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Reportagem
A desarmonia dos sentidos e os trotes do corpo
Por Júlia Melare
10/11/2013

Por mais perfeito que possa parecer o funcionamento do corpo, ele também se ilude em determinados momentos. Além do engano do sistema visual na tão conhecida ilusão de óptica, há vários outros registros dessas “peças”, incluindo principalmente audição e paladar. Outro exemplo que chama atenção é a sensação de membro fantasma, fenômeno que acomete pacientes que sofreram amputação de algum membro do corpo.

Ângela Maria Sousa, chefe de serviço de controle de dor do Instituto de Câncer do Estado de São Paulo, afirma que aproximadamente 80% dos pacientes que sofreram amputação ainda têm a sensação de que o membro perdido está conectado ao corpo. Ele pode apresentar dor ou não, dependendo da condição pré-amputação. “Se já sentia dor no local amputado, como numa isquemia do tecido, a chance é grande de esse incômodo continuar após o procedimento, manifestado em queimação, fisgadas, pontadas, apertos. Isso caracteriza a dor de membro fantasma”, diz a médica.

Já nos casos em que o paciente continua sentindo o membro, porém não há registro de dor, dá-se o nome de sensação de membro fantasma. A maioria das ocorrências dessa classificação é registrada quando há amputação traumática, proveniente de um acidente. Quando a amputação não é traumática, como no caso de um diabético com dor isquêmica e necrose de tecido, a dor de membro fantasma pode surgir em duas fases: dentro do primeiro mês após a cirurgia (logo na saída do centro cirúrgico), ou depois de um ano do procedimento.

A explicação neurológica desse fenômeno é creditada à sensibilização do sistema nervoso central, quando o estímulo não chega ao córtex logo após a amputação, gerando demora do cérebro para assimilar a situação. Com o tempo, a área cerebral que recebe a informação referente a esse estímulo torna-se hipotrofiada, exigindo reorganização cortical para que outras áreas próximas compensem essa falta de estímulo. “Às vezes, a sensação de que o membro ainda existe é tão evidente que só de encostar no corpo da pessoa ela já ‘sente’ o membro amputado. Isso acontece devido a essa reorganização do tecido neural”, conta Sousa.

O fenômeno da telescopagem também pode acompanhar pacientes com sensação de membro fantasma. Nele, há alteração sinestésica do membro amputado – se antes ele era sentido em sua totalidade, com o tempo o tamanho do membro fantasma vai diminuindo, podendo chegar apenas ao membro residual, por exemplo, o coto. Outro caso comum relatado aos médicos é a sensação de que o membro amputado está em outro local do corpo. A médica exemplifica com a situação de uma perna amputada que pode ser percebida pelo paciente atrás do pescoço ou cruzada embaixo da perna remanescente. Situação semelhante é observada ao se submeter às anestesias raquidiana e peridural, devido ao bloqueio da informação neuronal no local anestesiado, que não chega ao córtex cerebral.

O tratamento para dor de membro fantasma é feito majoritariamente com medicações, como anti-inflamatórios, anticonvulsivantes, antidepressivos, opioides, numa terapia multimodal, na qual são utilizados medicamentos de diferentes classes para reduzir os efeitos colaterais e que se adaptem melhor à demanda do paciente. Porém as drogas não têm 100% de eficácia. “Existem outros tratamentos mais invasivos, como a estimulação cerebral profunda, que instala eletrodos no córtex para promover um estímulo em regiões cerebrais específicas. Alguns pacientes afirmam alívio de mais de 50% da dor. Outro exemplo é a estimulação motora, também no córtex, que desencadeia a liberação de vias inibitórias, auxiliando na questão da dor”, completa a médica. Uma alternativa é a terapia do espelho, em que o membro amputado é escondido por um espelho, que reflete o membro existente, ocasionando um feedback do membro refletido para causar ilusão de que o membro amputado está presente. Um truque para a mente.

 

Ilusões sonoras

Outro fenômeno ilusório do corpo é a percepção auditiva fantasma, que não corresponde a um som externo efetivamente ouvido. Dentre os casos desse tipo, podemos citar o zumbido, que tem origem em algum ponto da via auditiva periférica ou central, que gera aumento da atividade elétrica e que quando chega ao córtex auditivo é reconhecido como som, assemelhando-se a um apito ou chiado. De acordo com Keila Baraldi Knobel, pós doutora em fonoaudiologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, o zumbido pode acometer pessoas com e sem perda auditiva. Dentre as causas, figuram alterações da via auditiva, alteração na glicose no sangue, cansaço, alteração de pressão arterial e exposição a ruído, dentre outros fatores.

Além dessa categoria, podemos citar também as alucinações auditivas psiquiátricas, bem mais complexas e presentes na esquizofrenia, e as alucinações auditivas não psiquiátricas, subdivididas em musicais e não musicais. Elas ocorrem, principalmente, em mulheres idosas com histórico de perda auditiva. “Quando há um período prolongado de privação auditiva, fato que ocorre quando há perda auditiva, há hiperatividade do córtex auditivo, liberando memórias auditivas que podem ser músicas da época de crianças, hinos de igreja, músicas que tenham valor afetivo. Na alucinação não musical são ouvidas vozes baixas que conversam o tempo todo, porém diferentemente de um comando esquizofrênico, sem interferência alguma no comportamento”, conta Knobel. A grande diferença entre o esquizofrênico e um paciente que sofre de alucinação auditiva não psiquiátrica é que o último sabe que não há um som externo e que esse fenômeno não é normal, procurando ajuda espontaneamente. As causas desse fenômeno são muitas, podendo variar de danos neurológicos (como início de demência) ao uso de drogas.

Para Knobel, a atenção seletiva para a via auditiva interfere sensivelmente na frequência da percepção auditiva fantasma, em especial quando ela é notada em ambientes silenciosos. “Quando se está em expectativa, numa espera de algo, é como se você escutasse o som que está antecipando, liberando uma memória auditiva desse fato. Certamente alguma vez você achou que seu celular tocou, mas isso não estava acontecendo, ouviu uma voz conhecida te chamando ou uma criança chorando quando ela estava quietinha. Nosso corpo não está acostumado com o silêncio, e nessa situação pode haver alteração breve e temporária nos padrões de descarga neural do sistema nervoso auditivo central, como se o cérebro buscasse algo para quebrar esse silêncio”, explica.

Ainda segundo a fonoaudióloga, não é preciso se assustar se você às vezes escuta algum chiado, bipe, ou algo do tipo. “Para quem tem essas percepções auditivas fantasma ocasionalmente, não há porque se submeter a qualquer tratamento. Oferecemos ajuda para quem sofre constantemente, atrapalhando a atenção e o conforto em geral. Crianças também podem ter zumbidos ou percepção auditiva fantasma. Então, ao verificar algum sintoma de perturbação auditiva, é preciso levar para um otorrinolaringologista para uma avaliação mais completa do caso”, salienta.

 

Dos laboratórios para a cozinha

E quanto ao olfato e ao paladar, também há algum tipo de ilusão? O prazer de ingerir um tablete de chocolate, uma massa recheada com queijos derretidos e molhos ou mesmo um simples pão francês quentinho com manteiga é capaz de seduzir, seja pelo olhar ou pela imaginação, até quem jura não estar com fome no momento. Imaginamos aromas, sabores e texturas desses alimentos, num jogo de ilusão e apetite de nosso cérebro. Esse prazer gastronômico é cada vez mais objeto de interesse de químicos e físicos, investigado microscopicamente pelos cientistas.

A aproximação da ciência com a gastronomia tem sido marcante desde 1988, com o trabalho do físico Nicholas Kurt e do químico Hervé This. Os cientistas observaram as relações físico-químicas que se efetivavam durante procedimentos culinários, dando origem a estudos em física molecular e gastronomia posteriormente rebatizados de gastronomia molecular. Hoje, esse estudo meticuloso dos alimentos investiga os processos que envolvem o ato de cozinhar, como a elaboração dos pratos, a escolha dos alimentos, equipamentos e métodos utilizados nas receitas, além da criação de novos pratos, maximizando sabores apropriando-se de técnicas científicas.

This continuou seus estudos na área da gastronomia molecular durante as últimas décadas, contabilizando mais de 25 mil truques culinários desvendados. Porém, uma das mais importantes descobertas do químico francês foi a influência da arte e do amor na culinária, que segundo ele são essenciais para atingir o objetivo de plena satisfação dos degustadores. Enfim, uma ciência complexa, que combina fundamentos de química, física, bioquímica e – por que não? – de psicologia. Transformar a aparência de um prato, que tradicionalmente seria apresentada em outro estado físico, por exemplo, mexe com a nossa percepção desse alimento e com toda a experiência da refeição.

Da gastronomia molecular originou-se a culinária molecular (ou cozinha molecular), na qual as técnicas investigadas nas pesquisas referidas anteriormente são aplicadas a partir das mãos de talentosos chefs de cozinha. Em minutos, uma caipirinha pode ser congelada com hidrogênio líquido e transformar-se num delicioso sorbet. Sucos podem ser condensados em pequenas e médias esferas, “decorando” e adoçando entradas e sobremesas.

Algumas das técnicas utilizadas pelos chefs são a gelatinização (resumidamente, fenômeno pelo qual os grânulos de amido são dilatados quando submetidos a água quente, aumentando seu volume), esferificação (aprisionar um líquido em esferas que “explodem” na boca), construção de espumas (aprisionar bolhas de ar num líquido ou sólido), texturização de lipídios, colagem de proteínas (quando, por exemplo, funde-se dois tipos de carnes diferentes através da transglutaminase), entre inúmeras outras.

A criatividade corre solta com a ajuda da ciência, proporcionando verdadeiras obras de arte e sabor que enganam os sentidos.