Tu és meu Brasil em toda parte Quer na ciência ou na arte Portentoso e altaneiro Os homens que escreveram tua história Conquistaram tuas glórias Epopéias triunfais Quero neste pobre enredo Reviver glorificando os homens teus Levá-los ao panteon dos grandes imortais Pois merecem muito mais
Não querendo levá-los ao cume da altura Cientistas tu tens e tens cultura E neste rude poema destes pobres vates Há sábios como Pedro Américo e César Lattes
Cartola e Carlos Cachaça: “Ciência e arte”
São muitas as relações encontradas, e maior ainda o número das procuradas, entre música e ciência, sobretudo nos aspectos físicos e matemáticos em que uma permite falar da outra sem consentir, contudo, jamais uma redução na qual não caberia nenhuma nem outra.
Até porque, como observa o linguista Émile Benveniste a propósito da relação entre língua e sociedade, para que se cumpra o que ele chama de condição de semiologia geral, por se tratar de sistemas de natureza diversa, não podem ser convertidos um no outro, nem tampouco ser, mutuamente, um o interpretante de outro, entendendo ainda que a língua, semiologicamente falando, contém a sociedade, é seu interpretante, e não é por ela contida, sociedade que, assim, é por ela interpretada.
Quer dizer, a língua interpreta a sociedade, mas não é, enquanto sistema de significação, por ela interpretada.
Essa visão estruturalista da linguagem e de suas funções está bastante presente na antropologia de Lévi-Strauss, nas suas análises das relações de parentesco e, em particular, na sua monumental sinfonia poética e científica que tem como tema e variações os mitos e a lógica universal de suas estruturas e funcionamento.
Se no livro Antropologia estrutural, o mito era tratado tendo a língua como seu interpretante, no sentido semiológico da expressão acima aludido, a propósito de Benveniste, nas Mitológicas , publicadas, originalmente, de 1964 a 1971, em particular em O cru e o cozido (primeiro da série de quatro volumes que compõem a obra, os outros três sendo Do mel às cinzas, A origem dos modos à mesa e O homem nu), é a música que é tomada como modelo de referência e de parâmetro organizacional da estrutura dos mitos:
“Com efeito, o que afirmamos em relação a qualquer linguagem parece ainda mais certo quando se trata da música. Se, dentre todas as obras humanas, foi ela que nos pareceu mais adequada para instruir-nos sobre a essência da mitologia, a razão disso é a perfeição de que ela goza. Entre dois tipos de sistemas de signos diametralmente opostos – de um lado, o sistema musical, do outro, a linguagem articulada –, a mitologia ocupa uma posição mediana; convém encará-la sob as duas perspectivas para compreendê-la. Contudo, quando se escolhe, como fizemos neste livro, olhar do mito em direção à música, e não em direção à linguagem, como fizemos em obras anteriores ..., o lugar privilegiado que cabe à música aparece com evidência.”
(O cru e o cozido, Cosac & Naify, São Paulo, 2004, p.47)
Não são simples e são, algumas vezes, de compreensão difícil as relações que Lévi-Strauss estabelece entre música e mitologia, sendo, contudo, sempre instigantes e capazes de produzir naqueles que as escutam o entendimento sensível de estruturas mentais comuns aos dois sistemas. É o que ambiciona o regente dessa sinfonia de narrativas míticas executadas com os instrumentos de suas especificidades sonoras e da lógica universal de suas significações.
Mas, na verdade, o modelo semiológico dessa sensibilidade intelectiva própria da relação entre a música e a mitologia, apontada pelo antropólogo, continua a ser buscado na oposição entre sintagma e paradigma, que constitui o princípio estrutural do funcionamento da língua como código de comunicação. Outra forma de dizê-la é, como faz Jakobson, com quem Lévi-Strauss conviveu em Nova Iorque , nos anos 1940, e que muito o influenciaria, opondo metáfora e metonímia, ou ainda Roland Barthes na distinção entre sistema e sintagma.
É interessante essa anotação porque ela nos permite entender melhor a comparação que faz Lévi-Strauss entre a pintura e a música e a forma invertida de suas relações com a natureza e a cultura:
“A natureza oferece espontaneamente ao homem todos os modelos das cores, e às vezes até mesmo sua matéria em estado puro. Basta-lhe, para começar a pintar, reempregá-la. Mas, como sublinhamos, a natureza produz ruídos, e não sons musicais que são monopólio da cultura enquanto criadora dos instrumentos e do canto. Essa diferença se reflete na linguagem: não descrevemos do mesmo modo as nuanças das cores e dos sons. Para as primeiras, quase sempre recorremos a metonímias implícitas, como se um determinado amarelo fosse inseparável da percepção visual da palha ou da gema de ovo, um determinado negro, do carvão que lhe deu origem, um marrom, da terra amassada. O mundo das sonoridades, por sua vez, abre-se para as metáforas. Prova disso são ‘o longo pranto dos violinos – do outono', ‘a clarineta é a mulher amada', etc.”
(O cru e o cozido, p.42)
A música seria, assim, mais da ordem da seleção associativa do que da contiguidade justaposta, embora, é claro, necessite, como linguagem que é, de uma sintaxe combinatória capaz de estender no tempo a enunciação do instante agudo de suas profundidades evocativas da sensibilidade e da razão.
Do ponto de vista das funções, afirma Lévi-Strauss que a música e a mitologia têm vizinhança e proximidade sobre um eixo comum, no qual a música está situada no oposto da linguagem articulada.
São sistemas completos e irredutíveis um ao outro e que, por completos, podem cumprir independentemente, por si próprios, e cada um, todas as funções que o outro desempenha.
Se são completos, devem a música e a mitologia desempenhar todas as funções que desempenha a linguagem, de modo que a caracterização de um caso deve valer também para os outros. Quer dizer, por paradoxal que seja, o argumento de suas diferenças é também a condição de suas semelhanças. É como se se dissesse que diferem porque são iguais.
Para descrever as funções da música, Lévi-Strauss recorre às funções da linguagem tal como apresentadas por Jakobson quando distingue as funções fática, conativa, referencial, emotiva, metalinguística e poética, tratando-as, com variações, para identificá-las também na música e na mitologia, chegando a estabelecer um princípio de classificação de compositores, conforme a ênfase de suas composições incida mais sobre o código, sobre a mensagem ou sobre o mito. No primeiro caso estariam, por exemplo, Bach e Stravinski, no segundo, Beethoven e Ravel, e no terceiro, Wagner e Debussy, da mesma forma que teríamos na música dodecafônica “Webern do lado do código, Schönberg do lado da mensagem e Berg do lado do mito”.
Mais do que afirmar o parentesco estrutural entre música e mitologia, a própria distribuição dos títulos dos capítulos do livro O cru e o cozido obedece à ordenação de uma peça musical: Abertura, Tema e variações, Sonata das boas maneiras, Sinfonia breve, Fuga dos cinco sentidos, Cantata sarigüê, Invenções a três vozes, Duplo cânon invertido, Tocata e fuga, Peça cromática, Divertimento sobre um tema popular, Concerto de pássaros e Bodas.
É grande o empenho de Lévi-Strauss para buscar caracterizar a singularidade e a especificidade das vizinhanças entre música e mitologia. O fato, contudo, é que permanece aqui, também nesse caso, a inevitabilidade da observação de Benveniste quando escreve a propósito das relações entre língua e sociedade:
“É preciso convencer-se que nada pode ser compreendido se não for reduzido à língua. Além disso, a língua é necessariamente o instrumento próprio para descrever, conceituar, interpretar tanto a natureza quanto a experiência, portanto, esse composto de natureza e experiência que se chama sociedade. É graças a esse poder de transmutação da experiência em signos, e de redução categorial que a língua pode tomar por objeto não importa que ordem de dados e até mesmo sua própria natureza. Há uma metalíngua; não há uma metasociedade”.
(“Structure de la langue et structure de la societé”, in Linguagi nella società e nella tecnica. Edizioni di Comunità, Milão, 1970, p. 27)
Dizendo de outro modo, todos os sistemas semiológicos podem ser traduzidos ao da língua; o da língua, a nenhum, embora com ela e por ela seja possível que o mito cante, o instrumento soe, o ritmo pontue e o discurso componha a peça lírica que faz a ciência falar do homem nas coisas do mundo com a lógica dos segredos e o mistério das revelações.
Diz a música:
“Na música ..., a mediação da natureza e da cultura, que se realiza no seio de toda linguagem, torna-se uma hipermediação: de ambos os lados, os ancoramentos são reforçados. Instalada no ponto de encontro entre dois domínios, a música faz com que sua lei seja respeitada muito além dos limites que as outras artes evitariam ultrapassar. Tanto do lado da natureza quanto do da cultura, ela ousa ir mais longe do que as outras. Assim se explica o princípio (quando não a gênese e a operação, que continuam sendo ... o grande mistério das ciências do homem) do poder extraordinário que possui a música de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre os sentidos, de mover ao mesmo tempo as idéias e as emoções, de fundi-las numa corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas e como respondentes.”
(O cru e o cozido, p. 48)
Responde o mito:
“A mitologia, certamente, apresenta apenas uma fraca imitação dessa veemência. Contudo, sua linguagem é a que apresenta o maior número de traços em comum com a da música, não somente porque, do ponto de vista formal, seu alto grau de organização interna cria entre ambas um parentesco, mas também por razões mais profundas. A música expõe ao indivíduo seu enraizamento fisiológico, a mitologia faz o mesmo com o seu enraizamento social. Uma nos pega pelas entranhas, a outra, digamos, assim, ‘pelo grupo'. E, para fazer isso, utilizam máquinas culturais extremamente sutis, os instrumentos musicais e os esquemas míticos.” (p. 48)
Concluem, em coro, as mitológicas:
“... nutrir a esperança de que o leitor, uma vez superados os limites da irritação e do tédio, possa ser transportado, pelo movimento que o afastará do livro, em direção à música que há nos mitos. Música que o texto dos mitos preservou com, além da harmonia e do ritmo, aquela significação secreta que tentei laboriosamente conquistar, não sem privá-la de uma força e de uma majestade reconhecíveis pela comoção que provoca nos que a surpreendem em seu primeiro estado: camuflada no fundo de uma floresta de imagens e de signos, e ainda imbuída dos sortilégios graças aos quais ela pode emocionar, já que assim permanece incompreendida.” (p. 52)
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