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Reportagem
A luta ímpar contra os big killers na África
Por Yurij Castelfranchi
10/05/2006

Os números da Aids na África são números de um genocídio. Não só pelo grito cruciante das cifras (2 milhões e quatrocentos mil mortos em 2005), mas, sobretudo, pela incrível disparidade de oportunidades que um africano tem frente à doença em comparação com um paciente que vive em regiões mais ricas do planeta. Cada vez mais, a Aids e as outras duas doenças chamadas de big killers (malária e tuberculose que, juntas, matam quase 3 milhões de pessoas por ano), parecem dar fundamento à denúncia de James Orbinski, ex-presidente da organização Médicos Sem Fronteiras (Prêmio Nobel da Paz em 1999) à imprensa anos atrás: “estou cansado de ver morrer mulheres, crianças e homens, enquanto eu sei que existe um tratamento eficaz e que poderia estar ao alcance deles. Estou cansado de ver que o lucro sempre ganha sobre o direito à saúde. Não agüento mais essa lógica na qual quem não pode pagar, morre”.

A região subsaariana, apesar de representar apenas 11% da população mundial, hospeda mais de 60% das pessoas com HIV do mundo. Os números são difíceis de estimar: os governos de alguns países foram acusados de divulgar dados subestimados, enquanto, por outro lado, há quem considere superestimados os números fornecidos pelas Nações Unidas ou pelas organizações humanitárias. O mais recente relatório da Unaids, a entidade das Nações Unidas para luta contra Aids, afirma que existem entre 24 e 29 milhões de pessoas com HIV/Aids na região subsaariana. No mundo, a Aids representa a quarta causa de morte. Na África, é a primeira. Enquanto prevenção e terapias estão conseguindo controlar a doença na Europa ocidental, nos Estados Unidos, no Brasil, nos países mais pobres, e de forma particularmente desesperadora na África, tudo isso parece não estar funcionando. Por quê? Por que a difusão da Aids, na maioria dos países da região, não se reduz? Por que a doença ainda mata milhões?

É uma situação que permaneceu quase inalterada nos últimos anos”, explica Stefano Vella, médico do Instituto Superior de Saúde italiano e ex-presidente da International Aids Society (IAS). “Recentemente, novidades sobre a difusão da epidemia vieram da Ásia e do leste europeu: em países como China, Índia e Rússia, o HIV está crescendo num ritmo elevadíssimo, e a situação é de extrema gravidade. Mas na África, onde há países com prevalência da doença superior a 35%, a situação tem proporções catastróficas”.

Até agora, 20,4 milhões de africanos morreram de Aids, deixando 12 milhões de órfãos. Em um total de 4,9 milhões de pessoas que, no ano passado, contraíram o vírus no mundo, 3,2 milhões vivem no continente. A difusão do HIV na região subsaariana é incomparável com a de qualquer outra parte do mundo. A porcentagem de pessoas com HIV/Aids é cerca de 7% (10 vezes a do Brasil), chegando acima de 20% em alguns países (como Zimbabwe e África do Sul), ou até acima de 30% (em Botswana ou Swaziland).

A dramática difusão da Aids na África é causada por vários fatores”, comenta Vella, que é também membro do Painel Técnico do Fundo Global, entidade criada em 2002 em busca de recursos para o combate aos três big killers no mundo. “Em primeiro lugar, o HIV é difuso no continente por uma razão óbvia: foi onde surgiu. É uma doença antiga para a África, e teve muitos anos para se espalhar, quando ainda era desconhecida. Como acontece com todas as epidemias, quando se supera um determinado limite de prevalência, a difusão se torna comum. Pensemos na gripe: se muitas pessoas ao nosso redor já pegaram, fica menos raro entrar em contato com o vírus. Outros fatores, na África, são a falta de informação e um número de relações sexuais elevado. Além disso, fatores econômicos que geram grandes migrações e prostituição nas cidades maiores, ou fatores políticos como os êxodos devidos às guerras, causam a difusão do vírus”.

Mas por que a prevenção e os fármacos que estão permitindo controlar a doença em muitos países não conseguiram atacar a Aids no continente africano? Parte da reposta é simples, apesar de ligada a múltiplos fatores: remédios e prevenção não chegam à população.

Valéria Almeida, médica infectologista do Centro de Referência DST/Aids de Campinas (SP), passou dois meses em Moçambique no âmbito de um projeto da Universidade de Columbia, financiado com dinheiro do governo dos Estados Unidos, e voltado à para instalação de estruturas e treinamento de recursos humanos. “É só chegar para se dar conta da dificuldade da situação: têm poucas escolas de medicina no país, muito poucos médicos e pouquíssima experiência com as terapias anti-retrovirais”. Paradoxal, num país onde 14% da população está contaminada pelo HIV. “Às vezes, falta simplesmente tudo: os médicos, as luvas, até a água”, acrescenta a médica. Almeida trabalha em Campinas numa estrutura que, graças ao trabalho conjunto de ONGs e prefeitura, mostrou uma atuação extraordinária na prevenção, acompanhamento e tratamento da Aids e das outras doenças sexualmente transmissíveis, e ficou impressionada com a situação africana. “Quando têm remédios”, continua, “faltam recursos para tratar as infeções oportunistas, ou faltam os instrumentos necessários para medir a carga viral e acompanhar a terapia. Quando se têm tais instrumentos, muitos médicos não sabem usá-los simplesmente porque nunca tiveram a oportunidade de ver um. Além disso, a prevenção é difícil. Para dar um exemplo, não há distribuição gratuita de preservativos”.

Não há prevenção sem diálogo

Sem o diálogo com as culturas locais, não há eficácia na prevenção e cura”, enfatiza Silvia Zaccaria, antropóloga italiana. “Por um lado, o problema de falta de estruturas e de acesso aos fármacos, é dramático. Mas um problema grave é também o do choque entre o saber ocidental e o conhecimento local”, acrescenta a voluntária, que trabalhou um ano em Malawi, num projeto de prevenção e sensibilização junto às comunidade locais, com a ONG italiana Movimondo. “Em muitas regiões”, continua, “as escolas islâmicas tendem a ser demonizadas e excluídas, pelos operadores internacionais, de qualquer forma de diálogo, impedindo assim seu envolvimento como possíveis lugares de difusão de práticas de prevenção. O mesmo acontece com figuras tradicionais tais como curandeiros ou lideranças religiosas. Como resultado, parte da população animista ou muçulmana se recusa a ir para as estruturas ocidentais de educação e prevenção, encarando-as como uma forma de chantagem cultural, um ataque à sua própria visão de mundo”.

A prevenção na África”, confirma Stefano Vella, “não pode funcionar do mesmo jeito que em países ocidentais. O preservativo, por exemplo, é instrumento fundamental, mas é sem dúvida ‘pouco africano’. Não é fácil que esse pedaço de borracha entre numa tradição como a africana, também porque é um instrumento de uso masculino. A condição feminina na maioria dos países torna muito difícil para uma mulher se proteger dessa forma. São importantes, então, também microbicidas vaginais”.

Ainda segundo Silvia Zaccaria "muitas organizações estão finalmente abrindo o diálogo com os atores locais: é preciso recomeçar pelas formas tradicionais de cuidado do doente, valorizar as práticas de cura domiciliar. Não podemos construir um hospital a cada 30 km, nem chegar a padrões ideais que nem na Europa existem. É preciso reforçar as redes de solidariedade, utilizar as pessoas que, tradicionalmente, sempre praticaram o cuidado aos doentes”.

Obviamente”, continua Stefano Vella, “precisamos achar uma vacina. Mas devemos ser claros: a vacina não existe. E não existirá pelos próximos vinte anos. A prevenção então é absolutamente prioritária. E prevenção existe se é ligada aos costumes e à religião locais. Prevenção significa também enfrentar o problema da pobreza, da educação, da condição feminina”.

Os preços da Aids

O custo, para conseguir isso, é alto. Mesmo assim, não chega a 2% dos gastos militares anuais no mundo. O ataque ao Iraque custou cerca de um bilhão de dólares por dia. No mesmo período, para enfrentar a Aids nos países pobres, era necessário 10 bilhões por ano, que os governos do mundo não conseguiram fornecer. Hoje, um relatório da Unaids afirma que os recursos globais para enfrentar a doença em países pobres, incluindo prevenção, terapias, apoio e cuidado com órfãos, deveriam ser de cerca de 15 bilhões de dólares para 2006, 18 bilhões em 2007, 22 em 2008. Os governos dos países ricos até agora não conseguiram prometer a metade das cifras necessárias, e disponibilizaram menos ainda (cerca de 6 bilhões de dólares em 2004). Por outro lado, os antigos regimes coloniais de muitos países africanos têm responsabilidades gravíssimas. As ditaduras, guerras civis e corrupção, na maioria dos países do continente, fizeram com que os governos nada investissem em educação, saúde e infra-estrutura.

O resultado é que o impacto da Aids na África está sendo avassalador, e vem abatendo inúmeros setores estruturais da sociedade. O sistema de saúde está em colapso. Nos hospitais, a Aids causou uma carência crônica de camas e vagas, fazendo com que possam ser internadas apenas pessoas em condições críticas, com pouca chance de cura. Já não há médicos e enfermeiros suficientes, porque a doença foi crescendo também entre os profissionais da saúde. Um número muito elevado de famílias se dissolveram devido à morte de um ou ambos os pais. Muitas famílias têm hoje como chefe uma criança. A produção de comida também está caindo radicalmente, porque muitas famílias abandonam o cultivo da terra devido à doença. Os custos com saúde podem subir até 400% se um membro da família tem Aids. Inúmeras crianças devem abandonar a escola, criando uma espiral que causa ulterior aumento da difusão da Aids, sendo que acesso à educação representa um dos principais fatores de prevenção da doença. Ao mesmo tempo, muitos professores já adoeceram, e muitos morrem a cada ano. Enfim, a grande maioria das pessoas com HIV/Aids têm entre 15 e 50 anos de idade, e a doença afeta assim dramaticamente a força de trabalho, abalando parte da possibilidade de desenvolvimento econômico. O Banco Mundial estimou que em muitos países africanos o crescimento do PIB vai cair sensivelmente, nos próximos anos, por causa da Aids. E a expectativa de vida nos países subsaarianos teve um regresso nunca visto: sem Aids era de 62 anos. Hoje, caiu para 47.

Salvar gerações

Se queremos evitar que desapareçam gerações inteiras”, comenta Vella, “prevenção não basta: é absolutamente necessário levar estrutura e remédios”. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) lutam há anos em prol do direito de acesso aos fármacos nos países pobres. A ONG, criada na França em 1971, para assistir populações vítimas de guerras, epidemias e fome, lançou em 1999 uma Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, à qual destinou os recursos recebidos com o Prêmio Nobel da Paz.

Segundo a organização, os preços continuam sendo um dos maiores obstáculos ao acesso aos medicamentos na África. Em 2000, por causa das patentes, uma terapia anti-retroviral custava 10 mil dólares por ano para cada paciente. Um custo impossível de enfrentar. Hoje, como se lê nos relatórios da MSF, graças aos genéricos (produzidos na Índia, China e Brasil), a terapia custa entre 200 e 600 dólares ao ano por pessoa, e, em alguns casos, pode chegar a menos de 150 dólares. “O problema das patentes”, comenta Vella, “foi, pelo menos parcialmente, atenuado graças aos genéricos. Além disso, as indústrias farmacêuticas começaram a entender que é conveniente vender drogas a preço reduzido na África. Mas o gasto continua sendo impossível para muitos países”.

Médicos da MSF afirmam que o custo deve e pode baixar até 50 dólares por paciente ao ano. No final deste mês de abril, a ONG denunciou que a farmacêutica Abbot não disponibilizou para os países pobres, como prometido, uma nova versão do medicamento Kaletra (lopinavir/ritonavir), muito importante por sua estabilidade em altas temperaturas.

O Fundo Global”, diz Vella, “insiste em exigir os recursos prometidos pelos países ricos. O acesso aos fármacos é, simplesmente, questão de vida ou de morte. Também é crucial ter dinheiro para estruturas. O Brasil foi um dos primeiros países capazes de mostrar que acesso aos fármacos, apesar de caro, compensa, porque reduz radicalmente os custos hospitalares, evitando o colapso do sistema de saúde. Seria importante que os países ricos, que sempre encontram o dinheiro necessário para fazer uma guerra, percebessem a importância disso. Não é só um problema humanitário: a Aids ensina que doenças surgidas em países 'longínquos' não ficam muito tempo longe dos ricos”.

Vivemos hoje num mundo dominado pelo apartheid da saúde. Quem não pode pagar, freqüentemente não tem direito à cura: “no cash, no cure”, sintetizou com amargura Gro Harlem Brundtland, ex-diretora da Organização Mundial de Saúde. Um provérbio africano diz: “o momento melhor para plantar uma árvore é 40 anos atrás. O segundo melhor momento é agora”. Agora, se for impossível, como parece, cortar centavos de cada dólar gasto no mundo para experiências militares (cerca de 750 bilhões de dólares em 1999, de acordo com a CIA) ou deixar intacto 99,95% do PIB mundial e destinar o resto à emergência da saúde na África, o continente parece destinado a sofrer um impacto de proporções nunca vistas. E o verdadeiro nome das doenças big killers continuará sendo: genocídio.