíduo sem alheios socorros, ou Lei universal, que liga os homens entre sí tem a pollitica nas Collonias para maior utilidade, e dependencia em que devem estar da metropole, e nellas como temos ditto, os habitantes só se devem occuppar em adquirir as matérias primeiras, e a ver, a troca d’ellas da mesma metropole as manufacturas necessárias, para satisfazer aquella parte que respeita ao vestir.iii

No Roteiro do Maranhão, a narrativa da viagem serve, em primeiro plano, a elaboração de considerações de ordem econômica e políticas. Esta é uma nova forma do gênero dos Roteiros de Viagens, que emerge no século XVIII, que vai além da descrição do espaço percorrido – função central dos roteiros do século XVI e XVII, como o famoso Roteiro da Navegação da Carreira das Índias. Este texto, escrito por Gaspar Ferreira Reimão, no início do século XVII, traz justamente uma descrição minuciosa da rota de navegação entre Portugal e as Índias. A origem dos roteiros marítimos remonta a tradição grega de produzir narrativas sobre o mediterrâneo. Os Roteiros de Viagens terrestres-fluviais, como o Roteiro do Maranhão, reproduzem, em boa medida esta mesma matriz discursiva das narrativas de viagens marítimas. No entanto, a partir do XVIII, tais Roteiros visam não só produzir uma descrição eficiente do caminho para que o viajante encontre os pontos de referência decisivos, e consiga efetivamente alcançar seu destino mas também uma transformação do espaço percorrido. Esse objetivo fica explícito justamente nos planos de ocupação e povoamento que encontramos em textos produzidos no norte do Brasil em fins do XVIII.

O surgimento desse novo modelo de roteiros está intimamente vinculado à nova épistemeiv das ciências que emerge no século XVIII. Agora os roteiros buscam não só a descrição, a representação que duplica a imagem do percurso, mas sim uma análise capaz de capturar a essência das colônias. Para tanto, utilizam-se de recursos adquiridos a partir das novas ciências como a economia política, que emerge em meados do século XVIII na França (com a chamada escola dos fisiocratas) e que se constituiu de forma definitiva, enquanto ciência, após a publicação da obra de Adam Smith, no fim do século XVIII. O autor anônimo, do Roteiro do Maranhão recorre às ciências econômicas em seu texto, principalmente quando busca convencer seus leitores na metrópole acerca da viabilidade de um plano de ocupação dos sertõesv entre os rios Tocantins e Parnaíba, por ele desenvolvido, após percorrê-los durante uma viagem de dois meses, no fim do século XVIII. E, além de povoar, o plano de ocupação proposto no Roteiro também tem a função de apaziguar nações indígenas que resistiam à colonização da região (os Pinajés), sem, no entanto, derramar sangue em cruéis combates:

Isto posto he facil de conhecer, que cortado todo este Paiz, com huma linha de Povoações nossas, desde os Sertões da Parnahiba até Tocantins, as Nações, que ficassem ao Norte, vendo que nós por toda a parte as cercavamos; não só virão com mais facilidade à nossa sugeição, mas, sem as largas despezas, e funestas enfermidades.vi

No Roteiro do Maranhão, vemos a constituição, de um discurso de repúdio aos métodos tradicionais de colonização dos sertões vii que incluíam o genocídio dos índios. Segundo esse plano, o estabelecimento, entre os rios Tocantins e Parnaíba, de uma linha de povoações para a criação de gado, seria suficiente para o chamado “apaziguamento” dos índios. Essas povoações sugeridas no Roteiro serviriam ainda como cidades de apoio numa possível rota para o escoamento do ouro que ainda fluía das minas de Goiás, para os portos do Maranhão e Pará. No fundo desses discursos, vemos a idéia de que a barbárie não mais poderia servir para fins civilizatórios, e as principais armas dos colonizadores deveriam ser os planos racionais de povoamento. Imbuído de uma perspectiva iluminista acerca do trato com os índios, mas ao mesmo tempo imerso na lógica utilitária da administração da colônia, o autor anônimo do Roteiro do Maranhão traça seu plano de civilização.

Grão Pará e Maranhão, século XVIII

A história dos viajantes portugueses pelo norte do Brasil no século XVIII está também intimamente ligada à história dos tratados entre Portugal e Espanha. Em 1750 os monarcas dos países ibéricos assinam o Tratado de Madrid, um tratado preliminar de limites, que causa nos anos seguintes uma onda sem precedentes de expedições para a demarcação das fronteiras no norte do Brasil. Dessas expedições participaria até o governador do Grão-Pará e Maranhãoviii, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, chegando aos extremos de seus domínios, no alto Rio Negro, local certamente nunca antes visitado por uma autoridade de tamanha importância. Tanto o Tratado de Madrid quanto o governo de Mendonça Furtado representam um marco na produção dos roteiros. Dentre os interesses de Portugal na assinatura deste tratado que consolidou seus vastos domínios a oeste de Tordesilhas em troca da colônia de Sacramento está a exclusividade na navegação de vários rios no norte do Brasil. Uma vez assinado o tratado, era preciso consolidar a conquista dos rios, conhecer e, acima de tudo, mostrar ao reino rival esse conhecimento. Assim, o Roteiro do Maranhão é um texto que visa demarcar os sertões mais incultos como pertencentes à colônia lusitana, descrevendo em língua portuguesa tais sertões, e ainda mostrando planos de povoamento e utilização dessas terras.

Maria Lucia Abaurre Gnerre é doutoranda em história social na Unicamp. E-mail: luciaabaurre@terra.com.br


Notas

i CF. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 22ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras,1995. Principalmente no capítulo “O semeador e o ladrilhador” o autor faz considerações nesse sentido.

ii O texto do Roteiro do Maranhão foi publicado em 1900 pela revista do IHGB e faz parte de uma série de publicações de escritos coloniais cuja edição se fazia necessária, naquele momento, para que os historiadores pudessem formar nossa história nacional.

iii ANÔNIMO. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhí. Revista IHGB, Rio de Janeiro tomo 62, ano 1900, p. 109.

iv O temo grego épisteme significava, em geral o conhecimento de algo e, mais ainda, o conhecimento compartilhado de alguma coisa. A compreensão da epistéme na filosofia clássica passa também pela compreensão do termo téchne, pois estes termos estavam em constante correlação. A épisteme significa aqui, o discurso sobre as coisas, sobre seu modo de ser. E também a forma como se dá a transmissão do conhecimento das coisas em si.

v É importante lembrar que, no século XVIII, o termo sertão designava nos discursos dos colonizadores, um lugar desabitado. Assim, o sertão poderia ser composto por rios, florestas, caatingas ou serrados. O que caracterizava o sertão era o isolamento, o afastamento da civilização.

vi ANÔNIMO. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhí. Op. cit., p. 87.

viiPraticados principalmente pelas bandeiras do fim do século XVII. A este respeito, Cf. MONTEIRO, Jhon. “Escravidão indígena e despovoamento na América portuguesa: S. Paulo e Maranhão”. In: Brasil: nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: comissão para as comemorações dos descobrimentos portugueses, 1992.

viii Sobre a complexa história do estado do Grão Pará e Maranhão, podemos fazer um breve resumo de sua constituição político-administrativa: Em 1621, um decreto Régio estabelece que o Maranhão (incluindo a capitania do Piauí) e o Grão-Pará passam a formar um estado autônomo. Entre 1652 e 1654 os governos do Pará e Maranhão tornam-se independentes e, voltando a se unir em 1654, assim permanecem até 1772, quando são novamente separados. A separação só viria a se efetivar três anos mais tarde, quando o Pará anexa a seu território a capitania do Rio Negro. Em 1753, durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, estabelecem-se dois governos dentro do estado do Grão-Pará e Maranhão, um situado em Belém, e o outro em São Luis.