O debate intelectual e a produção científico-acadêmica realizados no Brasil sobre temas afetos às relações internacionais e à política exterior cresceram em importância e em qualidade nos últimos vinte anos. Esse processo traduz o adensamento do “pensamento brasileiro de relações internacionais”, particularmente perceptível ao longo dos anos noventa. Verificou-se tanto o crescimento do interesse dos meios iniciados (acadêmicos, militares, diplomatas etc) no debate especializado quanto a diversificação de centros dedicados à reflexão, à pesquisa e ao ensino no Brasil, e o crescimento do número de atores que produzem análises de todos os tipos, seja para amparar a tomada de decisão nos organismos dedicados à formulação e implementação da política externa, seja para influenciá-la. O fato é que é possível observar que o debate acerca dos temas internacionais ganhou novos foros, em que se incluem redes de organizações não-governamentais, federações de empresários dos mais diversos setores, centrais sindicais, mas especialmente, novas e diversificadas redes acadêmicas.
A partir dos anos noventa, a academia brasileira dedicada às relações internacionais cresceu quantitativa e qualitativamente e ganhou novas formas institucionais, levada pela necessidade de compreender as inflexões que vêm ocorrendo nas relações internacionais, especialmente pontuadas pelo fim da Guerra Fria e pelo advento da globalização.
Desse modo, o estudo das relações internacionais no país, em suas múltiplas vertentes metodológicas, além de focalizar as interações entre Estados nacionais, se voltou também para a análise de diversos fenômenos recentes e complexos. Assim, passaram a ser objeto da atenção dos analistas das relações internacionais os temas relacionados com as dinâmicas da integração regional e a formação de blocos econômicos, a cultura, a cooperação e a segurança nos níveis regional e internacional e a estruturação de regimes internacionais em áreas como as do clima, do meio-ambiente, da proteção internacional dos direitos humanos e da política econômica, entre outros de uma agenda crescentemente complexa, que afeta diretamente países como o Brasil.
Esses movimentos expressam, em poucas palavras, o interesse pela relevância crescente do Brasil no cenário internacional e, especialmente, pelos desafios da sua inserção em um meio muito mais complexo e diversificado. Essa constatação, entretanto, não esconde o fato de que a grande área científico-acadêmico de relações internacionais seja no Brasil ainda injustificadamente pouco desenvolvida, especialmente se comparada ao crescimento experimentado em outros países latino-americanos, especialmente na Argentina e no México.
Um outro problema situa-se no fato de que no Brasil foi difícil definir os limites da área de relações internacionais, tendo em vista as diferenças metodológicas e conceituais que marcam a disciplina e, especialmente, a sua natureza inter e multidisciplinar.
A evolução da academia brasileira especializada em relações internacionais, nas suas diferentes vertentes metodológicas reflete bastante o modo como se organizaram os principais programas de pós-graduação e de pesquisa nas universidades brasileiras.
Pode-se afirmar que dois grandes pólos surgiram e se consolidaram como espaços científicos de alto nível entre os anos setenta e os final dos anos oitenta – a Universidade de Brasília e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Isso não significa, evidentemente, que a reflexão científica especializada não fosse ativa e de grande qualidade em outros centros, mas é certo que nesses não se criou um ambiente institucional adequado para a reprodução de experiências sustentadas de formação de quadros (em torno de programas de mestrado, doutorado e, eventualmente, de graduação especificamente em relações internacionais) e para a congregação de pesquisadores especializados em torno de programas de pesquisa sustentáveis.
A inflexão fundamental para a estruturação da área no Brasil se deu com a criação do programa de pós-graduação em história da Universidade de Brasília (1976), que desde os seus primórdios manteve um dinâmico programa de pesquisa e de formação de pesquisadores na área de relações internacionais. O surgimento dessa nova ambiência institucional marcou o progresso da historiografia das relações internacionais no país e, evidentemente, condicionou a sua agenda de pesquisa.
A criação do primeiro doutorado em história das relações internacionais, em 1994, consolidou a Universidade de Brasília como o mais dinâmico pólo brasileiro e um dos mais importantes na área de história das relações internacionais na América Latina. Esse fato indica, inclusive, a abertura de uma nova fase na historiografia brasileira de relações internacionais e de política exterior, uma vez que a consolidação da área no país se deu em torno de programas de ensino e pesquisa altamente vinculados com as principais redes acadêmicas e científicas especializadas em história das relações internacionais na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos.
O programa de pós-graduação em relações internacionais da Universidade de Brasília foi o primeiro do Brasil na área de política internacional stricto sensu, tendo sido organizado em 1984. Esse programa foi criado com um mestrado que secundava os esforços de formação de quadros empreendidos em nível de pós-graduação na área de história da mesma instituição. Em 2000, entretanto, os dois programas foram fundidos em um Instituto de Relações Internacionais, com a criação de um único mestrado e doutorado em Relações Internacionais, organizado em duas áreas de concentração (História das relações internacionais e política internacional e comparada).
O segundo pólo de formação em nível de pós-graduação de expressão na área de relações internacionais no Brasil foi criado em 1984 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, quando foi instituído o seu Instituto de Relações Internacionais, que pode ser caracterizado como de política internacional stricto sensu, uma vez que predomina em seus quadros profissionais com atuação marcadamente caracterizada pelos aparatos analíticos da politologia, em especial de inspiração anglo-saxônica.
Outras experiências foram lançadas nos anos noventa, como o da área de história das relações internacionais do programa de pós-graduação em história da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. A partir de 2001, novos programas de pós-graduação foram lançados com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, que por meio do programa San Thiago Dantas procurou fomentar a formação de quadros para o ensino e a pesquisa sobre relações internacionais no Brasil. Nesta última safra foram então organizados os programas de mestrado em relações internacionais que têm feições mais multidisciplinares, como o que surgiu da cooperação das três grandes universidades do estado de São Paulo (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Universidade de Campinas – Unicamp e Universidade Estadual Paulista – Unesp). O programa de mestrado em relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, por seu turno, tem como área de concentração os processos de integração regional, e entre os seus colaboradores estão especialistas em história das relações internacionais, direito, economia, geografia e ciência política. Finalmente, o último dos programas de pós-graduação em relações internacionais que surgiram ao final dos anos noventa foi o da Universidade Federal Fluminense - UFF, que tem como área de concentração economia e política das relações internacionais.
Como é possível concluir do acima exposto, os estudos em nível de pós-graduação na área de relações internacionais, que se iniciaram nos anos setenta na Universidade de Brasília, vêm se consolidando como um campo multidisciplinar mais recentemente, processo que pode ser percebido nas experiências institucionais que se estabeleceram a partir dos anos noventa. Com efeito, se vê que na maior parte dos programas acima relatados prevalece o entrosamento multidisciplinar, e a cooperação entre as áreas, não apenas a história e a ciência política, mas também a economia, o direito e a geografia.
Procurou-se demonstrar neste breve relato que a reflexão brasileira sobre relações internacionais em geral ganhou em sofisticação do início dos anos noventa aos nossos dias, e que se observa o nascimento de abordagens crescentemente multidisciplinares. É fato que esse processo ainda está circunscrito a poucas experiências, onde se percebe o diálogo intenso entre os diferentes paradigmas de análise das ciências sociais. Para isso, contribuiu tanto o redesenho institucional que se observou mais recentemente, que deu origem a novos e diversificados centros de pesquisa e de pós-graduação, quanto a evolução de experiências e de grupos mais antigos e já consolidados. Com efeito, viu-se que os anos noventa foram para essa área no Brasil uma fase de redesenho institucional, de expansão e de grande amadurecimento analítico, ao ponto em que é já possível vislumbrar uma escola consolidada, que produz os seus próprios modelos de análise e contribui para a evolução teórica e conceitual da disciplina.
Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
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