Os
números da Aids na África são
números de
um genocídio. Não só pelo grito
cruciante das
cifras (2 milhões e quatrocentos mil mortos em 2005), mas,
sobretudo, pela incrível disparidade de oportunidades que um
africano tem frente à doença em
comparação
com um paciente que vive em regiões mais ricas do planeta.
Cada vez mais, a Aids e as outras duas doenças chamadas de big
killers (malária e tuberculose que, juntas, matam
quase 3
milhões de pessoas por ano), parecem dar fundamento
à
denúncia de James Orbinski, ex-presidente da
organização
Médicos Sem Fronteiras (Prêmio
Nobel da Paz em
1999) à imprensa anos atrás: “estou
cansado de ver
morrer mulheres, crianças e homens, enquanto eu sei que
existe
um tratamento eficaz e que poderia estar ao alcance deles. Estou
cansado de ver que o lucro sempre ganha sobre o direito à
saúde. Não agüento mais essa
lógica na qual
quem não pode pagar, morre”.
A
região subsaariana, apesar de representar apenas 11% da
população mundial, hospeda mais de 60% das
pessoas com
HIV do mundo. Os números são difíceis
de
estimar: os governos de alguns países foram acusados de
divulgar dados subestimados, enquanto, por outro lado, há
quem
considere superestimados os números fornecidos pelas
Nações
Unidas ou pelas organizações
humanitárias. O mais
recente relatório da Unaids, a entidade das
Nações Unidas para luta
contra Aids, afirma que existem entre 24 e 29 milhões de
pessoas com HIV/Aids na região subsaariana. No mundo, a Aids
representa a quarta causa de morte. Na África, é
a
primeira. Enquanto prevenção e terapias
estão
conseguindo controlar a doença na Europa ocidental, nos
Estados
Unidos, no Brasil, nos países mais pobres, e de forma
particularmente desesperadora na África, tudo isso parece
não
estar funcionando. Por quê? Por que a difusão da
Aids, na
maioria dos países da região, não se
reduz? Por
que a doença ainda mata milhões?
“É
uma situação que permaneceu quase inalterada nos
últimos anos”, explica Stefano Vella,
médico do
Instituto Superior de Saúde italiano e ex-presidente da
International Aids Society (IAS).
“Recentemente, novidades
sobre a difusão da epidemia vieram da Ásia e do
leste
europeu: em países como China, Índia e
Rússia, o
HIV está crescendo num ritmo elevadíssimo, e a
situação
é de extrema gravidade. Mas na África, onde
há
países com prevalência da doença
superior a 35%,
a situação tem proporções
catastróficas”.
Até
agora, 20,4 milhões de africanos morreram de Aids, deixando
12
milhões de órfãos. Em um total de 4,9
milhões
de pessoas que, no ano passado, contraíram o
vírus no
mundo, 3,2 milhões vivem no continente. A difusão
do
HIV na região subsaariana é
incomparável com a
de qualquer outra parte do mundo. A porcentagem de pessoas com
HIV/Aids é cerca de 7% (10 vezes a do Brasil), chegando
acima
de 20% em alguns países (como Zimbabwe e África
do
Sul), ou até acima de 30% (em Botswana ou Swaziland).
“A
dramática difusão da Aids na África
é
causada por vários fatores”, comenta Vella, que
é
também membro do Painel Técnico do Fundo
Global, entidade
criada em 2002 em busca de recursos para o combate aos três big
killers no mundo. “Em primeiro lugar, o HIV
é difuso no
continente por uma razão óbvia: foi onde surgiu.
É
uma doença antiga para a África, e teve muitos
anos
para se espalhar, quando ainda era desconhecida. Como acontece com
todas as epidemias, quando se supera um determinado limite de
prevalência, a difusão se torna comum. Pensemos na
gripe: se muitas pessoas ao nosso redor já pegaram, fica
menos
raro entrar em contato com o vírus. Outros fatores, na
África,
são a falta de informação e um
número de
relações sexuais elevado. Além disso,
fatores
econômicos que geram grandes migrações
e
prostituição nas cidades maiores, ou fatores
políticos
como os êxodos devidos às guerras, causam a
difusão
do vírus”.
Mas por que a
prevenção e os fármacos que
estão
permitindo controlar a doença em muitos países
não
conseguiram atacar a Aids no continente africano? Parte da reposta
é
simples, apesar de ligada a múltiplos fatores:
remédios
e prevenção não chegam à
população.
Valéria
Almeida, médica infectologista do Centro de
Referência
DST/Aids de Campinas (SP), passou dois meses em Moçambique
no
âmbito de um projeto da Universidade de Columbia, financiado
com dinheiro do governo
dos Estados Unidos, e voltado à para
instalação
de estruturas e treinamento de recursos humanos.
“É só
chegar para se dar conta da dificuldade da
situação:
têm poucas escolas de medicina no país, muito
poucos
médicos e pouquíssima experiência com
as terapias
anti-retrovirais”. Paradoxal, num país onde 14% da
população
está contaminada pelo HIV. “Às vezes,
falta
simplesmente tudo: os médicos, as luvas, até a
água”,
acrescenta a médica. Almeida trabalha em Campinas numa
estrutura que, graças ao trabalho conjunto de ONGs e
prefeitura, mostrou uma atuação
extraordinária
na prevenção, acompanhamento e tratamento da Aids
e das
outras doenças sexualmente transmissíveis, e
ficou
impressionada com a situação africana.
“Quando têm
remédios”, continua, “faltam recursos
para tratar as
infeções oportunistas, ou faltam os instrumentos
necessários para medir a carga viral e acompanhar a terapia.
Quando se têm tais instrumentos, muitos médicos
não
sabem usá-los simplesmente porque nunca tiveram a
oportunidade
de ver um. Além disso, a prevenção
é
difícil. Para dar um exemplo, não há
distribuição gratuita de preservativos”.
Não
há prevenção sem diálogo
“Sem
o diálogo com as culturas locais, não
há
eficácia na prevenção e
cura”, enfatiza Silvia
Zaccaria, antropóloga italiana. “Por um lado, o
problema de
falta de estruturas e de acesso aos fármacos, é
dramático. Mas um problema grave é
também o do
choque entre o saber ocidental e o conhecimento local”,
acrescenta
a voluntária, que trabalhou um ano em Malawi, num projeto de
prevenção e sensibilização
junto às
comunidade locais, com a ONG italiana Movimondo. “Em muitas
regiões”, continua, “as escolas
islâmicas tendem a
ser demonizadas e excluídas, pelos operadores
internacionais,
de qualquer forma de diálogo, impedindo assim seu
envolvimento
como possíveis lugares de difusão de
práticas de
prevenção. O mesmo acontece com figuras
tradicionais
tais como curandeiros ou lideranças religiosas. Como
resultado, parte da população animista ou
muçulmana
se recusa a ir para as estruturas ocidentais de
educação
e prevenção, encarando-as como uma forma de
chantagem
cultural, um ataque à sua própria
visão de
mundo”.
“A
prevenção na África”,
confirma Stefano Vella,
“não pode funcionar do mesmo jeito que em
países
ocidentais. O preservativo, por exemplo, é instrumento
fundamental, mas é sem dúvida ‘pouco
africano’. Não
é fácil que esse pedaço de borracha
entre numa
tradição como a africana, também
porque é
um instrumento de uso masculino. A condição
feminina na
maioria dos países torna muito difícil para uma
mulher
se proteger dessa forma. São importantes, então,
também
microbicidas vaginais”.
Ainda segundo Silvia
Zaccaria "muitas
organizações estão finalmente abrindo
o diálogo
com os atores locais: é preciso recomeçar pelas
formas
tradicionais de cuidado do doente, valorizar as práticas de
cura domiciliar. Não podemos construir um hospital a cada 30
km, nem chegar a padrões ideais que nem na Europa existem.
É
preciso reforçar as redes de solidariedade, utilizar as
pessoas que, tradicionalmente, sempre praticaram o cuidado aos
doentes”.
“Obviamente”,
continua Stefano Vella, “precisamos achar uma vacina.
Mas devemos ser claros: a vacina não existe. E
não
existirá pelos próximos vinte anos. A
prevenção
então é absolutamente prioritária. E
prevenção
existe se é ligada aos costumes e à
religião
locais. Prevenção significa também
enfrentar o
problema da pobreza, da educação, da
condição
feminina”.
Os
preços
da Aids
O
custo, para conseguir isso, é alto. Mesmo assim,
não
chega a 2% dos gastos militares anuais no mundo. O ataque ao Iraque
custou cerca de um bilhão de dólares por dia. No
mesmo
período, para enfrentar a Aids nos países pobres,
era
necessário 10 bilhões por ano, que os governos do
mundo
não conseguiram fornecer. Hoje, um
relatório da
Unaids afirma que os recursos globais para enfrentar a
doença
em países pobres, incluindo prevenção,
terapias,
apoio e cuidado com órfãos, deveriam ser de cerca
de 15
bilhões de dólares para 2006, 18
bilhões em
2007, 22 em 2008. Os governos dos países ricos
até
agora não conseguiram prometer a metade das cifras
necessárias, e disponibilizaram menos ainda (cerca de 6
bilhões
de dólares em 2004). Por outro lado, os antigos regimes
coloniais de muitos países africanos têm
responsabilidades gravíssimas. As ditaduras, guerras civis e
corrupção, na maioria dos países do
continente, fizeram com que os governos nada investissem em
educação,
saúde e infra-estrutura.
O resultado
é
que o impacto da Aids na África está sendo
avassalador,
e vem abatendo inúmeros setores estruturais da sociedade. O
sistema de saúde está em colapso. Nos hospitais,
a Aids
causou uma carência crônica de camas e vagas,
fazendo com que possam ser internadas apenas pessoas em
condições
críticas, com pouca chance de cura. Já
não há
médicos e enfermeiros suficientes, porque a
doença foi
crescendo também entre os profissionais da saúde.
Um
número muito elevado de famílias se dissolveram
devido
à morte de um ou ambos os pais. Muitas famílias
têm
hoje como chefe uma criança. A
produção de
comida também está caindo radicalmente, porque
muitas
famílias abandonam o cultivo da terra devido à
doença.
Os custos com saúde podem subir até 400% se um
membro
da família tem Aids. Inúmeras crianças
devem
abandonar a escola, criando uma espiral que causa ulterior aumento da
difusão da Aids, sendo que acesso à
educação
representa um dos principais fatores de prevenção
da
doença. Ao mesmo tempo, muitos professores já
adoeceram, e muitos morrem a cada ano. Enfim, a grande maioria das
pessoas com HIV/Aids têm entre 15 e 50 anos de idade, e a
doença afeta assim dramaticamente a força de
trabalho,
abalando parte da possibilidade de desenvolvimento econômico.
O
Banco Mundial estimou que em muitos países africanos o
crescimento do PIB vai cair sensivelmente, nos próximos
anos,
por causa da Aids. E a expectativa de vida nos países
subsaarianos teve um regresso nunca visto: sem Aids era de 62 anos.
Hoje, caiu para 47.
Salvar
gerações
“Se
queremos evitar que desapareçam
gerações
inteiras”, comenta Vella,
“prevenção não
basta: é absolutamente necessário levar estrutura
e
remédios”. Os Médicos Sem Fronteiras
(MSF) lutam há
anos em prol do direito de acesso aos fármacos nos
países
pobres. A ONG, criada na França em 1971, para assistir
populações vítimas de guerras,
epidemias e fome, lançou
em 1999 uma Campanha
de Acesso a Medicamentos Essenciais, à qual
destinou os recursos
recebidos com o Prêmio Nobel da Paz.
Segundo
a organização, os preços continuam
sendo um dos
maiores obstáculos ao acesso aos medicamentos na
África.
Em 2000, por causa das patentes,
uma terapia anti-retroviral custava 10 mil dólares por ano
para cada paciente. Um custo impossível de enfrentar. Hoje,
como se lê nos relatórios da MSF,
graças aos genéricos
(produzidos na Índia, China e Brasil), a terapia custa entre
200 e 600 dólares ao ano por pessoa, e, em alguns casos,
pode
chegar a menos de 150 dólares. “O problema das
patentes”,
comenta Vella, “foi, pelo menos parcialmente, atenuado
graças
aos genéricos. Além disso, as
indústrias
farmacêuticas começaram a entender que
é
conveniente vender drogas a preço reduzido na
África.
Mas o gasto continua sendo impossível para muitos
países”.
Médicos
da MSF afirmam que o custo deve e pode baixar até 50
dólares
por paciente ao ano. No final deste mês de abril, a ONG
denunciou que a farmacêutica Abbot não
disponibilizou
para os países pobres, como prometido, uma nova
versão
do medicamento Kaletra (lopinavir/ritonavir), muito importante por
sua estabilidade em altas temperaturas.
“O
Fundo Global”, diz Vella, “insiste em exigir os
recursos
prometidos pelos países ricos. O acesso aos
fármacos é,
simplesmente, questão de vida ou de morte. Também
é
crucial ter dinheiro para estruturas. O Brasil foi um dos primeiros
países capazes de mostrar que acesso aos
fármacos, apesar de caro, compensa, porque reduz
radicalmente os custos
hospitalares, evitando o colapso do sistema de saúde. Seria
importante que os países ricos, que sempre encontram o
dinheiro necessário para fazer uma guerra, percebessem a
importância disso. Não é só
um problema
humanitário: a Aids ensina que doenças surgidas
em
países 'longínquos' não ficam muito
tempo longe dos
ricos”.
Vivemos
hoje num mundo dominado pelo apartheid da
saúde. Quem
não pode pagar, freqüentemente não tem
direito à
cura: “no cash, no cure”, sintetizou com amargura
Gro Harlem
Brundtland, ex-diretora da Organização Mundial de
Saúde. Um provérbio africano diz: “o
momento melhor
para plantar uma árvore é 40 anos
atrás. O
segundo melhor momento é agora”. Agora, se for
impossível,
como parece, cortar centavos de cada dólar gasto no mundo
para experiências militares (cerca de 750 bilhões
de
dólares em 1999, de acordo com a CIA) ou deixar intacto
99,95%
do PIB mundial e destinar o resto à emergência da
saúde
na África, o continente parece destinado a sofrer um impacto
de proporções nunca vistas. E o verdadeiro nome
das
doenças big killers
continuará sendo: genocídio.
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