REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Brasília e os dois labirintos - Carlos Vogt
Reportagens
A Brasília utópica e seu lado B
Márcio Derbli
Motivações e consequências sociais das reformas urbanas no Rio
Danilo Albergaria
Cidade planejada, cidade-global, cidade-modelo: qual é a sua capital?
Alessandra Pancetti
São Paulo: espaço urbano em constante transformação
Cristiane Paião
As características regionais e a identidade nacional brasileira
Carolina Octaviano
Artigos
Urbano demasiado urbano
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Cidades sustentáveis? Desafios e oportunidades
Carlos Leite
Brasília das ideias, projetos, usos e desusos
José Leme Galvão Junior
A cidade e a negação do outro
Lucas Melgaço
Transformações urbanas contemporâneas
Nadia Somekh
Resenha
As ruínas de Detroit
Por Rafael Evangelista
Entrevista
José Guilherme Cantor Magnani
Entrevistado por Carolina Simas
Poema
Casuística
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Resenhas
As ruínas de Detroit
Deslocalização industrial ajuda a explicar como a capital do automóvel hoje ostenta desemprego pior que o brasileiro e prédios de cidade-fantasma
Por Rafael Evangelista
09/05/2010
Um de seus apelidos é Motor Town (cidade do motor), que levou à corruptela motown, dando nome à gravadora que trouxe a música negra estadunidense aos ouvidos do mundo. É em Detroit que se localizam as principais operações das Big Three, as hoje convalescentes Ford, GM e Chrysler, mas que nos anos 50, no ápice da indústria do automóvel dos EUA, fizeram da cidade a quarta maior daquele país, com 1,8 milhão de habitantes apenas no município propriamente dito. Hoje, no entanto, esse número caiu para surpreendentes pouco mais de 900 mil e a cidade tem uma taxa de desemprego de quase 30% – que chegaria a 50%, de acordo com fontes não oficiais.

As fotos a seguir retratam as consequências de dois processos simultâneos. O primeiro, datado da década de 60, reflete o abandono do centro da cidade pela classe média. Acuada pelo aumento da violência, por sua vez derivada de um processo agudo de segregação racial e da consequente reação a isso, a população de melhores condições econômicas se dirigiu ao subúrbio, enquanto mantiveram seus empregos na região central. Porém, duas décadas mais tarde começa o declínio da indústria automobilística e, em decorrência desse processo, a perda de boa parte dos empregos localizados em sua capital. As imagens mostram prédios suntuosos, completamente abandonados e arruinados pela decadência da atividade, que é o principal combustível da cidade. 


United Artists Theater
 

Melting clock

Bank Vault



Ballroom, Lee Plaza Hotel

Outras imagens podem ser vistas no website dos fotógrafos Yves Marchand e Romain Meffre, especializados em retratar ruínas industriais. 

Contudo, uma visão mais concreta – talvez por procurar menos o belo na tragédia e deter-se no irônico – dos efeitos da decadência industrial está em um documentário de pouco mais de vinte anos atrás. Roger & Eu, de Michael Moore, traz todas as marcas do cinema que o notabilizaria, tanto positivamente como negativamente. Porém, talvez por ser seu primeiro trabalho e também o mais pessoal, Roger & Eu é mais contido e por isso mais explicativo.

O cenário não é propriamente Detroit, onde fica a sede da GM, mas Flint, a cidade onde a GM nasceu e que fica a uma hora de carro dos escritórios.

No final da década de 80, Roger Smith, o então presidente da companhia, decide fechar diversas plantas da GM e levá-las a outros países, com trabalhadores recebendo salários menores. A ação seria uma resposta à forte entrada da concorrência japonesa no mercado estadunidense, derivada das primeiras medidas de abertura neoliberal de Ronald Reagan. A competição, que em tese deveria levar a uma melhoria da produtividade, levou apenas a uma diminuição dos salários e a um aumento da lucratividade para os acionistas.

O efeito na cidade é desastroso. Quando da realização do filme, as demissões esperadas chegavam a atingir trinta mil funcionários. Hoje, somando-se os efeitos da última crise, o número chegaria a oitenta mil. Entre a década de setenta e oitenta a população caiu 20% e, nas duas décadas seguintes, vem caindo a um ritmo de 10%.

Moore, ao mesmo tempo em que insistentemente tenta entrevistar o presidente da companhia, acompanha o processo de despejo de diversas famílias, desempregadas e sem condições de pagarem seus aluguéis. Mostra ainda algumas patéticas tentativas de reerguer a cidade, como quando o poder público injeta grandes somas de dinheiro em isenções fiscais para hotéis que vão à falência poucos anos depois.

Um dos pontos fortes do filme é o sarcasmo com que o diretor retrata a insistência dos mais ricos em negarem a decadência do município e o papel da deslocalização do trabalho no processo. Velhinhas jogando golfe em um requintado clube de campo falam da preguiça dos desempregados em buscarem novos trabalhos. Celebridades chamadas à cidade – algumas patrocinadas pela GM – repetem o mantra da “crise como nova oportunidade”, do “nunca desistir” e culpabilizam os indivíduos pelo fracasso em lugar de olharem para o sistema. O porta-voz da GM afirma peremptoriamente a ausência de obrigação moral ou compromisso da empresa com a localidade que a abrigou desde o seu nascimento.

Vinte anos depois, a ironia está em perceber que foi esse mesmo processo de abertura econômica desenfreada e falta de compromisso com o local que levaram as antes inabaláveis indústrias automobilísticas a pedirem auxílio ao Estado. Ajudaram a enfraquecer seu mercado interno ao fazerem o possível para jogarem a margem de lucro no limite. Acabaram reféns de uma ciranda financeira artificial, que ruiu como um castelo de cartas.