Em todo o mundo, mas principalmente em países em desenvolvimento, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) associadas biologicamente ao processo aterosclerótico, representam um crescente encargo para a sociedade, a família e o indivíduo1,2. Entre os 58 milhões de óbitos mundiais em 2005, 35 milhões foram causados pelas DCNT, o que representa o dobro do número total de óbitos por todas as doenças de notificação obrigatória (incluindo síndrome da imunodeficiência adquirida, tuberculose e malária), afecções perinatais e maternas e todas as deficiências nutricionais combinadas. No mesmo ano, a World Health Statistics (2006) aponta que entre as DCNT, as doenças circulatórias são a principal causa de óbito, responsáveis por 30% de todos os casos (17,5 milhões de óbitos), seguidas por câncer (7,6 milhões de óbitos) e doenças respiratórias crônicas (4,1 milhões de óbitos)1.
Os acidentes cerebrovasculares (AVC), agrupados dentro das causas circulatórias, são, em todo o mundo, a segunda maior causa de óbitos (5,7 milhões por ano), e em 2005, foram responsáveis por aproximadamente 10% de todos os óbitos mundiais. Entretanto, a distribuição desses eventos ao redor do mundo é nitidamente desigual, pois 85% desses óbitos ocorrem em países não desenvolvidos ou em desenvolvimento e um terço atinge pessoas economicamente ativas3.
Se não houver nenhuma intervenção, o número de óbitos por AVC projetado para o mundo aumentará para 6,5 milhões em 2015 e para 7,8 milhões em 20304. Estudos do Banco Mundial avaliam que esse expressivo aumento da taxa de mortalidade permanecerá sendo assimétrico ao redor do globo4. A figura abaixo mostra a tendência de óbitos por AVC entre os países do mundo, divididos em três extratos econômicos, por milhões de pessoas, no período entre o ano 2002 a 2030. Como se pode observar, a projeção de aumento de óbitos em países de baixa e média renda é muito maior do que nos países de alta renda1,4.
Projeção de morte por AVC, por grupos de renda, 2002-2030, segundo o Banco Mundial (Strong, 2007)
Envelhecimento populacional: um amplificador do impacto
Como a incidência e mortalidade por AVC sofrem forte influência da idade e da expectativa de vida de cada população, o rápido crescimento populacional de pessoas idosas em todo o mundo aumentará ainda mais o impacto nas taxas de morbi-mortalidade5,6. Segundo a OMS, a população mundial acima de 65 anos está crescendo 9 milhões ao ano, e para o ano de 2025, são projetados mais de 800 milhões de pessoas acima de 65 anos17. Esses números são particularmente preocupantes em algumas regiões do mundo, como a América Latina e a Ásia, onde se espera um aumento de 300% na população idosa2. Essa seria uma das razões que justificariam a estimativa de que nas próximas duas décadas o número total de óbitos por AVC triplique na América Latina7.
Como medir esse impacto? Quais são suas tendências?
Iniciado no final da década de 1970 pela OMS, o estudo de “Monitoramento das Tendências e Determinantes em Doenças Cardiovasculares ” (Monica), produziu nas décadas de 1970 e 1980 uma confiável fonte de comparação de dados de incidência, letalidade e mortalidade por AVC10. Infelizmente, nenhum país da América Latina foi incluído entre os 18 países envolvidos na pesquisa. Após a década de 1980, persistiu a quase ausência de estudos de base populacional em países de baixa e média renda9. Mesmo na década de 1990 e na primeira década deste século, a maior parte dos estudos publicados com a metodologia “ideal” foi realizada em populações de cor branca e em países mais desenvolvidos9.
Nesses países, estudos publicados nos últimos 20 anos demonstraram que as taxas padronizadas para primeiro evento de AVC, em pacientes acima de 55 anos, se situaram entre 4 a 8 casos por 1000 habitantes por ano9. De um modo geral, as taxas de incidência desses países, e também da China, decaíram ou se estabilizaram, nas últimas três décadas11.
Áreas com estudos de incidência em AVC de base populacional
A figura acima mostra uma revisão com a localização de 56 estudos populacionais de incidência, realizados nas últimas quatro décadas (1970-2008) em todo o mundo. Os círculos azuis indicam as populações com estudos de tendência das taxas ao longo do tempo. Pode-se observar a escassez desse tipo de dado, principalmente nos países em desenvolvimento12,13.
Assim como a incidência, a mortalidade, nos últimos 30, anos em países desenvolvidos, tem declinado, principalmente, no Japão, América do Norte e Europa Ocidental9 e, na última década, também na Europa Oriental9,11,13. As curvas das taxas de mortalidade nos países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, têm diminuído, ainda que menos pronunciadamente do que nos Estados Unidos e Canadá11. Utilizando dados oficiais de atestados de óbitos, um estudo das taxas de mortalidade por AVC no Brasil, comparando o início das décadas de 1980, 1990 e 2000, demonstrou um declínio de 68,2 para 40,9 por 100.000 habitantes no período, com variações regionais14.
Um último aspecto a ser considerado é o da letalidade, que é uma medida da eficácia do tratamento intra-hospitalar13. Em uma revisão de estudos populacionais realizados nos últimos 20 anos nos países desenvolvidos, a média da letalidade em 30 dias, disponível em 13 de 15 estudos populacionais, foi de 22,9%9. Dos poucos estudos que mostraram a tendência da letalidade ao longo do tempo, quatro estudos registraram declínio na letalidade, entre o início da década de 1970 e o início da década de 199015,16,17,18, e dois não registraram mudança19,20.
São escassos os dados de letalidade em países em desenvolvimento21. No Brasil, as taxas encontradas são geográfica e numericamente distintas. Foram descritas na década de 1980, 50 % em Salvador (BA)22, na década de 1990, 29% em Joinville (SC)23, e na primeira década dos anos 2000, 18,5% em Matão (SP)24. Ainda na América Latina, foram descritas taxas de 19,3 % em 1998-9 na Martinica, Índias Francesas Oeste, 29,9% em 2001 em Barbados, e 23,3% em 2001-2 em Iquique, Chile25.
Conclusões
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem enfatizado que estamos sendo testemunhas de uma “epidemia” de AVC em países em desenvolvimento26 e, diante da escassez de dados nesses países, existe uma “clara e urgente necessidade de mais estudos epidemiológicos, especialmente em países de baixa e média renda”2. Assim, o programa de abordagem com monitoramento escalonado em AVC (Steps), lançado pela OMS em 2004, dentro da campanha “Iniciativa Global de AVC”, é uma tentativa de estimular novas pesquisas de base populacional, cujos resultados permitam a aplicação dos recursos de um modo mais eficiente2.
“AVC no Brasil: uma doença negligenciada”. Esse foi o provocativo título de um estudo publicado por Lotufo27, que utilizou dados do Sistema de Informação e Estatística da OMS para comparar a mortalidade oficial entre nove países da América Central e do Sul. Esse autor mostrou que, para ambos os sexos, mas principalmente para mulheres, o Brasil detinha as maiores taxas28. Outros estudos corroboram esses dados, posicionando o AVC como a primeira causa de óbito no Brasil29.
Em 2004, as doenças circulatórias representaram a terceira causa de internação hospitalar no sistema público de saúde, respondendo por cerca de 10% do total30. Em 2005, estima-se que o Brasil tenha perdido US$ 2,7 bilhões da renda nacional por doença cardíaca, AVC e diabetes31. Segundo a última estatística oficial do Ministério da Saúde (DataSUS, 2007), a doença cerebrovascular foi a responsável por 8,9% de todos os óbitos ocorridos no país em 2004 (90.930 entre as 1.024.073 mortes).
Apesar do imenso impacto socioeconômico, é pequena a preocupação com o controle dos fatores de risco, organização da assistência médica e recursos para pesquisa no campo das doenças cerebrovasculares27. Em uma recente revisão dos estudos epidemiológicos de base populacional publicados na América Latina, somente quatro estudos brasileiros foram identificados, conduzidos em três diferentes cidades do país32.
A experiência de países de alta renda indica que intervenções sustentadas na prevenção primária e secundária da doença aterosclerótica podem reduzir em até 4% a mortalidade média anual em pessoas de 60 a 69 anos, e em até 3% a mortalidade média anual em pessoas de 70 a 79 anos. Essas faixas etárias foram as que mais evidenciaram queda na mortalidade em vários países na década de 1990, após intervenções contínuas4,7,33. Além disso, é particularmente desafiador observar que, além das medidas de intervenção na prevenção primária e secundária, a efetiva implementação dos resultados de vários ensaios clínicos randomizados, como, por exemplo, o uso de drogas trombolíticas e de novas drogas antitrombóticas, a anticoagulação em pacientes com fibrilação atrial crônica, a disseminação de unidades de AVC, e a endarterectomia carotídea possam reduzir em até 80% a incidência de AVC34.
Entretanto, apesar de efetivos avanços na prevenção primária e secundária da doença aterosclerótica, da assistência hospitalar, das mudanças sociais, econômicas e demográficas das ultimas décadas, não sabemos no Brasil qual o real impacto de todos esses aspectos nas tendências históricas das taxas de morbi-mortalidade por AVC e no estado funcional dos pacientes.
Norberto Luiz Cabral é doutor em epidemiologia pela Faculdade de Medicina da USP, neurologista pela Academia Brasileira de Neurologia, e professor titular do curso de medicina da Univille, em Joinville (SC).
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