Em Goiânia (Goiás) funciona, há 30 anos, um
ambulatório referência em fitoterapia e outras práticas medicinais alternativas
e complementares no Brasil. O Centro de Especialidades em Práticas Integrativas
e Complementares (Cremic) permite, por exemplo, tratar a artrite reumatoide com
plantas colhidas no horto medicinal do local.
O centro, que recebe cerca
de 200 pacientes por dia, dispõe de uma equipe multidisciplinar: médico,
enfermeiro, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, assistente social, farmacêutico,
terapeuta ocupacional, psicólogo, nutricionista, técnico de enfermagem e
engenheiro agrônomo. Além de fitoterapia, homeopatia e acupuntura, tem outras
práticas terapêuticas chinesas, como maxobustão e ventosaterapia, e indianas,
como ayurveda e yoga.
O diretor
técnico do Cremic, Danilo Maciel Carneiro, afirma que o centro é o único com esse
molde no Sistema Único de Saúde (SUS). “Somos
considerados pioneiros na inclusão dessas práticas, que antigamente eram
chamadas de não alopáticas, posteriormente de alternativas e, hoje, integrativas
na saúde pública”, relata. A medicina
integrativa aborda todas as práticas terapêuticas: tradicional, complementar e
alternativa.
Do conhecimento popular ao científico
As plantas
sempre foram usadas para o tratamento de doenças. Os
primeiros registros baseados no conhecimento tradicional datam de quase cinco mil anos, na China.
Entre
os diversos tipos de medicamentos existentes, há aqueles obtidos exclusivamente
com o uso de ativos vegetais, extraídos das folhas, caules, raízes, flores e
sementes, os denominados fitoterápicos. Eles podem ser encontrados na forma de comprimidos,
pomadas, géis, cremes, xaropes, tinturas, extratos e soluções.
Seus
benefícios são variados, tratando, por exemplo, doenças infecciosas e
alérgicas. “Observa-se a utilização de plantas para males crônicos como dores
reumáticas. Porém, existem diversos produtos para dificuldades
gastrointestinais e vias respiratórias”, explica Mary Ann Foglio,
docente em farmacognosia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp, que
compõe o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas
(CPQBA).
O
coordenador da Comissão Assessora de Plantas Medicinais e Fitoterápicos do Conselho
Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, Luis Carlos Marques, afirma: “Há
produtos que combatem osteoartrose, ansiedade, depressão, problemas hepáticos e
outras doenças. Certamente, porém, os fitoterápicos são mais suaves que os
sintéticos, o que nos leva a recomendá-los para determinados casos, reservando
os sintéticos, mais potentes, (e também com maiores riscos) para outros”.
Embora
haja benefícios, como todo medicamento, o fitoterápico deve ser utilizado com
orientação médica. É errado pensar que o que é natural não faz mal. Quem nunca
ouviu falar que a comigo-ninguém-pode ou
a copo de leite são plantas tóxicas?
“Como
nem sempre é possível determinar com precisão quais os componentes ativos e os
tóxicos numa espécie, se a dose terapêutica fica muito próxima da dose tóxica,
o produto é retirado de circulação”, explica Foglio. Segundo ela, um exemplo são
os digitálicos, medicamentos para insuficiência cardíaca, mas que
frequentemente causam efeitos adversos devido à toxicidade.
A fitoterapia e a legislação
A
inclusão da fitoterapia no sistema de saúde se dá antes da criação do SUS. Na
década de 1980, políticas, programas, resoluções, portarias e relatórios sobre
a temática já apareciam. Em 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
responsável por regulamentar todos os medicamentos, aprovou resoluções que
culminaram na normatização do registro dos fitoterápicos, prezando pela qualidade,
segurança e eficácia.
Em
2006, com a criação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
no SUS (PNPIC), foi proposta a inclusão de diversas opções terapêuticas, como a
fitoterapia. No mesmo ano, foi aprovada a Política Nacional de Plantas
Medicinais e Fitoterápicos, objetivando “garantir à população brasileira o
acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos,
promovendo o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia
produtiva e da indústria nacional”.
As
diretrizes da política foram lançadas em 2008, no Programa Nacional de Plantas
Medicinais e Fitoterápicos, buscando: promoção do uso racional de plantas
medicinais e fitoterápicos, inclusão das plantas medicinais e fitoterápicos na
lista de medicamentos da “Farmácia Popular”, implementação da Política Nacional
de Plantas Medicinais e Fitoterápicos no âmbito do SUS, atualização permanente
da Relação Nacional de Fitoterápicos (Rename-Fito) e a Relação Nacional de
Plantas Medicinais, e a criação e implementação do Formulário Nacional de
Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Em 2016, ao completar dez anos da implantação
da política, foi lançado o documento que
reúne a política e o programa.
O artigo “A política nacional de plantas
medicinais e fitoterápicos: construção, perspectivas e desafios”, publicado na Physis - Revista de Saúde Coletiva, informa que “a implementação da
fitoterapia no SUS representa, além da incorporação de mais uma terapêutica ao
arsenal de possibilidades de tratamento à disposição dos profissionais de
saúde, o resgate de uma prática milenar, onde se imbricam o conhecimento
científico e o conhecimento popular e seus diferentes entendimentos sobre o
adoecimento e as formas de tratá-lo.”
Marques, do Conselho Regional de Farmácia, estima que, dos 5570 municípios
brasileiros, cerca de 200 possuam instalados os programas de fitoterapia – o
Ministério da Saúde não divulga os números. Segundo ele, há cerca de 400
medicamentos fitoterápicos registrados e comercializados no Brasil, a maioria
feita com plantas importadas (como ginkgo biloba), exóticas aclimatadas no país
(alcachofra) ou nacionais (barbatimão).
Ao todo, 12 plantas foram selecionadas para receber financiamento
público em licitações, e incluídas no SUS como medicamentos. Eles estão
especificados na Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais (Rename) de 2014, produzido pelo Ministério da Saúde, e
atualizado em 2015. As plantas listadas são: babosa,
alcachofra, isoflavona-de-soja, garra-do-diabo, unha de gato, espinheira-santa, hortelã, guaco, plantago, cáscara-sagrada, salgueiro e aroeira-da-praia.
"Se uma prefeitura quiser comprar, por exemplo,
espinheira-santa, pode pedir recursos do SUS. Mas, se quiser comprar e oferecer
valeriana (que não está na lista), tem que fazê-lo com recursos próprios”,
destaca Marques.
Potencial
pouco explorado
O
Brasil detém a maior biodiversidade do mundo e das espécies vegetais. Embora
com saberes tradicionais valiosos e numerosos, poucos são os estudos e
informações sobre as plantas medicinais brasileiras. Logo, suas potencialidades
estão longe de findarem. Quais espécies usar? Como preparar o medicamento? Quantas
doses administrar?
A relação entre o saber popular e científico pode ajudar a
resolver as questões. “Grande parte das pesquisas em plantas medicinais são
fundamentadas no conhecimento popular, o que chamamos de pesquisa etnobotânica,
que trabalha em conjunto com a etno-farmacologia”, diz a pós-doutoranda pela
Faculdade de Farmácia da Unicamp, Michelle Pedroza Jorge, professora no curso
de farmácia da Faculdade de Jaguariúna.
Sob a coordenação de Foglio e outros pesquisadores, Jorge
desenvolve há 12 anos
estudos no CPQBA com a espécie Arrabidaea
chica, conhecida como Pariri. A planta, além de tingir a pele, também era
utilizada pelos índios para o tratamento de feridas devido às propriedades cicatrizantes
e anti-ulcerogênicas. “Estamos na fase clínica 1 e 2 do estudo, para verificar
a eficácia no tratamento da mucosite oral (efeito colateral da radio e quimioterapia)
em pacientes com câncer de cabeça e pescoço do Hospital de Clínicas da
Unicamp”.
Este é um exemplo de que o processo certamente não é simples, mas o resultado tem
potencial. “A inclusão das plantas medicinais no SUS auxiliará no
tratamento de diversas doenças, além de resgatar o respeito da população pela
natureza”, indica Jorge.
Mesmo considerando o baixo custo dos fitoterápicos,
a grande quantidade de matéria-prima, a tradição do seu uso e a consonância com
o PNPIC, Danilo Carneiro, do Cremic, avalia que a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos
é pouco expressiva. “Esses programas são ainda tímidos, pequenos, carecendo de
apoio do Ministério da Saúde”, analisa.
Uma das
medidas do governo foi instituir no SUS, em 2010, a Farmácia Viva, com a finalidade de realizar “o cultivo, a coleta, o processamento,
o armazenamento de plantas medicinais, a manipulação e a dispensação de
preparações magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos”. Uma
Farmácia Viva que se destaca e nasceu antes da medida fica em Fortaleza, Ceará.
Porém, elas permanecem escassas. Também
é pequeno o número de profissionais de saúde que dominam a fitoterapia. Uma das
capacitações oferecida pelo SUS foi um curso a distância em 2012, com a
participação de 300 médicos brasileiros.
Outro incentivo é quanto aos cursos
superiores que contemplem a fitoterapia e que invistam em pesquisa. O ambiente
acadêmico possibilita o levantamento de informações e constrói novos
conhecimentos científicos. “Com certeza temos mais de 200 teses esperando
aprovação para serem utilizadas na saúde pública”, afirma Carneiro.
O artigo “As monografias sobre plantas medicinais”, publicado na Revista Brasileira
de Farmacognosia,
indica que as monografias sobre plantas medicinais surgiram na Alemanha, no
início do século XIX, país que hoje lidera a produção de fitoterápicos no
mundo.
A
relação entre indústria e pesquisa
Embora
muitos produtos naturais tragam benefícios, informações imprecisas sobre as
plantas medicinais e os fitoterápicos prejudicam o setor. “Devido à falta de tradição de uso de
medicamentos fitoterápicos no Brasil, aliado a muitas empresas de má-fé que
vendem produtos sem nenhum controle de qualidade, criou-se muita preocupação relacionada
aos benefícios e riscos que os mesmos podem trazer”, atesta Foglio.
A pesquisadora ressalta que seu grupo de pesquisa
tem produzido dados capazes de colocar produtos fitoterápicos no mercado, mas ressalva:
“Para tanto, necessitamos de empresas dispostas a trabalhar com eles”, pois há pequena participação da indústria em
pesquisa e desenvolvimento na área no Brasil. Visto o tamanho da flora
do país, era de se esperar uma
expressiva farmacopeia brasileira.
Antes da Lei 13.123/2015, que dispõe sobre o
acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional, havia muita
dificuldade para as empresas trabalharem com produtos de plantas nativas, pois
era exigida autorização prévia de acesso ao patrimônio genético. “Empresas como
Natura e Aché foram multadas, em valores altíssimos, devido às discussões do
que era pesquisa e bioprospecção. Com a nova lei, existe a expectativa que se
estabeleça uma parceria mais profícua entre universidades e empresas para o
desenvolvimento de produtos de origem natural”, analisa Foglio.
O processo de industrialização formula composição
padronizada, comprova os efeitos terapêuticos e evita contaminações. A produção
de um novo
medicamento fitoterápico, obrigatoriamente, deve atender às normas da Anvisa. “Pode
levar muitos anos desde a descoberta de um produto até seu desenvolvimento
que possibilite a produção padronizada, considerando a grande variabilidade de
componentes que uma espécie vegetal poderá apresentar conforme seu fenótipo”,
revela a pesquisadora, que atua na identificação e isolamento de princípios
ativos.
Há inúmeras barreiras para a produção de fitoterápicos, como a falta de
elos da cadeia de desenvolvimento, a burocracia com as patentes, dentre outros.
“Anualmente são lançados um ou dois, feitos geralmente de plantas exóticas”,
informa Marques. O laboratório Aché se destaca, com equipe especializada em
fitoterápicos. Entre as novidades no mercado, destacam-se agente cicatrizante
feito com barbatimão (Fitoscar, da Apsen); tratamento da osteoartrite e artrite
reumatoide feito com açafrão-da-terra (Motore, da Aché); e distúrbios de memória, feito com bacopá (Cognitus, da Sanofi).
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