No início do século XIX, os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Uma das razões que as impulsionava era o desejo de descrever seu próprio sofrimento, de defender uma causa própria. Agora que este desejo não é mais tão imperioso, as mulheres começam a explorar o mundo feminino, a escrever sobre as mulheres como nunca se escreveu antes, pois, até época bem recente, elas eram na literatura, certamente, uma criação dos homens.
Produções cinematográficas contemporâneas com protagonistas femininas retratando a vida de Frida Kahlo, Olga Benário Prestes, Camile Claudel, Carlota Joaquina e Amélia Earhart podem ser reflexos de que homens e mulheres começam a explorar o mundo das mulheres mesmo que ainda consolidem os velhos estereótipos. O mesmo acontece com produções biográficas como Olga (Fernando Morais), Ruídos da memória (Marina Maluf) e Entre a história e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo (Margareth Rago), as quais podem servir de referência para novas reflexões relacionadas às biografias e à história do gênero.
Os estudos biográficos têm crescido entre os historiadores preocupados em mostrar a significação histórica de uma vida individual. O aumento das biografias no mercado editorial suscitou nas academias a discussão da noção de indivíduo, das subjetividades, da agência e de preocupações teórico-metodológicas com as relações entre biografia e história. Para Jacques Le Goff a biografia possibilita lançarmos um primeiro olhar sobre a complexidade de questões históricas (Colombo, 2001).
As abordagens iniciais relacionadas à ação e à luta aparecem na biografia de mulheres notáveis que se destacaram no campo da política, da cultura e da religião. Nas críticas de feministas do século XIX, os olhares masculinos selecionavam seus personagens femininos pela beleza, riqueza ou pela maldade (Soihet, 1997). Para fugir desses modelos, escritoras apresentavam mulheres que não precisavam desses atributos para se destacar. Um exemplo de produção biográfica diferenciada pode ser encontrada em Rago na obra Entre a história e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo . A autora tece importantes considerações sobre a relação entre a memória feminina e a biografia histórica. Rago entende que a biografia não visa apenas contar algumas trajetórias que fazem parte da vida de uma personagem, mas o fez, assim como Luce abordou a história de seu pai:
“(...) quer compô-la como um presente que se traz para o momento atual e que se deixa para o futuro, como uma forma de salvar, no instante do perigo como alerta Walter Benjamin, as imagens, as experiências do passado, ricas e significativas, ameaçadas pelo esquecimento. Trata-se de preservar a tradição, ao menos a tradição que se quer no presente, protegendo os tesouros que devem ser cuidadosamente guardados, para que não se percam em meio ao oceano de tantas histórias individuais e coletivas. Mas trata-se ainda de torná-los conhecidos, para que se componham ativamente os repertórios das referências coletivas, para que se produzam efeitos nos inúmeros campos da atividade humana” (Rago, 2001).
Para Rago, a diferença entre memória das mulheres e dos homens é referenciada a partir de estudos de Michelle Perrot. Rago entende que as mulheres têm um lugar de destaque como guardiãs da memória com sua enorme habilidade para guardar os objetos pessoais, conservar e transmitir as histórias vividas e pela capacidade de tecer redes de relações. Para Michelle Perrot (1989) “os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com o seu modo de rememoração, da montagem propriamente dita do teatro da memória”.
A autora considera que o feminismo teve destaque ao desenvolver interrogações sobre a vida das mulheres obscuras. Para torná-las visíveis foi preciso acumular dados, instituir lugares de memória e, na falta de testemunhos escritos, a recente história oral foi, de certo modo, uma revanche das mulheres. Das questões apontadas por Perrot está a dificuldade de muitas mulheres expressarem suas ações nos acontecimentos públicos, suas resistências e, sobretudo, de falarem de si, de dizerem EU devido à educação que inculcou nelas o esquecimento de si para doarem-se, principalmente, ao esposo e aos filhos. A autora propõe, então, boas relações entre a pesquisadora e as mulheres para que elas se sintam sujeitos da história, que liberem o seu desejo de falarem de si, de serem levadas a sério. E por fim conclui que:
“Essas experiências permitirão talvez um dia analisar mais precisamente o funcionamento da memória das mulheres. Existe, no fundo, uma especificidade? Não, sem dúvida, se trata de ancorá-las numa inencontrável natureza e no biológico. Sim, provavelmente, na medida em que as práticas socioculturais presentes na tripla operação que constitui a memória – acumulação primitiva, rememoração, ordenamento da narrativa – está imbricada nas relações masculinas/femininas reais e, como elas, é produto de uma história” (Perrot, 1989).
Ainda nesta questão Rago analisa que:
“(...) a inserção social e cultural específicas tem levado as mulheres a exercerem práticas sociais diferenciadas da dos homens, elas constroem uma memória e uma relação com a vida sexualmente muito diferenciadas. E, se bem que as diferenças de gênero não respondem por todas as diferenciações que marcam os processos mnemônicos de mulheres e homens, é visível que cada gênero se organiza e se inscreve socialmente a sua maneira, redesenhando e resignificando seu próprio passado, configurando seu próprio discurso e construindo a sua própria autoimagem” (Perrot, 1989).
Na construção da biografia de Luce, Rago observou o olhar antropológico da mulher política-militante atenta aos detalhes, aos pequenos acontecimentos, aos afetos e aos desejos. Grande parte das reflexões de Luce foram produzidas quando os acontecimentos eram vividos e, pela sua formação racionalista, traz uma narração sólida e estruturada, analisando atentamente a manifestação microscópica dos poderes no movimento de militarização da vida pelo fascismo, tendo acompanhado as criações coletivas autogestionárias na Espanha revolucionária. Ainda no trabalho biográfico sobre Luce, Rago pretendia dar a conhecer uma mulher e seu universo de reflexões tornando-as um pouco como uma lição de vida, ou como uma diferença na qual podemos nos inspirar. Em uma de suas considerações sobre sua biografada Rago expôs:
“O convívio com Luce e o contato com uma rede planetária faz-me perceber como somos herdeiros de uma tradição histórica autoritária que invalida outras formas de ler o passado e de pensar as relações sociais de uma maneira que aponte para saídas mais humanas e solidárias, ou como diz Hayden White, que nos prepare para enfrentar o nosso próprio destino, marcado pela descontinuidade, pela ruptura e pelo caos” (Rago, 2001).
Margareth Rago, Michelle Perrot, Marina Maluf, entre tantas outras teóricas do feminino, apontam para as diferenças com relação à memória do feminino. Memória esta atenta aos detalhes, à subjetividade e às emoções e que pouco tem sido aceita pela historiografia permeada pelo machismo e autoritarismo.
Ao partilhar com a comunidade de historiadoras e historiadores a necessidade de continuamente escrever e reescrever a história a partir de uma posição do presente, que é o lugar da problemática da pesquisa, percebe-se que ainda predomina, em muitos lugares, a construção de identidades fixas para mulheres e homens. Acredita-se, portanto, que a biografia histórica, a partir da memorização de mulheres notáveis ou não, possibilita recuperar alguns fragmentos da experiência tanto pública como privada, o que permite tirá-las da sombras do teatro da memória. E as relações de poder em gênero? Acredita-se que a escolha do tema também implica em uma relação de poder, pois a memória feminina foi pouco aceita na historiografia machista e autoritária. Portanto, recuperar a memória feminina possibilita compreender como ela foi edificada, podendo, assim, suscitar novas pesquisas e novos olhares para desconstruir a lógica da dominação masculina. Essas discussões são também uma proposta para compreender outras relações de poder presentes no cotidiano, pois a história é dinâmica e não podemos retirar das mulheres suas estratégias na vida cotidiana.
Tânia Regina Zimmermann é professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no curso de história e no mestrado em educação.
Márcia Maria de Medeiros é professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
Referências:
Colombo, Sylvia. “Visões do poente. Le Goff e Hobsbawm mapeiam o Ocidente”. In: Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 80, n. 26.251, 15 fev. 2001. p. E 1 e E3. Perrot, Michelle. “Práticas da memória feminina”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, n. 18, ago/set.1989, p.18. Rago, Margareth. Entre a história e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2001. Soihet, Rachel. “História das mulheres”. In: Cardoso, Ciro; Vainfas, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 281. * Este artigo foi publicado pela primeira vez na Revista de História Regional 9(1): 31-44, 2004 sob o título “Biografia e gênero: repensando o feminino”. Sobre Carlota Joaquina, comumente, associamos o filme dirigido por Carla Camurati: Carlota Joaquina, princesa do Brasil, no qual ainda se consolida a lenda construída sobre a mulher de D. João VI. Gênero enquanto categoria de análise, permite melhor compreender as relações sociais e culturais entre mulheres e homens, entendendo que o estudo de um envolve o estudo do outro. Veja-se Scott, Joan. Gênero. “Uma categoria útil de análise histórica”. In: Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 16, julho/dezembro de 1990, p.7.
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