Em sua Carta acerca da tolerância, Locke tem como preocupação central defender a distinção e a separação efetiva entre uma unidade espiritual e uma unidade política da sociedade moderna constituída em Estado. É esse propósito que o levou a defender o princípio da tolerância como ponto de intersecção e critério de demarcação necessário, pois “ninguém pode impor-se a si mesmo ou aos outros, quer como obediente súdito de seu príncipe, quer como sincero venerador de Deus: considero isso necessário sobretudo para distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade. Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação das almas, de um lado, e, por outro, pela segurança da comunidade”1.
Ao longo de mais de dois séculos, esse propósito fundamental de Locke permaneceu a pedra de toque da defesa liberal da tolerância, cuja abrangência foi sendo paulatinamente estendida a outros domínios que não apenas o da religião. E, de fato, a história do século XX mostrou que, sendo uma prática social e não um mandamento estatal, a tolerância continua sendo requerida para o mesmo objetivo de há trezentos anos: de diferentes maneiras, manter o Estado distante de mandamentos religiosos ou morais particulares. Com a diferença de que esse objetivo foi incorporado à agenda de movimentos não-liberais.
Ocorre que, ao lado dessa permanência e dessa maior abrangência do princípio da tolerância, o que se viu na segunda metade do século XX foi um questionamento de base dessa prática. E isso em pelo menos dois sentidos. Por um lado, um questionamento parcial e unilateral da tolerância por parte de pensadores críticos tão diferentes quanto Marcuse e Foucault, que enfatizaram unicamente os aspectos patológicos dessa prática social liberal2. E, de outro lado, o surgimento de novas reivindicações de grupos sociais que criticam a prática tradicional da tolerância em nome da exigência de reconhecimento para suas práticas e formas de vida.
Entendemos que para pensar essa recente valorização e os questionamentos acerca dos vários sentidos do ideal e da prática da tolerância é necessário situá-la, ainda que de forma bem breve, no contexto de transformação da lógica dos conflitos sociais nas últimas três décadas.
Começamos, portanto, pela constatação de que as energias emancipatórias se descentraram definitivamente nos anos 1970. É certo que já vinha de algum tempo antes o deslocamento da luta entre capital e trabalho do centro dos conflitos sociais. Mas essa transformação se consolida nos anos 1970, como o indica a própria denominação (no plural) “novos movimentos sociais”.
Provavelmente a consequência mais importante desse descentramento dos conflitos foi o deslocamento radical da posição da democracia no horizonte de parte importante desses novos movimentos sociais. Antes um quadro institucional a ser ocupado apenas estrategicamente, as democracias existentes passaram a ser desafiadas em seus limites de funcionamento concreto, mas sem pretensões de sua substituição, seja revolucionária seja reformista, por uma “verdadeira democracia”. No fundo, o que caducou foi a própria alternativa “reforma ou revolução”: se o conflito entre capital e trabalho se torna um conflito entre outros, perdendo, assim, a centralidade que já teve, não há mais um caminho único e unitário que conduza à emancipação. Acresce que, a partir de então, o próprio socialismo deixou de ser sinônimo universal de emancipação.
Essa importante transformação se deve, por certo, a transformações estruturais do próprio capitalismo pós-1945 e significou ao mesmo tempo uma pluralização de objetivos e estratégias por parte dos movimentos sociais. Mas se deve igualmente a uma premissa não questionada que boa parte dos movimentos emancipatórios partilhou por longo tempo com seus adversários conservadores: um padrão de modernização social único e modelar. Foi a imposição desse modelo único que forneceu a unidade, mesmo que negativa, dos novos movimentos sociais em sua diversidade: a oposição à imposição de uma forma de vida única e modelar ao conjunto da sociedade. Era esse o cerne da crítica dirigida tanto ao assim chamado “socialismo real” como às sociedades capitalistas3. Foi no contexto do posicionamento da institucionalidade democrática no centro das disputas teóricas e práticas que a ideia de tolerância voltou ao foco dos debates. Pois, em certo sentido, a própria ideia liberal tradicional de tolerância já havia sido deixada concretamente para trás. A qualidade e a magnitude da intervenção estatal na vida social no período pós-1945 invadiu esferas antes consideradas de domínio estrito do privado. E regulação jurídica se estendeu a âmbitos que o quadro liberal clássico havia definido como vedados à intervenção do direito.
De outro lado, porém, os novos movimentos sociais não se comportaram apenas de maneira negativa em relação ao paternalismo e ao intervencionismo estatal do período pós-1945. De uma postura de “defesa de minorias” passaram rapidamente a defender “políticas de identidade” que iam muito além da mera reivindicação de serem tolerados. Suas reivindicações apontavam para uma pretensão de reconhecimento de suas identidades não apenas como formas legítimas de vida, mas como formas valiosas e apreciáveis de viver. Desde o final dos anos 1990, a própria ideia de “política de identidade” foi posta em questão pelos movimentos sociais, no sentido de que pode promover fixações de identidade que passam a ser camisas-de-força para os atores e não abertura de novos caminhos. Permanece, entretanto, a ideia da busca de reconhecimento por formas de vida novas ou reprimidas por valores sociais que pretendem se impor como universais e excludentes. Foi com essa virada na lógica dos movimentos sociais que se estabeleceram as verdadeiras “guerras culturais” dos anos 1990 e 2000. O fato de questões como sexualidade, etnicidade ou meio ambiente passarem ao centro das discussões tem a ver diretamente com a pluralização dos focos de conflitos. E a gramática desses conflitos – sejam eles conflitos de igualdade ou conflitos de liberdade – passou a ser posta a partir de então em termos da presença ou ausência de condições para que indivíduos e grupos desenvolvam autonomamente seus planos de vida.
Essa nova lógica repõe a polarização entre esquerda e direita em novos termos. A direita considera excessiva a reivindicação de reconhecimento posta por muitos movimentos sociais. Embora essa recusa se expresse de maneira mais saliente em casos como os dos movimentos LGBTT e do aborto, ela pode ser encontrada em muitos outros casos menos óbvios. A estratégia política da direita democrática tem sido até o momento a de recuar para uma defesa da noção liberal clássica de tolerância. Ao mesmo tempo, como já mencionado, essa possibilidade foi concretamente elidida pelo desenvolvimento da regulação social no capitalismo pós-1945, de modo que essa defesa só pode vir mitigada. De qualquer forma, serviu também – pelo menos até a crise econômica de 2008 – como ponta de lança para a “restauração” de parâmetros liberais clássicos de regulação não apenas econômica, mas também social em sentido amplo.
Do lado da esquerda, reivindicações de reconhecimento passaram a se valer muitas vezes do recurso a instrumentos jurídico-legais de vieses bastante distintos. Recorre-se, de um lado, à produção de celebração oficial de identidades (como o “Dia da Consciência Negra”, por exemplo). De outro lado, entretanto, recorre-se a instrumentos antes considerados de uso exclusivo da direita política, como é o caso da reivindicação de leis de criminalização de condutas discriminatórias. O que chama a atenção neste último caso não é a reivindicação de responsabilização por tais condutas, o que é certamente um objetivo clássico da esquerda. O que chama a atenção é a identificação de “responsabilidade” com “crime”, sendo este entendido expressamente como “pena de prisão”. Nesse último caso, é a noção de tolerância que está sendo mobilizada na reivindicação de reconhecimento. Mas com a peculiaridade de se reivindicar que o direito realize uma missão que não fazia parte do rol de suas atribuições no liberalismo clássico: a de produzir tolerância4.
Esse ponto é essencial, entre outras possíveis razões, porque a tolerância não deve ser considerada como um elemento de um regime político democrático em sentido estrito. Traduzida em termos democráticos, a tolerância só encontra seu lugar como uma cultura da tolerância presente na vida social cotidiana. Dito de outra maneira, a tolerância não pode ser considerada assunto de Estado senão ao risco da imposição de uma forma determinada de tolerância ao conjunto da sociedade. Isso significa também que a garantia da tolerância por meios jurídicos tem de ser entendida de forma limitada e sempre problemática.
Seja como for, fica patente que o conceito clássico de tolerância já ficou para trás. E, no entanto, o problema que ele representa persiste e continua a exigir ser pensado. Mas agora sob novas formas. O que se propõe aqui é que ele seja pensado primeiramente em seu duplo registro: tanto jurídico-político como de cultura política. Os dois momentos têm de ser pensados conjuntamente e em articulação, é certo. Mas possuem elementos que são peculiares e que podem e devem ser analisados separadamente. Se não for por outra razão, porque as diferentes maneiras como se articulam (ou não) esses dois momentos irão também definir em boa medida as diferentes posições relativamente à tolerância no debate atual.
Tal é o caso, por exemplo, da ideia de “liberdade negativa”, que fundamenta os direitos civis essencialmente como “direitos de defesa” da cidadania relativamente ao Estado. Por problemática que possa ser essa noção, é certo que ela continua a ser sustentáculo importante de qualquer institucionalização jurídico-política da tolerância. E, no entanto, a maneira pela qual a ideia de “reconhecimento” fustiga o conceito clássico de tolerância remete diretamente a discussões sobre uma “cultura política democrática” que desafiam esse aspecto jurídico-político de um ponto de vista diretamente social. Nesse sentido, põem em causa a própria ideia de liberdade negativa como um conceito fecundo.
O que mostra que o grande desafio atual é conseguir encontrar espaço institucional democrático tanto para as exigências de reconhecimento como para as reações negativas a ela. Alcançar esse objetivo significará necessariamente aprofundar a democracia, ao passo que fracassar significará nada menos do que fazer definhar ou mesmo ver desaparecer as institucionalidades democráticas.
Marcos Nobre é professor de filosofia no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Unicamp e pesquisador e coordenador do núcleo Direito e Democracia do Cebrap. Denilson Luis Werle é professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
Este texto é uma versão resumida da apresentação do Dossiê Tolerância, publicado na revista Novos Estudos - Cebrap, n. 84, 2009.
Notas e Referências bibliográficas
1. Coleção Os Pensadores, vol. XVIII, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 11. 2. Sobre isso, ver o monumental livro de Rainer Forst, Toleranz im konflikt. Geschichte, gehalt und gegenwart eines umstrittenen Begriffs, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 2003, especialmente pp. 703-708. Ver também Marcos Nobre, “Elementos de um conceito crítico de tolerância”, in: Altair Alberto Fávero, Claudio Almir Dalbosco e Telmo Marcon (orgs.), Sobre filosofia e educação: racionalidade e tolerância, Passo Fundo: UPF Editora/DAAD, 2006. 3. Um desenvolvimento um pouco mais amplo desse diagnóstico geral pode ser encontrado em Marcos Nobre, “Participação e deliberação na teoria democrática: uma introdução”, in: Vera Schattan P. Coelho; Marcos Nobre, Participação e Deliberação: Teoria democrática e experiências institucionais no Brasil Contemporâneo, São Paulo: Editora 34, 2004. As consequências disso para a distinção entre o campo político da esquerda e da direita foi apresentada esquematicamente em Marcos Nobre, “Novas polarizações – ainda sobre esquerda e direita”, in: Econômica, dossiê direita e esquerda, volume 9, número 2, dezembro de 2007. Esses dois textos servem de pano de fundo às considerações introdutórias ao conceito de tolerância nos debates atuais realizada aqui. 4. Sobre esse desenvolvimento e o que se lhe segue, ver o já citado “Elementos de um conceito crítico de tolerância”, in: Altair Alberto Fávero, Claudio Almir Dalbosco e Telmo Marcon (orgs.), Sobre filosofia e educação: racionalidade e tolerância, Passo Fundo: UPF Editora/DAAD, 2006.
|