10/04/2008
A autobiografia de Ishmael Beah, mais do que um relato sobre a guerra, é uma narrativa literária sobre a transformação. Menino que se transforma, pela violência da guerra civil em Serra Leoa, num soldado. Soldado que, mesmo sendo um assassino, nunca deixa de ser criança. Dessas contradições, durante sua reabilitação, surge um escritor. “Hoje vivo em três mundos: meus sonhos, e as experiências da minha nova vida, que desencadeiam memórias do passado”. Desse lugar, hoje, é que Beah nos conta sua história antes, durante e depois da guerra. Mais do que a violência em si, o que impressiona é a própria narrativa do escritor. Não se trata de contar os episódios que desencadearam o conflito entre rebeldes e governo. A cronologia dos fatos históricos de Serra Leoa, disponível no final do livro, é dispensável. O que interessa é o modo como Ishmael Beah nos conta o que viveu.
O escritor inicia sua história descrevendo como a guerra lhe alcançou, em janeiro de 1993, quanto tinha apenas 12 anos. Ele e um grupo de amigos estavam dando um passeio em Mattru Jong: um grupo de crianças brincando, carregando nas mochilas cadernos com letras de música, nos bolsos de seus jeans fitas cassete de cantores de rap; nadando nos rios e apedrejando pássaros com seus estilingues. Ouvem, então, notícias sobre o ataque dos rebeldes a Mogbwemo, sua cidade natal, da qual haviam saído há poucas horas, sem sequer se despedir de suas famílias. Começa a jornada de Beah, percorrendo, na companhia dos amigos, boa parte da área de conflito ao sul de Serra Leoa, na tentativa de escapar da guerra. Seu medo é tanto o de ser morto quanto o de ser pego vivo e recrutado, seja pelo exército do governo, seja pelas forças rebeldes do Revolutionary United Front (RUF): “Meninos novos eram rapidamente recrutados, e as iniciais RUF eram queimadas na carne, na parte do corpo que os rebeldes preferissem, com uma baioneta quente. Isso não só queria dizer que você ficaria marcado por toda a vida, mas que jamais poderia escapar deles, pois fugir carregando essa marca era pedir pela morte, e tanto soldados quando civis na milícia o matariam sem fazer qualquer pergunta”. (p.26)
O menino
A temporalidade da narração de Beah consiste numa alternância entre lembranças: memórias da violência da guerra mescladas com as da infância. Um acontecimento no passado vivido como soldado que serve de gatilho para uma lembrança mais remota de criança que puxa uma história contada por um ancião... Assim é que, ao fugir da guerra, Beah passa por Kabati e se lembra de... “Devemos nos esforçar para ser como a lua”... Uma das frases ditas por um ancião da aldeia de sua avó, e que o faz lembrar dela e de suas histórias. “Ela disse que as pessoas sempre reclamam quando o sol as castiga demais e está intoleravelmente quente, e também quando chove demais ou está frio. Mas, ela falou, ninguém se queixa quando a lua brilha. Todos ficam felizes e apreciam a lua, cada um a seu modo. As crianças brincam com suas sombras sob a luz da lua, as pessoas se juntam para contar histórias e dançar noite a dentro. Muitas coisas boas acontecem quando a lua brilha. Essas são algumas das razões pelas quais devemos desejar ser como a lua”. (p.20)
Nessa alternância entre o antes e o depois da guerra, Beah também quer deixar claro que nem a história de Serra Leoa nem a dele próprio podem ser resumidas unicamente ao conflito e à violência. “Sempre que tenho uma chance de observar a lua agora, ainda vejo as mesmas imagens que enxergava quando tinha seis anos, e me agrada saber que aquela parte da infância ainda está guardada em mim” (p. 20).
O menino-soldado
O relato ganha intensidade quando Beah é aliciado pelo exército do governo. Quando nós, leitores, estamos quase acreditando na possibilidade do menino escapar, depois de um relato sensível e sofrido sobre a fuga, que inclui a perda de vários amigos do grupo dos “sete meninos” e também o encontro com vários personagens que salvam suas vidas em momentos de solidariedade que venceram o medo e a desconfiança... Somos surpreendidos, juntos com Beah, na floresta, por dois soldados do exército, no capítulo 12.
Inicia-se, então, o treinamento do menino-soldado, que consiste num outro aprendizado da violência: manuseio de AK-47, G-3, lança-granadas, uso incessante de maconha, anfetaminas e “brown-brown” (mistura de cocaína e pólvora), sessões de Rambo,Comando Para Matar e outros filmes de guerra, e a repetição constante, por parte dos comandantes, da necessidade de que todos os meninos se lembrem do que aconteceu com suas famílias, para nunca esquecer o que haviam visto e sofrido até então.
Beah descreve como todos vão sendo submetidos a uma banalização da violência. Numa certa ocasião, ele e outros quatro meninos foram escolhidos para uma disputa cronometrada sobre quem realizaria mais rapidamente uma degolação. “Eu já tinha começado a olhar para o meu prisioneiro. Seu rosto estava inchado da surra que tinha levado, e seus olhos pareciam enxergar através de mim. Seu maxilar era a única parte tensa do corpo inteiro; tudo mais parecia relaxado. Não sentia nada por ele, não pensava muito sobre o que eu estava fazendo. Só esperava pela ordem do cabo. O prisioneiro era apenas mais um responsável pela morte da minha família, como eu tinha passado a crer cegamente. O cabo deu o sinal com um tiro de pistola e eu agarrei a cabeça do homem e cortei sua garganta com um movimento fluido” (p. 120). Beah vence a competição, é promovido a subtenente e ganha uma cabana só para ele.
Hip Hop e Shakespeare
Depois
de viver dois anos como soldado do exército, Beah acaba sendo
resgatado – à contragosto –
do front de guerra pela Unicef. No duro processo de reabilitação,
marcado pela abstinência das drogas e pesadelos recorrentes
sobre a guerra, já que não consegue esquecer as
atrocidades que testemunhou e também as que ele próprio
praticou, duas coisas fizeram a diferença: a música e o
ouvir e contar histórias.
“Decorar as letras quase não me deixava tempo para pensar nas coisas que tinham acontecido na guerra. Quando me acostumei com Esther - uma enfermeira -, comecei a conversar com ela principalmente sobre letras de Bob Marley, e Run D.M.C. também. A maior parte do tempo ela apenas ouvia. Duas vezes por semana Leslie - funcionário de uma ONG - vinha e repassava as letras comigo. Ele adorava me contar a história dos rastafáris. Amei a história da Etiópia e a história do encontro da rainha de Sabá com rei Salomão. Eu me identificava com o longo caminho que eles haviam percorrido e sua determinação em encontrar seu destino. Queria que a minha jornada tivesse sido tão significativa e divertida quanto a deles” (p. 158).
Música e histórias. Dois elementos que já faziam parte de sua formação intelectual e artística quando ainda era criança, antes da guerra, lembra a crítica literária Leila Perrone Moisés, num ensaio sobre o livro, em que destaca tanto o interesse de Beah pelo hip hop quanto o fato dele ter estudado Shakespeare na escola.
O fascínio pelo hip hop aparece logo na segunda página do livro: a partir de uma visita à Mobimbi, bairro dos estrangeiros que trabalhavam numa companhia norte-americana de mineração, Beah conta sobre a primeira vez que assistiu a um videoclipe de rap e o impacto que isso causou nele e em seus amigos, que logo montaram um grupo de break dance.
A lembrança da recitação de Shakespeare, na praça de sua aldeia, por sua vez, acontece ao se deparar com o tenente Jabati (responsável pelo seu treinamento de soldado) lendo Júlio César durante os intervalos dos combates de guerra.
Alguns poderiam objetar que a presença de Shakespeare poderia ser tomada como uma imposição dos colonizadores britânicos aos africanos, adverte Leila Moisés. “Isso até pode ser verdade, mas o que o caso de Beah mostra é que a recepção do cânone ocidental em culturas totalmente diferentes pode reverter a situação, transformando em apropriação aquilo que era imposição”. Além disso, o próprio universo de Shakespeare também reúne traços de outras culturas. Assim como a linguagem do hip hop, poderíamos acrescentar. A “cultura” de Beah, ao reunir o rap de Sugarhill Gang e LL Cool J, o reggae de Bob Marley, Júlio César de Shakespeare e contos “tradicionais”, permitiria, assim, repensar a própria lógica cultural e conceitos como pureza cultural, cultura primitiva, colonialismo cultural, alta cultura e cultura de massas.
“Sobre
meninos e lobos”
Esse foi o nome da mesa-redonda ocorrida
durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) do ano passado, e que
Ishmael Beah compartilhou com Paulo Lins, autor de Cidade
de Deus. O paralelo entre sua experiência e os meninos das favelas
brasileiras aliciados pelo tráfico foi um dos assuntos debatidos. Resta a
esperança de que os caminhos de todos eles se cruzem não só nas narrativas
sobre a guerra, mas também nas de sobrevivência e transformação como as de
Beah.
Muito longe de casa - Memórias de um menino-soldado
Ishmael Beah, Tradução de Cecilia Gianetti, Editora Ediouro, 2007, 224 p.
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