Procedimentos invasivos dolorosos freqüentemente são realizados em recém-nascidos admitidos nas unidades de terapia intensiva, em especial nos neonatos muito prematuros devido aos cuidados vitais necessários ao longo do período de internação.
Nos Países Baixos, estudou-se de maneira prospectiva o uso de analgésicos em procedimentos invasivos realizados em 151 recém-nascidos durante os primeiros 14 dias de vida. Os pacientes foram submetidos, no total, a 19.674 procedimentos. A aspiração de vias aéreas e a intubação traqueal constituíram 64% dos procedimentos, com uma média de zero a 53 procedimentos por dia por paciente. Em nosso meio, durante uma análise da freqüência do emprego de analgésicos em unidades de terapia intensiva neonatais universitárias, foram avaliados 91 recém-nascidos durante 30 dias no ano de 2003. Estes pacientes foram submetidos, no total, a 921 punções arteriais, 1045 punções venosas, 1437 punções capilares, 115 intubações traqueais, oito inserções de dreno torácico, 73 inserções de cateteres centrais e 64 punções lombares. Com exceção das inserções de drenos torácicos e cateteres centrais, em nenhum procedimento os pacientes receberam tratamento analgésico específico. Além da exposição à dor causada pelos procedimentos, os pacientes também foram submetidos a 17 cirurgias no mês de estudo e apenas 53% dos neonatos operados receberam alguma dose de analgésico no período pós-operatório.
Neste contexto, deve-se considerar que a exposição freqüente do recém-nascido doente, em especial os muito prematuros, a dor está ocorrendo em um período crítico de organização estrutural e funcional do sistema nervoso central, ressaltando-se os sistemas sensoriais medulares e supra-medulares. Alterações funcionais dos circuitos neurais podem constituir uma importante conseqüência da exposição aos estímulos dolorosos repetitivos e/ou prolongados no período neonatal.
Os efeitos agudos e os de longo prazo causados por estímulos dolorosos em recém-nascidos humanos podem ser investigados em modelos animais, dos quais se destacam os ratos recém-nascidos. Tendo em vista que o sistema nervoso central dos ratos ainda está incompleto ao nascimento, se comparado a outros mamíferos e, em particular, ao recém-nascido humano a termo, o período pós-natal do rato é o que melhor se aproxima do padrão de desenvolvimento observado em bebês humanos no terceiro trimestre de gestação.
Alterações comportamentais permanentes e/ou a longo prazo já foram descritas em animais adultos expostos à dor repetida quando recém-nascidos. Ratos recém-nascidos submetidos a estímulos dolorosos repetidos ou a estímulos táteis uma a quatro vezes ao dia desde o dia de nascimento até o sétimo dia de vida mostraram, quando adultos, preferência aumentada pelo álcool, aumento da ansiedade, comportamentos de defesa, de retirada e de hipervigilância e elevação do tempo de latência à exploração, quando colocados em campo aberto.
Da mesma maneira, um estudo recente em ratos demonstrou que a inflamação periférica vivenciada durante o período neonatal produz, em longo prazo, conseqüências no desenvolvimento do circuito neuronal nociceptivo e no comportamento frente à dor podendo levar a alterações profundas no processamento sensorial na idade adulta. Seguindo essa linha de pesquisa de dor no período neonatal em modelo animal e suas repercussões no sistema nervoso central, nosso grupo estudou efeito de estímulos nociceptivos agudos repetidos, realizados entre o primeiro e o sétimo dias de vida, sobre a neurogênese no giro denteado do hipocampo. Para a estimulação aguda, realizou-se quatro punções diárias em intervalos de uma hora nas patas dos animais com agulha fina durante a primeira semana de vida pós-natal de ratos Wistar. Nesse ensaio, ao avaliarmos a taxa de neurogênese na camada granular do giro denteado do hipocampo, não encontramos nenhuma diferença entre os animais que receberam a estimulação nociceptiva aguda repetida em relação aos animais controle.
Em relação ao recém-nascido humano, uma ligação direta entre a dor intensa no período neonatal e a alteração da resposta à dor na infância é sugerida por estudos que fazem o seguimento de recém-nascidos a termo, submetidos à circuncisão sem anestesia. Taddio e colaboradores demonstraram, em uma análise post-hoc, que recém-nascidos a termo saudáveis e circuncidados sem anestesia respondiam com exacerbação da mímica facial e da duração do choro à vacinação rotineira com quatro e seis meses de vida comparada aos não circuncidados. Os mesmos autores, em estudo prospectivo e randomizado, analisaram meninos circuncidados sem anestesia ou com analgesia mediante a aplicação de um anestésico tópico, o EMLA e encontraram uma resposta mais atenuada à vacinação na infância naqueles expostos ao anestésico tópico do que nos pacientes que não receberam qualquer medida para o alívio da dor. Esses resultados sugerem que o estímulo doloroso intenso no período neonatal deixe um imprint nas vias sensoriais, alterando a resposta à dor durante a infância.
Já a dor prolongada, persistente ou repetitiva induziria a mudanças fisiológicas e hormonais, que, por sua vez, modificariam os mecanismos moleculares neurobiológicos operantes nestes pacientes e desencadeariam uma reprogramação do desenvolvimento do sistema nervoso central. Em longo prazo, as seqüelas no desenvolvimento de crianças, que estiveram muito doente enquanto recém-nascidas, podem ser tão relevantes quanto as modificações da resposta à dor durante a infância e a vida adulta.
Em relação à sensibilidade posterior à dor, há achados consistentes de que crianças prematuras apresentam um limiar mais baixo à estimulação nociceptiva, quando submetidas a procedimentos invasivos repetidos, pois apresentam lesão, inflamação, hiperinervação da área afetada e hiperexcitabilidade das regiões de aferência em nível de medula espinal, tornando-se hipersensíveis à dor. O melhor modelo desse fenômeno é aquele em que o paciente é submetido a punções capilares repetidas em um mesmo local, o que, sem dúvida, faz parte da rotina dos neonatos criticamente doentes.
Os bebês expostos à estimulação nociceptiva repetida e/ou persistente passam também a exibir reações comportamentais diante de estímulos táteis não dolorosos e de estímulos desagradáveis como o barulho. Ou seja, em pacientes submetidos a múltiplos estímulos dolorosos, os não-dolorosos passam a ser percebidos como dor e os estímulos dolorosos passam a ser desencadeados em limiares cada vez mais baixos, com efeitos deletérios cumulativos.
Assim, apesar da necessidade de pesquisas sistemáticas na área, a sugestão de uma reestruturação da reposta à dor e a estímulos ambientais variados em indivíduos submetidos a múltiplos procedimentos invasivos durante o período neonatal não deve ser negligenciada como fonte de preocupação em relação ao prognóstico de recém-nascidos criticamente doentes.
Como referido anteriormente, o prematuro e/ou o neonato criticamente doente estão sujeitos a procedimentos diagnósticos e terapêuticos desagradáveis e/ou dolorosos, além de apresentarem risco elevado para uma série de intercorrências relacionadas à própria condição que obrigou a internação na UTI, incluindo, entre outras, a doença pulmonar crônica, a hemorragia peri-intraventricular, a asfixia perinatal e a leucomalácia periventricular. A associação desses eventos pode culminar no aparecimento de deficiências motoras, sensoriais, cognitivas, de aprendizagem, de atenção e de comportamento durante a infância, adolescência e vida adulta desses pacientes.
A dor é um dos fenômenos mais salientes de um sem-número de vivências a que os prematuros são expostos de maneira mais precoce do que a recomendado pela natureza. Essa exposição precoce à dor pode alterar o desenvolvimento cerebral do bebê e afetar as aquisições neurológicas, emocionais e cognitivas posteriores.
Ruth Guinsburg é professora titular da disciplina de pediatria neonatal do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp); Ana Teresa Stochero Leslie é mestre em ciências e médica da disciplina de pediatria neonatal Departamento de Pediatria da Unifesp e Luciene Covolan é professora adjunta da disciplina de neurofisiologia do Departamento de Fisiologia da Unifesp.
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