A prática de se relatar um fato, tal qual ele ocorreu, está relacionada à ideia de imparcialidade jornalística. Caso haja dois ou mais lados na mesma questão, devemos buscar fontes para embasar o maior número possível de interpretações. Assim, garantimos isonomia entre as partes envolvidas na descrição do evento e permitimos ao leitor ou espectador a construção de suas próprias conclusões. O princípio da imparcialidade está na base das teorias sobre o jornalismo. Mas pelo que se tem discutido e visto ultimamente na atual crise brasileira, ela é de fato praticada? Será que o viés dos noticiários tem interferido na qualidade da informação veiculada?
Nesse contexto, é importante refletir sobre algumas questões fundamentais. O conceito de verdade é parcial. Nossos sentidos e nosso psicológico nos induzem a uma visão particular de como é o mundo. Naturalmente, nós possuímos uma série de preconceitos construídos social e culturalmente, o que torna difícil para o ser humano avaliar de forma objetiva o mundo que o cerca. Como pontua Ben Goldacre em seu livro Ciência picareta (Ed. Civilização Brasileira, RJ, 2013), somos capazes de extrair informação de tudo, desde enxergar formas em nuvens a acreditar que existem “temporadas de sorte” para jogos.
Muitas vezes vemos padrões onde eles não existem, e não percebemos os que de fato estão lá. Querendo ou não, todos nós temos o nosso viés ao interpretar os fatos que chegam até nós e, assim, com base na nossa memória e nas nossas experiências, passamos essas informações adiante. E, mais do que isso, tendemos a supervalorizar e também a buscar informações que confirmem qualquer hipótese que estamos interessados em defender. Vale citar aqui Charles Darwin, que em seu artigo “A biographical sketch of an infant”, de julho de 1877, descreve exatamente essa tendência cognitiva: “Eu segui uma regra de ouro: sempre que uma nova observação ou pensamento surgia, se fosse oposta a meus resultados gerais, eu fazia uma anotação dela, sem falha e de imediato, pois eu tinha descoberto, pela experiência, que esses fatos e pensamentos têm uma tendência muito maior para fugir à memória do que os fatos favoráveis”.
De maneira adversa a esse raciocínio, desde os primórdios, a qualidade do jornalismo é baseada na sua suposta isenção, ou seja, a notícia como espelho do fato. Embora essa imparcialidade já tenha sido amplamente questionada, os procedimentos jornalísticos ainda se justificam pela busca da “verdade”. Diversas linhas editoriais de mídia impressa ou eletrônica sustentam o seu compromisso com a isenção na veiculação das informações. E para reafirmar a imparcialidade, reservou-se uma seção para veicular a opinião do veículo, o editorial. Ou seja, o conceito de objetividade jornalística cerca a audiência e vende a imagem de que tudo que não for declaradamente opinião do veículo é reprodução fidedigna de fatos e, assim, as notícias supostamente manteriam seu caráter de confiáveis.
Entretanto, tanto o jornalismo quanto as ciências, de uma forma geral, falham na sua isenção, quando não possuem a prerrogativa da independência. Podemos citar exemplos de “pesquisas” que comprovam a eficácia de determinados cosméticos, patrocinadas pela indústria da beleza, ou estudos com equações matemáticas que “demonstram” que a dilatação da pupila provocada pela cerveja torna a mulher mais atraente após consumir alguns copos da bebida, como o que foi patrocinado pela Bausch & Lomb (fabricante de produtos óticos) e produzido por um professor da Universidade Manchester. Ou seja, essa ciência produzida tem como finalidade o embasamento de um anúncio publicitário por empresas.
Da mesma forma, o que se observa com o jornalismo é uma interdependência das mídias com os interesses políticos, religiosos e econômicos. É clara a interferência por meio de subsídios, empréstimos bancários e publicidade. Como pontua o professor Murilo Cesar Soares, do curso de comunicação social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), “a imparcialidade é um valor importante para as empresas jornalísticas, pois significa para o leitor que o meio de comunicação tem credibilidade. No entanto, há casos históricos que revelam que, em situações envolvendo interesses muito fortes, de natureza política ou econômica, os meios podem burlar esse princípio, de forma aberta ou sutil. O caso mais conhecido e estudado no Brasil foi o do apoio das Organizações Globo à candidatura de Fernando Collor à presidência em 1989”.
Se formos atrás de um histórico da imprensa, e isso vale para qualquer país, vemos que o jornalismo pende para um lado ou para outro dependendo da situação política/econômica do país. No Brasil, basta verificar os jornais da época da ditadura até os dias atuais. Como exemplifica o professor Wilson da Costa Bueno, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), “é fácil perceber essa falta de isenção a todo momento, como o do debate sobre o impeachment da presidente Dilma que ocorre agora. Os veículos, assim como as fontes que os subsidiam, não se respaldam necessariamente em fatos, mas em intenções”. Bueno complementa que “não há mal em termos uma diversidade de mídias não independentes; o que é penoso é termos mídias comprometidas que não assumem essa condição e monopólios da comunicação que contribuem para sufocar o debate”.
Esse comprometimento da mídia se torna mais flagrante com o surgimento, dentro do jornalismo tradicional, do chamado “branded content”, ou jornalismo patrocinado. Isso significa incorporar propagandas às reportagens. Ou seja, falar sobre os benefícios do cacau e convidar alguém de uma grande empresa de chocolates para enumerar as suas vantagens, e assim por diante. Segundo Álvaro Pereira Júnior, em matéria publicada em 2013 no Observatório da Imprensa, a rede BBC e o New York Times já apresentam traços desse jornalismo patrocinado. Bueno afirma que “o branded content faz o jogo das grandes corporações e contamina o fluxo informativo. Como jornalista tradicional, vejo com enorme desconfiança a aproximação gradativa entre os setores de redação e o comercial nos meios de comunicação, com uma influência crescente do segundo sobre o primeiro”.
Dentro do jornalismo tradicional, o editorial é o responsável por explicitar a posição do veículo diante de determinado assunto. Entretanto, percebemos que esse viés, em princípio, direcionado ao editorial, hoje se espalha pelo corpo de notícias e reportagens da mídia. Segundo Soares, da Unesp, “o viés jornalístico pode se disseminar pelo noticiário sob a forma de enquadramento noticioso, que é a maneira pela qual alguns fatos são destacados, outros atenuados ou omitidos, de modo a conferir à narrativa uma ‘inclinação’ sutil, que passa despercebida pelo leitor. O editorial continua sendo o espaço do jornal dedicado a expressar explicitamente a posição do veículo sobre questões políticas, administrativas e sociais. Mas os enquadramentos das reportagens é que ‘dão o tom’ dos diversos assuntos”. Bueno, da Umesp, vaí além: “o viés jornalístico está centrado no editorial, nas reportagens, na escolha dos articulistas e mesmo na publicação das cartas ou e-mails dos leitores. Não há isenção jornalística, apesar do discurso em contrário”.
Diante dessas incertezas que permeiam a aparente imparcialidade jornalística, há uma horda de pessoas que criticam e incitam o boicote aos meios de comunicação como forma de solucionar ou pelo menos demonstrar a sua insatisfação com essa provável falta de transparência das notícias. Entretanto, talvez a nossa forma mais eficaz de combater o problema seja paciência, seja não aceitar o que nos passam como verdade absoluta. É preciso ser crítico e buscar diferentes fontes de algum assunto que nos interessa no momento, ao invés de formar nossas opiniões baseados na opinião de apenas uma fonte ou de reproduzir informação sem minimamente investigar sua origem. Bueno reflete que “embora não se possa assumir que a audiência funcione como uma página em branco, deve-se registrar que, cada vez mais, ela dispõe de alternativas para receber e interpretar as informações. Além disso, há setores qualificados da audiência que têm também seus compromissos e leituras do mundo e contempla os veículos a partir de seus filtros, reagindo à tentativa deliberada da imprensa de ditar sozinha as regras”.
Já dizia Millor Fernandes que “se você não tem dúvidas, está mal informado”. Mario Sérgio Cortella, em seu livro Não se desespere!, complementa: “gente que não tem dúvidas não inova, não avança e não cria; só repete e redunda”. Como esclarece Soares, da Unesp, “é preciso um maior debate sobre questões públicas controvertidas, nas escolas, nos sindicatos etc., de modo que as audiências amadureçam suas opiniões e refinem sua percepção dos acontecimentos. É necessário que esse debate não tenha ortodoxias nem posições fechadas prévias, o que não é o caso que se vê no Brasil atualmente”.
Independente do viés do jornalismo, e de tudo que lemos, devemos buscar a nossa independência de pensamento e afiar a nossa crítica. Só assim agiremos menos por debates baseados em fé e em torcida e mais em ideias e princípios.
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