O ponto de encontro destas duas entrevistas é a análise do papel do Estado quando o assunto é a garantia dos direitos humanos
Por Susana Dias
10/03/2009
Perly Cipriano
Perly Cipriano é, atualmente, subsecretário de promoção dos
direitos humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) do governo federal. Participou de
diversas manifestações importantes na história da luta contra a ditadura
militar. Em 1967, foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops)
e, três anos mais tarde, preso novamente e torturado. Chegou a
cumprir dez anos de prisão e participou da formação do Partido dos
Trabalhadores (PT) com outros presos políticos. Recebeu, em maio de 2007, o
título de Cidadão Honorário de Brasília em reconhecimento a sua atuação em prol
dos direitos humanos. Nesta entrevista, toca em questões amplas
relacionadas ao papel das declarações, dos tratados, do Estado e dos direitos.
ComCiência –A
Declaração Universal dos Direitos Humanos completou sessenta anos em dezembro de
2008. Embora não seja um documento que representa obrigatoriedade legal no
direito internacional, serve de orientação para os dois tratados sobre direitos
humanos da ONU, de força legal. Como a Declaração e esses tratados vêm
contribuindo para o estabelecimento e consolidação dos direitos humanos no
planeta?
Percy Cipriano – A
Declaração Universal dos Diretos Humanos é marco referencial para todas as
políticas de direitos humanos que vem sendo implementadas nos diferentes
países. Esses direitos, até a década de sessenta, eram tratados isoladamente.
Hoje, o conceito é da indivisibilidade, da universalidade e da
interdependência. É possível afirmar que foi um enorme avanço para o mundo,
apesar das limitações que ainda existem na aplicação prática desses direitos
nos países. Os países aderem voluntariamente, embora muitos se neguem a fazer
tal adesão.
ComCiência – Há uma
forte crítica ao Estado brasileiro quando a questão é direitos humanos e uma avaliação de
que ele estaria ausente na garantia dos direitos fundamentais.
Mas também, paradoxalmente, há uma preocupação, em decorrência da criminalidade
e violência, com a atuação excessiva do Estado. Quais os desafios da atuação do
Estado na promoção e garantia dos direitos humanos?
Percy Cipriano – O
Brasil é hoje signatário de praticamente todos os tratados e convenções de
diretos humanos, tanto do sistema ONU quanto dos sistemas regionais. Somos um
dos primeiros países do mundo a elaborar um Programa Nacional de Direitos
Humanos. Temos uma Constituição que se baseia nos Direitos Humanos. Temos a
Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres (SPM), além de muitas leis específicas, estatutos etc.
Devemos ter sempre em mente que somos um estado federado, onde União, estados e
municípios são entes federados que precisam pactuar ações e políticas. É
fundamental que as políticas sejam pensadas e elaboradas para e com a
participação da sociedade civil. Sem a sociedade civil mobilizada, e
participando, corremos o risco de todas as políticas ficarem no papel. Nos
últimos cinco anos, mais de quarenta conferências nacionais se realizaram, com
a participação de milhões de segmentos sociais.
ComCiência – Os
Estados Unidos são bastante criticados pelas condições e torturas no presídio
de Guantánamo, em Cuba. O presidente Barack Obama pediu cancelamento de julgamentos no presídio e
ordenou seu fechamento. Como as constantes ocupações e interferência dos
Estados Unidos funcionam para pensar a questão dos direitos humanos?
Percy Cipriano – Os
Estados Unidos são uma grande democracia que exerceu e exerce influência na
vida o planeta. Ao mesmo tempo em que foram precursores da defesa dos direitos
humanos, foram grandes violadores dos mesmos direitos. Basta lembrar o racismo
institucionalizado da década de sessenta, e a permissão da tortura de
prisioneiros políticos em Guantánamo e no Iraque. As medidas adotadas pelo
primeiro presidente negro dos Estados Unidos são positivas e servem de
incentivo para novos avanços, bem como para impedir novos retrocessos no mundo.
ComCiência – É frequente
a associação entre violência e a ditadura militar. A violência no
Brasil teria relação com a não consolidação da democracia? O que falta
avançarmos nesse sentido?
Percy Cipriano – O
Brasil tem uma história de violência muito grande. Desde a chegada dos
portugueses, que escravizaram índios e trouxeram milhões de negros e negras
como escravos do continente africano. Temos uma das mais gritantes diferenças
sociais do mundo. Um cenário de extrema concentração de riqueza; só mais
recentemente tem havido esforço de reduzir tais desigualdades. Podemos afirmar
que a ditadura aumentou e fomentou a violência contra a população civil e, em especial,
contra os opositores políticos. É possível afirmar que o fato de não se ter
punido aqueles que torturaram e mataram durante a ditadura, criou uma área de
impunidade que permite a constituição da violência em nosso país.
Josely Rimoli
Enfermeira, sanitarista, psicodramatista, é atualmente docente
na área de saúde coletiva na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), localizada em Limeira, interior de
São Paulo. Fez parte do projeto “Rotas recriadas – crianças e adolescentes
livres da exploração sexual”, desenvolvido no âmbito da prefeitura municipal de
Campinas (SP) em 2004 e 2005, com o apoio da Petrobras. O objetivo do
projeto era propor uma política pública que enfrentasse o problema da exploração
criando uma rede de cuidado, proteção, educação, cultura e geração de renda. Em
seu doutorado, no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, a
pesquisadora analisou essa experiência e relata, nesta entrevista, as
dificuldades de propor e implementar uma política pública dessa natureza. O
projeto e suas apostas estão registrados também no documentário que recebeu três
prêmios no Festival Internacional de Gramado: “Rotas recriadas”.
ComCiência - Como
aconteceu o seu contato com a problemática da violação dos direitos das crianças e adolescentes?
Josely Rimoli – Eu
participava do Colegiado de Políticas Sociais da Prefeitura Municipal de Campinas na gestão 2001-2004, o qual elaborou o Plano Municipal para a Infância e Juventude. Para elaborar esse plano, nós
elencamos os principais problemas das crianças e adolescentes – falta de creches
e escolas; ausência de espaços para cultura e lazer; crianças egressas da
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem); crianças com problemas de uso
abusivo de drogas – com os olhares das várias Secretarias Municipais (de Saúde,
de Cultura, Esportes e Turismo, de Assistência Social, de Educação, de
Finanças) e das Coordenadorias da Mulher e da Juventude. Nessa ocasião, fui
convidada para participar da escrita de um projeto que seria apresentado à Petrobras,
no programa “Siga bem criança”, que visa criar rotas de cuidados e proteção,
apoiando políticas públicas de enfrentamento das rotas de exploração sexual e
violência contra crianças e adolescentes, bem como de exploração do trabalho
infantil. O projeto “Rotas recriadas – crianças e adolescentes livres da
exploração sexual” buscou criar instrumentos para implantação dessa proposta,
com profissionais de diferentes áreas e diferentes concepções do problema e de
suas possíveis soluções, trabalhando com estratégias que permitissem uma
continuidade do projeto, tendo como meta sua institucionalização enquanto uma
política pública municipal.
ComCiência - A partir
dessa experiência, é possível dimensionar a complexidade do problema da
exploração sexual e do trabalho quando se trata de crianças e jovens? Que
fatores precisam ser levados em consideração?
Josely Rimoli – O
problema da exploração sexual e do trabalho, quando se trata de crianças e
adolescente, é extremamente complexo. Para enfrentar esse problema é necessário
levar em conta inúmeros fatores: desde os aspectos sociohistóricos – vivemos em
um país com uma herança colonialista, que viveu um período longo de escravidão,
que viveu uma ditadura violenta; a pobreza de grande parte da população; a
desestruturação das famílias; a falta de acesso à educação (a maioria das
jovens, de 13 e 14 anos, atendidas pelo projeto não sabia ler – isso foi um
dado chocante); a cultura machista e sexista; o consumismo e individualismo; e a
falta de espaços e condições de protagonismo dos jovens e adolescentes, assim
como perspectivas de inserção no mundo do trabalho.
ComCiência - Como essa
experiência foi trabalhada em sua tese de doutorado Direito à delicadeza –
crianças e jovens livres da exploração sexual?
Josely Rimoli – Trabalhei
na tese com uma análise dessa proposta de política pública, mas com uma
linguagem poética em que os quatro elementos – terra, fogo, ar e água –
movimentam a escrita da tese de doutorado. No primeiro capítulo, “O caminho”, que
percorri para chegar ao objeto de pesquisa. Depois, “A montanha”, em que
apresento os problemas das questões da exploração sexual. No alto da montanha, “A
nascente”, de onde brotam as possibilidades por meio de políticas públicas. “O
fogo” traz as reflexões teóricas, onde faço um levantamento do nível em que se
encontram as pesquisas no Brasil. Percebi que há ainda muita lacuna nessa área.
São poucos os autores e a maioria das pesquisas tem um tom denunciatório e encontra no mercado, no corpo como mercadoria, o grande
problema. Entretanto, essas análises não têm contribuído muito para elaboração
de propostas que estruturem alguma política pública que vá enfrentar essa
situação. Também trago reflexões sobre a exploração de crianças e jovens que passam
pela sexualidade, pelo feminino. Conto a história de vida de uma garota com 13
anos, buscando destacar a importância das microredes socioafetivas, que abrem
espaço para o diálogo e potencializar as ações. desenvolvidas pelas políticas públicas. Essa garota saiu de casa, tinha muitos conflitos com os
pais, uma história de vida complicada; ficou grávida, foi ameaçada de morte
duas vezes e foi internada no Hospital Cândido Ferreira, inclusive para não ser
morta. Hoje, ela está com o filho, voltou para a escola. Esse caso foi de uma garota que vivia em uma área, mas acompanhamos uma adolescente que morava na Cidade Universitária, bairro de classe média-alta, nas
imediações da Unicamp. Neste caso, pude analisar o quanto uma rede pequena de
mulheres que se dedicou foi capaz de ajudar, quando a família abandona a jovem,
porque foi insuportável para os pais. Por último, trabalho com as sementes que
lançamos nesse projeto e que podem gerar frutos em outros lugares. O projeto
não teve continuidade, permanecendo apenas em 2004 e 2005, mas há
possibilidades de multiplicá-lo em outras prefeituras. As políticas públicas,
em geral, são muito autoritárias, fragmentadas, descontínuas e excludentes. É importante ter
um caminho que seja mais dialógico e humanizado.
ComCiência: Quais
foram os maiores desafios de atuar nesse projeto e tentar construir
instrumentos metodológicos que buscam enfrentar os problemas de violação dos
direitos humanos?
Josely Rimoli – Avalio
que um dos problemas principais está relacionado aos paradigmas que orientavam os atores que estavam participando da implantação do projeto. Desde a forma de gestão dos recursos financeiros, às dificuldades administrativas para a contratação dos profissionais que iriam atender crianças e jovens, atrasou a implantação do projeto. A
verba do projeto foi destinada ao fundo do Conselho Municipal
de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), com o objetivo de que as
prefeituras fossem fiscalizadas pelo Conselho. Entretanto, o Conselho é constituído
em grande medida por ONGs, e a questão do terceiro setor e a atuação junto ao
Estado é bastante delicada em todo o Brasil. Também participam do Conselho
entidades filantrópicas, dirigidas por religiosos, em sua maioria. O tema da
exploração de crianças e adolescentes lida diretamente com a questão da
sexualidade e incomoda bastante, porque mexe com os valores e dogmas das
instituições. Em todas essas instituições o mais difícil de lidar é a rigidez
dogmática e a incapacidade de entender o sofrimento do outro. O outro problema
residiu na necessidade de construção coletiva de um modelo de atendimento e apoio a essas crianças e jovens. Nós fomos
mediadores e fizemos mais de 48 encontros para elaborar um desenho da política
pública. O principal conflito entre os profissionais era entre um modelo mais
assistencialista e outro mais libertário, além de inter-setorial. Há também uma briga de objeto. Em
nossa avaliação, o problema era multidisciplinar e exigia uma equipe
constituída de profissionais das mais diversas áreas e os profissionais que
atuavam como assistentes sociais, por exemplo, achavam que o problema era
somente deles. No modelo assistencialista, o problema é considerado localizado
e a opção técnica para os excluídos é o abrigo, opção inválida em vários países. O mapeamento que
fizemos mostrou que esses adolescentes não têm perfil
para ficar em abrigos, mas precisam de um espaço que propicie a criação de um
projeto de futuro e uma reaproximação familiar. Nos casos que acompanhei, ficou explícita a dificuldade de
inserir essas crianças e jovens também numa escola formal. Tínhamos acesso a uma sala de aula de transição. Porque, para esses jovens, as escolas que
conhecemos são muito “paradas”, perante os estímulos das ruas e por seguirem um regime disciplinar que torna
impossível a adaptação.
ComCiência - Qual o
diferencial da proposta de atendimento do "rotas recriadas"?
Josely Rimoli – Nós
elaboramos uma proposta que priorizava: a criação de centros de convivência,
com o oferecimento de atividades culturais e esportivas; equipes de saúde; capacitação dos profissionais municipias; casa de acolhimento; apoio jurídico; a atuação de
arte-educadores na equipe, capazes de chegar nas “bocas” com uma outra
linguagem e forma de aproximação; o desenvolvimento das oficinas de geração de
renda, com o estímulo à constituição de grupos associativos e cooperativas; e a
criação de novas redes afetivas, capazes de resignificar o espaço de
convivência e uma nova “tribo” para essa garotada. O atendimento às crianças e
jovens no modelo assistencialista é extremamente pragmático e marcado por
regras rígidas que, muitas vezes, impede a re-socialização. A exploração sexual
está muito misturada à questão da prostituição e da drogadição.
ComCiência – Como
entender a diferença entre prostituição e exploração sexual?
Josely Rimoli – A
exploração é caracterizada por uma relação de dominação, onde o mais forte, o
mais poderoso, o mais rico, usa desse poder contra uma pessoa que não apresenta
capacidade de discernimento na situação que está envolvida, não tem condições
de se defender. Não é só uma questão que envolve apenas uma diferença física,
de tamanho – perceptível entre o adulto e criança – o adolescente muitas vezes
não tem discernimento, não tem maturidade para perceber o jogo. Nós cuidamos de
pessoas acima de 18 anos e consideramos até 21 anos exploração sexual. Após os
21 anos, entendemos que é uma pessoa adulta e tem o direito de fazer uma
escolha pela prostituição. A presidente nacional das profissionais do sexo
certa vez afirmou: “vocês já nos tiraram tudo, não nos tirem a dignidade da
escolha. Nós escolhemos essa profissão, porque poderíamos escolher sermos
faxineiras”. Essa é uma distinção séria, como também a distinção entre
exploração sexual e abuso sexual. Na exploração há uma troca: a criança ganha
uma boneca, uma cesta básica para os pais, ganha alguma coisa em troca. No abuso sexual trta-se de um agressor que é parte de família, que pode ou não usar de objetos de sedução, mas usa a violência sempre.
ComCiência –
Comemoramos em dezembro de 2008 os sessenta anos da Declaração dos Direitos
Humanos. Como a senhora avalia a contribuição desse documento, e dos tratados a
ele relacionados, na consolidação dos direitos humanos
no planeta? Quais os avanços e quais as limitações trazidas
por eles?
Josely Rimoli – A
Declaração dos Direitos Humanos é um documento importantíssimo, assim como é o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para nós brasileiros. Esses documentos já fazem parte do
cotidiano, das falas, das pessoas menos favorecidas. Do ponto de vista
simbólico, da compreensão dos seus direitos, do entendimento do que é ser
cidadão, houve um avanço imenso. Há uma percepção de que a criança tem
direitos, de que a mulher tem direitos, de que o adolescente tem direitos.
Entretanto, quando olhamos as políticas públicas, percebemos que ainda há muito
o que avançar. Porque quem está dando o tom é o mercado, vivemos numa era da exclusão,
com os impactos de um intenso êxodo rural. Na minha tese, analisei nosso país considerando-o uma sociedade
"capitalística periférica de cultura colonizada", buscando ampliar a compreensão para melhor agir. Ainda temos dificuldade de
pensar e implementar uma política pública que olhe todas as nuances dos
problemas relacionados à violação dos direitos humanos. A maioria das políticas
são fragmentadas e não dão conta.
ComCiência – Para
finalizarmos, o que é “ o direito à delicadeza” que você menciona em seus estudos?
Josely Rimoli – O
direito à delicadeza é a possibilidade de descoberta e potencialização de um
pulsar de vida no extremo da dor. A delicadeza é a possibilidade de mudarmos:
desde o plano espiritual – o padrão de vibração; até
aprendizado sociocultural que introjetamos – tocando no respeito à
subjetividade; e na dimensão do que está no âmbito das políticas públicas, garantir o controle social. Assim
como as crianças que nascem têm hoje direito à creche, defendo que elas tenham o direito à
delicadeza, o direito de nascer e viver em locais que as acolham com o boas
condições físicas e de cuidados. Defendo, ainda, que recebam afetos, proteção e estimulos para brincar e experenciar a vida.