Segundo
Sérgio Buarque de Holanda,i
o que caracteriza a forma como a colonização
lusitana
se organiza no Brasil é a postura de semeador, do
colonizador
que planta cidades e civilizações como quem joga
sementes ao vento sem um plano certo, racional. Em
oposição
a esta postura, teríamos o ladrilhador, representado pelo
colonizador espanhol, que organiza racionalmente seu empreendimento,
planeja nos mínimos detalhes as formas de suas cidades, de
suas civilizações. A partir da segunda metade do
século
XVIII, no entanto, encontramos vários textos e cartas
produzidos na colônia, dentre eles Roteiros de Viagens, onde
planos de povoamento dos sertões são
minuciosamente
desenhados, em sintonia com a racionalidade que norteia as
ciências
da época na Europa.
O
Roteiro do Maranhão a Goyaz pela
Capitania do Piauhy
ii
é um desses textos, que propõe justamente o
estabelecimento de cidades, planos de desenvolvimento
econômico,
e rotas para o escoamento do ouro. Nesse texto, escrito por um autor
anônimo no fim do século XVIII, vemos emergir um
modelo
de colonização baseada na razão e em
leis
universais, que possibilitariam à colônia cumprir
com
sua função dentro da lógica a partir
da qual foi
estabelecida – fornecer o máximo de lucros
à
metrópole. Em passagens como esta, do
referido texto,
fica explícito este ideal de
colonização:
Esta
impossibilidade de subsistir qualquer indivíduo sem alheios
socorros, ou Lei universal, que liga os homens entre sí tem
a
pollitica nas Collonias para maior utilidade, e dependencia em que
devem estar da metropole, e nellas como temos ditto, os habitantes
só
se devem occuppar em adquirir as matérias primeiras, e a
ver,
a troca d’ellas da mesma metropole as manufacturas
necessárias,
para satisfazer aquella parte que respeita ao vestir.iii
No
Roteiro do Maranhão, a narrativa da
viagem serve, em
primeiro plano, a elaboração de
considerações
de ordem econômica e políticas. Esta é
uma nova
forma do gênero dos Roteiros de Viagens, que emerge no
século
XVIII, que vai além da descrição do
espaço
percorrido – função central dos
roteiros do século
XVI e XVII, como o famoso Roteiro da
Navegação da
Carreira das Índias. Este texto, escrito por
Gaspar
Ferreira Reimão, no início do século
XVII, traz
justamente uma descrição minuciosa da rota de
navegação
entre Portugal e as Índias. A origem dos roteiros
marítimos
remonta a tradição grega de produzir narrativas
sobre o
mediterrâneo. Os Roteiros de Viagens terrestres-fluviais,
como
o Roteiro do Maranhão, reproduzem, em
boa medida esta
mesma matriz discursiva das narrativas de viagens marítimas.
No entanto, a partir do XVIII, tais Roteiros visam não
só
produzir uma descrição eficiente do caminho —
para que
o viajante encontre os pontos de referência decisivos, e
consiga efetivamente alcançar seu destino — mas
também
uma transformação do espaço
percorrido. Esse
objetivo fica explícito justamente nos planos de
ocupação
e povoamento que encontramos em textos produzidos no norte do Brasil
em fins do XVIII.
O
surgimento desse novo modelo de roteiros está intimamente
vinculado à nova épistemeiv
das ciências que emerge no século XVIII. Agora os
roteiros buscam não só a
descrição, a
representação que duplica a imagem do percurso,
mas sim
uma análise capaz de capturar a essência das
colônias.
Para tanto, utilizam-se de recursos adquiridos a partir das novas
ciências como a economia política, que emerge em meados do século XVIII na França (com
a
chamada escola dos fisiocratas) e que se constituiu de forma
definitiva, enquanto ciência, após a
publicação
da obra de Adam Smith, no fim do século XVIII. O autor
anônimo, do Roteiro do Maranhão
recorre às
ciências econômicas em seu texto, principalmente
quando
busca convencer seus leitores na metrópole acerca da
viabilidade de um plano de ocupação dos
sertõesv
entre os rios Tocantins e Parnaíba, por ele desenvolvido,
após
percorrê-los durante uma viagem de dois meses, no fim do
século
XVIII. E, além de povoar, o plano de
ocupação
proposto no Roteiro também tem a
função de
apaziguar nações indígenas que
resistiam à
colonização da região (os
Pinajés), sem,
no entanto, derramar sangue em cruéis combates:
Isto
posto he facil de conhecer, que cortado todo este Paiz, com huma
linha de Povoações nossas, desde os
Sertões da
Parnahiba até Tocantins, as Nações,
que ficassem
ao Norte, vendo que nós por toda a parte as cercavamos;
não
só virão com mais facilidade à nossa
sugeição,
mas, sem as largas despezas, e funestas enfermidades.vi
No
Roteiro do Maranhão, vemos a
constituição,
de um discurso de repúdio aos métodos
tradicionais de
colonização dos sertões vii
que incluíam o genocídio dos índios.
Segundo
esse plano, o estabelecimento, entre os rios Tocantins e
Parnaíba,
de uma linha de povoações para a
criação
de gado, seria suficiente para o chamado
“apaziguamento” dos
índios. Essas povoações sugeridas no
Roteiro
serviriam ainda como cidades de apoio numa possível rota
para
o escoamento do ouro que ainda fluía das minas de
Goiás,
para os portos do Maranhão e Pará. No fundo
desses
discursos, vemos a idéia de que a barbárie
não
mais poderia servir para fins civilizatórios, e as
principais
armas dos colonizadores deveriam ser os planos racionais de
povoamento. Imbuído de uma perspectiva iluminista acerca do
trato com os índios, mas ao mesmo tempo imerso na
lógica
utilitária da administração da
colônia, o
autor anônimo do Roteiro do Maranhão
traça seu
plano de civilização.
Grão
Pará e Maranhão, século XVIII
A história
dos viajantes portugueses pelo norte do Brasil no século
XVIII
está também intimamente ligada à história dos
tratados
entre Portugal e Espanha. Em 1750 os monarcas dos países
ibéricos assinam o Tratado de Madrid, um tratado preliminar
de
limites, que causa nos anos seguintes uma onda sem precedentes de
expedições para a
demarcação das
fronteiras no norte do Brasil. Dessas expedições
participaria até o governador do
Grão-Pará e
Maranhãoviii,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, chegando aos extremos
de
seus domínios, no alto Rio Negro, local certamente nunca
antes
visitado por uma autoridade de tamanha importância. Tanto o
Tratado de Madrid quanto o governo de Mendonça Furtado
representam um marco na produção dos roteiros.
Dentre
os interesses de Portugal na assinatura deste tratado — que
consolidou seus vastos domínios a oeste de Tordesilhas em
troca da colônia de Sacramento — está a
exclusividade
na navegação de vários rios no norte
do Brasil.
Uma vez assinado o tratado, era preciso consolidar a conquista dos
rios, conhecer e, acima de tudo, mostrar ao reino rival esse
conhecimento. Assim, o Roteiro do Maranhão
é um
texto que visa demarcar os sertões mais incultos como
pertencentes à colônia lusitana, descrevendo em
língua
portuguesa tais sertões, e ainda mostrando planos de
povoamento e utilização dessas terras.
Maria
Lucia Abaurre Gnerre é doutoranda em história social na
Unicamp. E-mail:
luciaabaurre@terra.com.br
Notas
i
CF. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes
do Brasil. 22ª. ed. São Paulo: Companhia
das Letras,1995. Principalmente no capítulo “O
semeador e o ladrilhador” o autor faz
considerações nesse sentido.
ii
O texto do Roteiro do Maranhão foi
publicado em 1900 pela revista do IHGB e faz parte de uma
série de publicações de escritos
coloniais cuja edição se fazia
necessária, naquele momento, para que os historiadores
pudessem formar nossa história nacional.
iii
ANÔNIMO. Roteiro do Maranhão a Goiaz
pela capitania do Piauhí. Revista IHGB, Rio de
Janeiro tomo 62, ano 1900, p. 109.
iv
O temo grego épisteme significava, em geral o conhecimento
de algo e, mais ainda, o conhecimento compartilhado de alguma coisa. A
compreensão da epistéme na filosofia
clássica passa também pela compreensão
do termo téchne, pois estes termos estavam em constante
correlação. A épisteme significa aqui,
o discurso sobre as coisas, sobre seu modo de ser. E também
a forma como se dá a transmissão do conhecimento
das coisas em si.
v
É importante lembrar que, no século XVIII, o
termo sertão designava nos discursos dos colonizadores, um
lugar desabitado. Assim, o sertão poderia ser composto por
rios, florestas, caatingas ou serrados. O que caracterizava o
sertão era o isolamento, o afastamento da
civilização.
vi
ANÔNIMO. Roteiro do Maranhão a Goiaz
pela capitania do Piauhí. Op. cit., p. 87.
viiPraticados principalmente
pelas bandeiras do fim do século XVII. A este respeito, Cf.
MONTEIRO, Jhon. “Escravidão indígena e
despovoamento na América portuguesa: S. Paulo e
Maranhão”. In: Brasil: nas
vésperas do mundo moderno. Lisboa: comissão para as comemorações dos
descobrimentos portugueses, 1992.
viii
Sobre a complexa história do estado do Grão
Pará e Maranhão, podemos fazer um breve resumo de
sua constituição
político-administrativa: Em 1621, um decreto
Régio estabelece que o Maranhão (incluindo a
capitania do Piauí) e o Grão-Pará
passam a formar um estado autônomo. Entre 1652 e 1654 os
governos do Pará e Maranhão tornam-se
independentes e, voltando a se unir em 1654, assim permanecem
até 1772, quando são novamente separados. A
separação só viria a se efetivar
três anos mais tarde, quando o Pará anexa a seu
território a capitania do Rio Negro. Em 1753, durante o
governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
estabelecem-se dois governos dentro do estado do Grão-Pará e Maranhão, um situado em
Belém, e o outro em São Luis.
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