Com a morte de seu pai, Alfred Russel Wallace, após mudar-se para Neath, em Gales, teve a oportunidade de ler, provavelmente ainda em 1845, Vestiges of the natural history of creation1, publicado anonimamente por Robert Chambers no ano anterior. O livro advogava uma explicação natural para a origem do sistema solar e dos seres vivos. Essa leitura parece ter sido decisiva para convencer Wallace sobre a teoria da evolução, então chamada teoria da transmutação. Wallace, em 1845, escreveu a Henry Bates: “I do not consider it (as hipóteses em Vestiges) a hasty generalization, but rather an ingenious hypothesis strongly supported by some striking facts and analogies”2. As viagens de Wallace, ao longo das décadas seguintes por diferentes partes do mundo, iniciando-se em 1848, portanto, apenas aprofundaram uma visão sobre evolução que ele já tinha desde meados da década de 1840.
Alfred Russel Wallace (1889), em foto no frontispício de Darwinism. An exposition of the theory of natural selection with some of its aplications. McMillan, Londres.
Treze anos depois da carta de Wallace a Bates, em fevereiro de 1858, Wallace, que estava nas Ilhas Molucas – diz Arnold Brackman3 – envia a Charles Robert Darwin pelo correio um envelope com cerca de vinte páginas, com suas ideias sobre a evolução – o trabalho que seria apresentado em julho daquele ano em uma reunião da Linnaean Society of London. Nesse mesmo primeiro semestre de 1858, depois da chegada da correspondência de Wallace, Darwin escreveu a Hooker dizendo que tinha finalmente encontrado a pedra angular que faltava para sua teoria. A despeito dos estudos de Darwin sobre a questão das diferenças entre espécies de locais próximos (como Galápagos) e sobre a variação dentro de espécies (como em seus estudos sobre pombos), Brackman indica que as idéias principais da teoria da evolução são de Wallace, não de Darwin. Na verdade, o conceito de conexão material entre espécies (depois chamada por Haeckel de filogenia). Mesmo geneticistas modernos, como Jan Klein, comentando sobre o livro de Brackman, dizem, “Wallace is not a forerunner of Darwin, as he is sometimes presented, nor is he a minor contributor of the theory of evolution: he is no less a giant than Darwin himself”4.
Em estudos de filogenias construídas a partir de dados moleculares, há um efeito chamado long branch attraction, às vezes traduzido como “atração do ramo longo”. De modo geral, aparece quando, de um grupo muito diversificado de espécies (por exemplo, uma ordem inteira de insetos), se toma uma única espécie que, comparada às de outros grupos dos quais houve boa amostragem, parece extremamente distinta. A diferença dessa espécie em relação a todas as demais amostradas é tamanha que ela provoca uma distorção indesejável em todas as análises realizadas. A explicação usual é que essa espécie é muito mais modificada ou divergente que as demais. Essa é uma visão ingênua. De modo geral, é a amostragem de uma única espécie isolada de um grupo grande que a faz parecer tão distinta. O acréscimo de outras espécies do mesmo grupo acaba por diluir as diferenças, eliminar a distorção indesejável na análise e mostrar que ela é apenas uma entre as demais, com algumas características próprias, por certo.
O mesmo se passa com nossas considerações históricas no desenvolvimento da ciência. O caso de Darwin é apenas um exemplo. Darwin fez aportes importantes para a compreensão do processo evolutivo. Mas é a ignorância sobre os outros pesquisadores de sua época e da cultura científica de seu tempo que acabam por conferir a Darwin uma aura desproporcional. De fato, como sugere Brackman, muitas das idéias que aparecem em seus primeiros livros sequer são suas, mas parecem ter sido compulsoriamente emprestadas de Wallace. Nesse sentido, a bipolaridade entre as ideias de evolução de Lamarck e de Darwin na maioria absoluta dos livros-texto é profundamente equivocada, lastimável e anti-educativa.
De fato, vários problemas subjacentes básicos à construção da teoria da evolução foram tratados extensamente antes de Darwin – e mesmo antes de Wallace –, colocando a questão da evolução biológica claramente à frente de ambos. Um deles é a existência de uma hierarquia de semelhanças entre todos os organismos – às vezes chamada de padrão –, que permite a construção de classificações biológicas ou de “árvores”. É interessante que a compreensão da existência de uma ordem ou um padrão taxonômico na natureza antecedeu a compreensão da existência do processo evolutivo em 21 séculos. Outra questão é a da comparabilidade entre partes de espécies distintas, que trata do problema de haver as mesmas estruturas – por exemplo, “crânio”, “fêmur”, “folha”, “núcleo”, “coração”, “hemácia” ou “multicelularidade” – em espécies muito diferentes umas das outras. Um outro problema é o da variação intraespecífica e dos mecanismos de hereditariedade. Um quarto problema é o das semelhanças na embriogênese de diferentes espécies, com paralelos evidentes com a filogênese. Um quinto é o dos padrões repetidos de disjunção geográfica na distribuição de animais e plantas. Finalmente, é necessário considerar a questão da paleontologia, com sequências de fósseis em estratos sucessivos, em grande medida também paralela à sequência dos organismos na filogenia.
Esses problemas foram gradualmente lapidados por um enorme número de filósofos, naturalistas e médicos. Apenas para citar alguns dos pensadores mais importantes no período pré-evolutivo, pode-se destacar Pierre Belon e Albrecht Dürer, no século XVI, William Harvey, René Descartes e Johann Friedrich Gmelin, no século XVII, o próprio Lineu, Petrus Camper, Michel Adamson, Charles Bonnet, Johann Wolfgang Goethe, Carl Friedrich Kilmeyer, Johann Hermann Ferdinand von Autenrieth, Pierre Louis Moreau de Maupertuis, Didier Diderot, Buffon, Alexandre Brogniart, William Lawrence e Erasmus Darwin, no século XVIII, Lorenz Oken, Friedrich Tiedemann, Johann Friedrich Meckel, Carl Gustav Carus, Geoffroy de Saint Hillaire, George Frederic Cuvier, James Cowles Prichard, William Charles Wells, Augustin Pyramus de Candolle, Charles Lyell, Jean Louis Rodolphe Agassiz, Patrick Matthew, Heinrich Georg Bronn, John Dalton Hooker, Richard Owen e Hewett Cottrell Watson, além do linguista August Schleicher. Nelson Papavero5 lista 33 autores anteriores a Darwin tratando claramente de teorias evolutivas.
Esqueleto humano, com a relação de ossos com os das aves (de Pierre Belon, 1555, Histoire de la nature des Oyseaux, apud Papavero & Llorente-Bousquets6).
As contribuições desses autores não foram superficiais ou de problemas triviais. Talvez a noção mais fundamental seja a de comparabilidade entre partes de organismos diferentes, iniciada por Aristóteles – o problema da homologia. O estudo detalhado da relação entre o conjunto das partes dos animais (incluindo a espécie humana), por exemplo, mostra um nível de semelhança e em um nível de detalhe impressionante, como expressa na famosa ilustração de Belon. Tal grau de semelhança implica, inevitavelmente, a necessidade de alguma explicação. Na visão aristotélica e lineana, as homologias eram resultado de essências compartilhadas; na visão do idealismo morfológico alemão de Goethe e de Owen, de arquétipos; na visão dos mecanicistas do século XVIII, que procuravam levar o raciocínio cartesiano para a biologia, de uma explicação natural. A ideia de uma conexão histórica entre espécies, explicitada por Wallace, resolve esse problema.
A hierarquia de semelhanças representada na forma de árvore talvez tenha se iniciada em Buffon. No século seguinte, no entanto, George Bronn, depois de contribuições de Agassiz e Schleicher, começa a representar a hierarquia das classificações como árvores, conectando entidades que estão nas pontas. De fato, um diagrama conectando populações e espécies é a única ilustração do livro Origem das espécies, de Darwin.
Uma representação de relação de proximidade entre espécies na forma de uma árvore (de Heinrich G. Bronn, 1858, Untersuchungen über der Entwicklungs-Gesetze..., apud Williams & Ebach7).
As ideias de Maupertuis, na metade do século XVIII, estendem-se além da questão do transformismo – sendo, talvez, o primeiro, mais de cinquenta anos antes de Lamarck, a formular uma teoria de modificação das espécies. Sua preocupação com a questão da variação intraespecífica o levou a formular uma teoria sobre a hereditariedade e a ideia de modificações nas espécies (“câmbios fortuitos” e “erros de cópia”). Ele diz, explicitamente, que, se cultivados, os corvos brancos, que várias vezes encontrou, chegariam a formar espécies. De fato, além de ser um modelo não-fixista, essa idéia pressupõe a conexão entre espécies como explicação para sua origem, diferentemente do modelo lamarckista, em que as espécies, elas mesmas, percorrem a scala naturae, ou escada da natureza – antigo conceito de um caminho linear das formas mais simples às mais complexas.
Mesmo a ideia de sobrevivência diferencial está colocada de modo claro nas teorias de Maupertuis. A ideia de seleção natural também aparece nos escritos de Wells, que o próprio Darwin supõe ser o primeiro a propor a ideia. Darwin igualmente reconhece que Patrick Matthew tratou muitos anos antes dele do conceito de seleção natural. Alguns autores atribuem a Lawrence o conceito de seleção sexual (considerada uma grande contribuição de Darwin), que seria responsável por moldar as diferenças encontradas entre machos e fêmeas.
As discussões desses autores, sobre esse emaranhado de assuntos conexos, geraram uma enorme base de conceitos, problemas, conflitos e evidências, sobre os quais se ocuparam Wallace e Darwin. Assim, onde está a originalidade? Se a maior contribuição de Darwin estiver na seleção natural e na ideia de filogênese, ela não é muita. A originalidade de Darwin, assim, talvez esteja na maneira de costurar em uma teoria “limpa” (no sentido de não misturar em sua argumentação elementos que lhe trouxessem mais problemas que soluções, como a pangênese e alguns aspectos do idealismo morfológico etc.). É bastante.
Por outro lado, Darwin também não resolveu, como parece sugerido em muitos textos leigos, a maior parte dos problemas de uma teoria evolutiva, que apenas gradualmente foram sendo polidos. Darwin propôs um modelo em que as espécies se conectam historicamente, mas não propôs um método que permitisse inferir como as espécies atuais se conectaram no passado. De fato, a aplicação da ideia de uma filogenia à diversidade de organismos como um todo foi feita por Fritz Müller, que morou no Brasil, depois utilizada por Ernst Haeckel – não por Darwin. O próprio termo filogenia deve-se a Haeckel. Fritz Müller também detalhou primeiramente, depois seguido por Haeckel, a noção de correlação entre as etapas do desenvolvimento ontogenético e a sequência filogenética. Uma associação evolutiva entre os conceitos de homologia e evolução aparece com Haeckel, Adolf Naef e depois aprofundada com Adolf Remane; o compartilhamento de caracteres modificados em uma filogenia começa a surgir com Konrad Lorenz, que também estudou o comportamento sob uma perspectiva evolutiva. Um método filogenético foi construído, a partir de diversas contribuições anteriores, por Willi Hennig. As bases materiais da evolução, com suas raízes em Gregor Mendel, ganham fundamento ontológico com Hugo de Vries, Carl Correns, Erich von Tschermak e Thomas Hunt Morgan. De fato, a ideia genérica da seleção natural como força direcionadora da evolução, transformada em modelos matemáticos nas décadas de 1920 e 1930, com Sewall Wright, John Burdon Sanderson Haldane e Ronald Aylmer Fischer, foi fortemente contestada pelos modelos neutralistas e pelas bases de dados moleculares disponíveis a partir da década de 1960, por Motoo Kimura, mostrando que a deriva genética tem uma importância completamente fora das previsões dos modelos de seleção.
O que vemos nesse quadro? Vemos uma complexidade muito maior do que a que transparece na mídia científica ou na mídia sobre a ciência, um gênio isolado em seu tempo, cujos alcances reverberaram em direção ao futuro. Darwin foi precedido, estava cercado e foi sucedido de pesquisadores dedicados ao mesmo assunto, que adiantaram muitas de suas ideias. E vários dos aspectos da teoria da evolução da maneira como ele propôs – em especial a teoria da seleção natural – hoje se mostram deficientes.
Algo de errado em Darwin? Não. Quase todas as grandes contribuições da ciência foram construídas assim. A questão é midiática: a história da ciência é complexa e difícil de ser compreendida internamente; e é técnica, portanto muito difícil de ser compreendida externamente à própria ciência. Adicione-se o interesse na mitificação do gênio e na diminuição do comum, além do pouco interesse realmente nas questões técnicas. Com frequência, mesmo na ciência, é mais conveniente separar Darwin do seu contexto, criar um caso de long branch attraction e ter uma celebridade a mais.
Dalton de Souza Amorim é professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP).
Referências:
1 Chambers, R. 1884.Vestiges of the natural history of creation. 12a edição. W. & R. Chambers, London and Eddinburgh Ώª Edição, 1844, anônima].
2 Shermer, M. 2002. In Darwin 's shadow. Oxford University Press, Oxford. “Eu não considero a teoria transformista uma generalização ligeira, mas uma teoria engenhosa fortemente suportada por fatos evidentes e analogias” (p. 54).
3 Brackman, A.C. 1980. A delicate arrangement: the strange case of Charles Darwin and Alfred Russel Wallace. Times Book, New York.
4 Klein, J. 1981. An indelicate unveiling of a delicate arrangement. Immunogenetics 14: 553-555. “Wallace não é um predecessor de Darwin, como ele às vezes é apresentado, nem tem uma contribuição menor à teoria da evolução: ele não é um gigante menor que o próprio Darwin”.
5 Papavero, N. & J. Llorente-Bousquets. 1994. Principia taxonómica. Una introducción a los fundamentos lógicos, filosóficos y metodológicos de las escuelas de taxonomía biológica. Volumen IV. El Sistema Natural y otros sistemas, reglas, mapas de afinidades y el advenimiento del tiempo en las clasificaciones: Buffon, Adanson, Maupertuis, Lamarck y Cuvier. Universidade Nacional Autónoma de México, México.
6 Papavero, N. & J. Llorente-Bousquets. 1995. Principia taxonómica. Una introducción a los fundamentos lógicos, filosóficos y metodológicos de las escuelas de taxonomía biológica. Volumen VI. Analogía y conceptos relacionados en el periodo pre-evolutivo. Universidade Nacional Autónoma de México, México.
7 Williams, D. & M. Ebach. 2008. Foundations of systematics and biogeography. Springer, New York.
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