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Em posição de impedimento: as mulheres no país do futebol
Por Fábio Franzini
10/08/2006
Conta-se que, certa vez perguntado sobre o que achava do futebol feminino, o comentarista esportivo e ex-técnico João Saldanha teria dito: “Sou contra. Imagina, o cara tem um filho, aí o filho arranja uma namorada, apresenta a namorada ao sogro e o sogro pergunta a ela: ‘O que você faz, minha filha?’ E a mocinha responde: ‘Sou zagueiro do Bangu’. Quer dizer, não pega bem, não é?”.

A tirada jocosa, bem ao estilo de Saldanha, tem sua lógica. Desde sua origem, o universo do futebol caracteriza-se por ser um espaço eminentemente masculino. Como tal espaço não é apenas esportivo, mas também sociocultural, os valores nele embutidos e dele derivados estabelecem limites que, embora nem sempre tão claros, devem ser observados para a perfeita manutenção da ordem atribuída ao jogo. No caso da sociedade brasileira, sabemos bem que “futebol é coisa para macho”. Não surpreende, portanto, que as mulheres não sejam reconhecidas como mais um sujeito da história do país do futebol, apesar de se fazerem presentes nos campos desde os primeiros anos desse esporte entre nós.

Já no início do século XX, quando o futebol tinha um verniz aristocrático e era praticado em inglês em seletos clubs, participar do jogo era um programa de finas famílias. Os moços empenhavam-se no gramado, as moças inquietavam-se nas arquibancadas, os pais divertiam-se despreocupadamente, tudo em perfeito acordo com a etiqueta social da belle-époque. Enquanto isso, em outras paragens menos nobres, a bola também começava a rolar e a atrair a atenção de muita gente, de ambos os sexos. Afinal, nas várzeas, nos terrenos baldios, nos aterros, as acomodações podiam ser precárias, mas as emoções não deixavam a desejar.

Quando a rápida popularização do futebol promoveu o encontro entre esses dois mundos distintos, por volta da década de 1920, o perfil de seus freqüentadores sofreu uma grande mudança. De um lado, os jogadores passaram a entrar em campo graças ao talento e não ao sobrenome; de outro, o público agora vinha muito mais dos galpões das fábricas que dos salões de chá ou de baile. Nem por isso, contudo, as mulheres deixaram de acompanhar o futebol. Tanto que até na ficção da época as torcedoras já aparecem com destaque, como mostram as esfuziantes Miquelina e Iolanda, personagens centrais do conto “Corinthians (2) x Palestra (1)”, de Antonio de Alcântara Machado.

Anos depois, as mulheres procuraram ir além das arquibancadas e também calçar chuteiras: no início dos anos 1940, existiam cerca de dez equipes de futebol feminino em atividade no Rio de Janeiro. E que não se pense em Flamengo, Fluminense, Botafogo ou Vasco da Gama, pois, constituídos nos subúrbios cariocas, o Eva F. C., o E. C. Brasileiro, o Cassino Realengo ou o Benfica F. C. estavam muito longe, em todos os sentidos, dos tradicionais clubes da cidade. As diferenças estruturais entre eles eram tão grandes que, para formar seu quadro de jogadoras, o Primavera F. C. publicou nos jornais o seguinte anúncio: “Moças de 15 a 25 anos, que queiram ingressar no football, com consentimento dos seus maiores, queiram apresentar-se à rua Silva Gomes, 131, em Cascadura, das 17 em diante”.

A novidade representada pela aparição dessas equipes despertou amores e ódios no eixo Rio – São Paulo. Os amores, no entanto, duraram pouco, enquanto os ódios foram viscerais. O machismo e o moralismo falaram mais alto, e as jovens futebolistas foram duramente criticadas pelas páginas da imprensa. Aos olhos do período, tratava-se de uma grave subversão de papéis sociais, uma vez que, além de deixar o âmbito doméstico para invadir o espaço dos homens, elas estariam ainda abandonando suas “funções naturais”, voltadas à maternidade. Não por acaso, o foco dos debates centrava-se no uso que as mulheres faziam de seu próprio corpo: “delicado” e “frágil”, ele não seria em nada compatível com a prática de um esporte tão viril e bruto, que comprometeria seriamente seus órgãos reprodutores.

No contexto da ditadura Vargas, a polêmica gerada por tamanho desvio de conduta também não deixaria de mobilizar o Estado, então empenhado, entre outras coisas, justamente em regulamentar o esporte. Em maio de 1940, um parecer oficial da Subdivisão de Medicina Especializada, ligada à Divisão de Educação Física do Ministério da Educação e Saúde, recomendava que o governo fizesse uma campanha de propaganda “mostrando os malefícios causados pelo futebol praticado pelas mulheres”, até que a regulamentação viesse a proibi-lo de vez. Ao que tudo indica, a campanha não chegou a ser desencadeada, mas, com a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), no ano seguinte, as mulheres foram expressa e oficialmente impedidas de praticar “desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Pela obviedade da situação, não era preciso dizer que o futebol estava entre eles.

Mesmo antes disso, a questão já havia virado caso de polícia na capital federal, devido a alguns acontecimentos condenados pelos guardiões da moral e dos bons costumes. Em janeiro de 1941, o Primavera F. C. tentava viajar a Buenos Aires para realizar alguns jogos de exibição, ao mesmo tempo em que, segundo o jornal paulistano A Gazeta Esportiva, “uma gorda matrona sem consciência” transformara uma equipe de futebol feminino em um grupo de bailarinas que “surgiam nos dancings e cabarets com a mesma indumentária dos campos: calções curtos, tornozeleiras e chuteiras”. Os dois casos, ainda que bem diferentes, foram tidos como motivo de vergonha para o esporte nacional e, principalmente, para a “família brasileira”, e levaram as autoridades a fechar de modo sumário os “clubes de moças” então existentes.

De modo geral, não houve sensibilidade para compreender a entrada das mulheres em campo como uma decorrência da popularização do futebol entre nós. Todas as reações a esse movimento, como se pode perceber, foram no sentido de colocá-las “no seu devido lugar”. Para elas, futebol só da arquibancada, e ainda assim em lugares reservados, como se fossem guetos na torcida. Neste caso, sua presença nos estádios era, além de saudada, estimulada pela imprensa. A relação tolerada das mulheres com o futebol funcionava assim como metáfora de sua posição na sociedade brasileira da época, já que, nesta, seu papel não era muito diferente de ficar nos reservados da assistência, vendo os homens “construírem a nação”.

Depois do cerceamento vivido no início dos anos 1940, o futebol feminino no Brasil limitou-se a manifestações esparsas ao longo do tempo, sem chegar sequer a esboçar a constituição de um novo centro irradiador, ou mesmo minimamente estruturado. Isto não significa que a simples possibilidade de sua existência não incomodasse, uma vez que, logo no início da ditadura militar, o CND proibiu às mulheres “a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball”. A proibição só veio a ser revogada na década de 1980, e se fez acompanhar da criação de departamentos de futebol feminino em vários clubes do país, bem como do surgimento de equipes específicas, como a do Radar, do Rio de Janeiro. Mesmo assim, as dificuldades culturais e materiais persistiram, fazendo com que a prática ora se expandisse, ora entrasse em refluxo. Tanto que nem a conquista do terceiro lugar na Copa do Mundo de 1999 ou a medalha de prata nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, bastaram para fixar uma estrutura que guardasse alguma semelhança com a do masculino.

Hoje, apesar do envolvimento cada vez maior das mulheres com o universo do futebol, a identidade masculina criada e constantemente reafirmada ao longo da história da bola no Brasil ainda faz com que boa parte das mulheres sequer se reconheça no jogo – “coisa de homem”, lembremos. Para as que desejam ir além da torcida, continuam existindo dificuldades de toda sorte para a sua afirmação dentro dos gramados, em calções e chuteiras. Seja como for, para todas elas o país do futebol assume forma bem diversa daquela consagrada no senso comum: para as primeiras, tal país é um lugar muito distante; para as demais, um lugar de exílio.


Fábio Franzini é doutorando em história social na USP e autor do livro Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938) (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003). Versão ampliada deste texto foi publicada na Revista Brasileira de História n. 50, sob o título “Futebol é ‘coisa para macho’? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol”, e pode ser acessado a partir do endereço eletrônico www.scielo.br/rbh.