É curiosa a história da representação do belo no ocidente. Considerado fundamental em todas as épocas, o belo sempre desafiou artistas e filósofos com sua inefabilidade. As estátuas de Policleto, os templos das acrópoles gregas, os retratos de Leonardo, as mulheres de Rubens ou de Gauguin, representaram o belo. Mas um belo profundamente diferente a cada momento.
Muitas épocas tentaram definir um padrão de beleza, que a época subseqüente rejeitava ou transformava profundamente. Um acorde musical considerado demoníaco na Idade Média, é hoje usado e percebido como belo no blues e no jazz. Intervalos musicais dissonantes e de uso limitado na época de Mozart, são hoje típicos (e perfeitamente afinados) na música popular e comercial ocidental. Para Pitágoras, belas eram as proporções matemáticas entre números inteiros, que podiam representar até a música divina das esferas celestes. Para alguns dos artistas da Grécia clássica, belas eram as formas arquitetônicas que reproduziam a proporção áurea. Templos eram construídos com largura e altura em proporção “Pi”, que vale cerca de 1,618 e é presente em algumas estruturas biológicas (como a espiral da concha do molusco náutilo).
Porém, se hoje estamos acostumados a pensar que muitos conceitos “universais”, tais como verdade, beleza, natureza, são vagos, construídos socialmente, enraizados nas culturas e relativos a estas, o belo foi, em muitos momentos históricos, definido e considerado algo objetivo e absoluto. Para gregos e romanos, belo, verdadeiro e bom eram três valores supremos. Para os gregos antigos, o bom cidadão da pólis tinha de ser um homem “kalós kai agathós”, ou seja belo e virtuoso. Homem “belo” (kalós) era não só o de formas proporcionais, forte, são. “A antiga noção de belo”, explica Luciano Migliaccio, professor de história da arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas, “é um conceito normativo que responde a uma praxe técnica. O kalós grego (do verbo kaleo, chamar) é o que nos atrai, que suscita desejo. Nas artes figurativas, belo é o produto que imita melhor a natureza em seu processo criativo, correspondendo à norma geométrica e proporcional que governa, por exemplo, a construção do corpo humano. O belo, então, é concebido como um processo de adequação do produto humano ao pensamento divino, e governa o processo de criação na arquitetura, nas artes figurativas, como também na música”.
De acordo com Herbert Dieckmann (no Dicionário de história das idéias), em épocas pré-modernas a beleza era considerada como algo de existência objetiva e características universais. Platão, por exemplo, pensava que as representações materiais do belo compartilhavam da Beleza Absoluta, entidade que existia no mundo das idéias e era portanto absoluta, universal, não relativa, dotada da propriedade de “reconciliar o finito com o infinito” e que se manifestava “na proporção, na simetria, na medida e na harmonia das partes em relação com o todo”. Proporções e simetria ligavam então a beleza com o Bem, enquanto o belo revelava o Ser e era então ligado também à Verdade. A Verdade era garantia da Beleza.
Também para Aristóteles o belo respondia a normas objetivas. Porém, diferente de Platão, para o filósofo o belo não era definido e julgado em relação ao Ser e ao Verdadeiro, mas em termos de perfeição das formas, ou seja baseado em critérios objetivos não metafísicos. Suas componentes eram ordem, simetria, definição. Na Idade Média, Plotinos e Santo Agostinho retomaram as concepções de Platão e desenvolveram uma teoria do belo que dominou até o Renascimento. “O antigo conceito grego de beleza”, confirma Migliaccio, “influenciado em maneira substancial por Aristóteles, foi retomado no Renascimento junto com conceitos de origem platônica muito vivos no pensamento cristão. O belo era visto como reflexo da inalcançável transcendência divina”. Assim, menciona o historiador como exemplo, Michelangelo, em um soneto, pergunta ao amor se a beleza da mulher amada é percebida pela sua imagem ou se, na verdade, a beleza não seria uma imagem interior que, através do rosto da amada, remete à transcendência divina. “O artista tende para a segunda resposta: Michelangelo é o campeão de uma estética do sublime, ou seja, do belo como alusão ao transcendente, ao incompreensível, algo que só pode ser percebido através da forma criada. Se pensarmos na cúpula de São Pedro em Roma, de Michelangelo, percebemos como, para ele, a beleza está no esforço de chegar ao inalcançável, ao sublime que não pode ser entendido pela razão, ao reflexo da idéia divina que se manifesta no mundo criado”.
Porém, a noção do belo como algo objetivo, seja porque remeter ao divino, ao mundo das idéias, ou porque está ligado a critérios e normas não metafísicas porém universais, não resistiu na era moderna. A partir do século XVIII (e já no final do XVII), a fugacidade, inefabilidade e, sobretudo, a subjetividade do belo se tornam presentes com força na consciência de artistas e filósofos. Muitos, a partir do empirismo e, mais profundamente, com o Romantismo, começaram a se perguntar, no momento de definir algo ou alguém como belo, se estavam vendo em tal objeto ou pessoa caraterísticas que efetivamente possuíam, ou se estavam atribuindo tais características a eles. A passagem entre a antiga concepção objetivista de belo para a nova, subjetivista, marcou o abandono da busca para uma definição essencialista de belo.
“A beleza”, escreve Dieckmann, “já não é mais uma essência, uma característica objetiva, ou uma relação. Sua fundação está na resposta de nossos sentimentos, emoções, ou em nossas mentes”. Assim, o filósofo e matemático Blaise Pascal já dizia: “a própria moda e os países determinam aquilo a que se chama de beleza”. E David Hume concluia que “a beleza não é uma qualidade das coisas por si mesmas. Ela existe meramente na mente que as contempla, e cada mente percebe uma diferente beleza”. O prazer, continuava Hume, não somente é um necessário assistente da beleza, mas, sim, constitui sua própria essência. “Beauty”, passaram a dizer muitos, transformando o conceito em aforismo, “is in the eye of the beholder” (a beleza está no olhar de quem a contempla). Sucessivamente, na estética de Immanuel Kant, “belo é tudo quanto agrada desinteressadamente”.
Se a definição do belo aparecia então em discussão, ligada aos sujeitos tanto quanto aos objetos, também nas artes sua representação mudava. Se Leonardo da Vinci ainda declarava que a representação do belo era a “lei suprema da arte”, o escritor e crítico literário italiano Francesco de Sanctis, no século XIX, respondia que “a matéria da arte não é o belo ou o nobre, tudo é matéria de arte, tudo o que é vivo”.
“Em nossa civilização”, completa Migliaccio, “belo é uma noção cultural e histórica. A virada acontece com o movimento romântico. Baudelaire, em seus escritos sobre a arte, fornece uma boa definição moderna do belo: belo é um conceito eterno (todas as culturas dão valor a algo que consideram belo, ideal, desejável), porém tal conceito se realiza historicamente, em forma diferente em cada civilização”. Cada sociedade atribui beleza a produtos e qualidades diferentes. “Belo, então, é um conceito histórico realizado na arte”, continua o historiador da Unicamp. “História do belo e história da arte se identificam, por exemplo, na estética de Hegel, momento capital da reflexão sobre o tema. Romantismo e simbolismo identificam o belo com a expressão sincera e espontânea do sentimento individual por meio da criação da forma. Se aproximam, assim, ao conceito platônico de Michelangelo, porém buscando o transcendente na própria arte”.
Não surpreende então que poetas como Paul Valery possam brincar: “a definição de belo é fácil”, disse o francês, “é aquilo que desespera”. E não surpreende que, no século XX, um artista futurista como Filippo Marinetti pudesse dizer que “a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova, a beleza da velocidade”, acrescentando: “um automóvel de corrida com o seu capô ornado com grossos tubos semelhantes a serpentes de sopro explosivo …, um automóvel que ruge e parece correr sobre a metralha, é mais belo do que a Vitória de Samotrácia”.
Outro ponto de virada na concepção e representação do belo, continua Luciano Migliaccio, é dado pelas vanguardas históricas, particularmente o dadaísmo e o surrealismo. “Na civilização industrial, a beleza não está só nos produtos da arte tradicional”, explica. “O desejo de beleza, de algo que consideramos desejável, se reflete no design de um carro, em um maço de cigarros ou nos produtos da tecnologia”. Na arte neo-dadaísmo e pop da década de 1960, comenta o pesquisador, a noção de arte e de beleza tradicional são postas em crise. São procurados novos parâmetros estéticos da civilização industrial, por meio da experimentação de novas linguagens, da crítica da idéia de autor, de pintura, de expressão. “Um exemplo disso é a recuperação do ready-made por Duchamp, que é um artista central para entender o novo conceito de beleza”. Tal busca não cessa de ser uma busca do sublime, do incompreensível, “porque depende, em boa parte”, conclui Migliaccio, “dos horizontes ainda incompreensíveis da ciência e da tecnologia, hoje capazes de manipular a própria criação natural”. A beleza, concluiria talvez ainda hoje Simone de Beauvoir, ainda é mais difícil de contar do que a felicidade.
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