Macacos construtores de ferramentas e aprendizes
Na Tanzânia, chimpanzés usam galhos para “pescar” cupins. Em Bornéu, orangotangos utilizam folhas como luvas para pegar frutas com espinhos ou como guardanapos. No Brasil, macacos-prego lançam mão de pedras para quebrar frutas secas. Estes são apenas três exemplos de como os primatas desenvolvem ferramentas específicas e adaptadas à região em que vivem, assim como nós. Ao contrário da proposta de Kenneth Oakley, autor do livro Man, the toolmaker, há tempos já não somos considerados os únicos capazes de confeccionar ferramentas. Os estudos atuais sobre primatas e ferramentas têm foco na transmissão das habilidades dentro da mesma geração e para as gerações futuras, em como ocorre o aprendizado dentro das hierarquias sociais dos grupos e nas restrições ou ganhos que a cultura local impõe a esse processo.
O conceito de cultura possui várias definições. Para alguns antropólogos, a mediação lingüística é o que a determina, tornando-a exclusivamente humana. Nas ciências biológicas, no entanto, um modelo mais abrangente é adotado: a cultura é um sistema de transmissão de comportamentos que não se dá através da herança genética, mas sim do aprendizado social. Os estudos mais recentes mostram que os chimpanzés possuem muitas variantes comportamentais, dependendo da localização geográfica em que se encontram. Para ser considerada uma variante cultural, um comportamento deve ser observado como costumeiro ou habitual em pelo menos uma região e ser ausente em outra ecologicamente semelhante.
Elizabeth Vinson Lonsdorf, pesquisadora da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, conduziu um estudo que mostra como se dá o aprendizado da “pesca” de cupins pelos chimpanzés da Tanzânia. Para cumprir a tarefa, são necessárias quatro habilidades: (1) identificar o buraco; (2) selecionar e modificar o galho usado como ferramenta – ele deve ser longo, fino e flexível; (3) inserir o galho no buraco; e (4) removê-lo lentamente para não derrubar os insetos. Os resultados da pesquisa mostraram que os fatores determinantes para o sucesso dos filhotes são semelhantes aos que condicionam qualquer aprendizado humano: a proficiência da mãe (a professora), o tempo de exposição (filhotes cujas mães passam mais tempo na pesca) e um filhote com uma mãe mais sociável, que terá mais modelos (portanto mais chances de aprender).
Um outro estudo, de Andrew Whiten, da Universidade de St. Andrews, na Inglaterra, procurou entender como se dá o aprendizado de uma habilidade dentro do mesmo grupo social e como a escolha da comunidade determina a habilidade individual. Para testar a transmissão de conhecimentos de um indivíduo para outro foram escolhidos dois grupos de chimpanzés habitantes do Centro de Primatas de Yerkes, na Emory University, em Atlanta, nos Estados Unidos. De cada um, foi retirada uma fêmea influente e, separadamente, elas foram treinadas em laboratório para lidar com um pequeno labirinto de canos para obter comida. O quebra-cabeça possuía duas soluções, e cada fêmea aprendeu apenas uma delas.
A idéia era observar, após o treinamento, como se daria a transmissão dessas habilidades de um membro para o outro em ambiente semi-aberto, composto pelas ilhas em que os primatas vivem em Yerkes. De volta aos seus grupos originais, os outros membros do grupo observaram as duas fêmeas e, depois tiveram a possibilidade de interagir com o labirinto. Nos dois grupos, o aprendizado ocorreu rapidamente. Além disso, em ambos houve chimpanzés que descobriram a segunda solução do desafio. Mas, pouco tempo depois, aqueles bem-sucedidos nos dois modos de obter a comida abandonaram a segunda maneira e optaram pelo que a fêmea influente e o resto do grupo haviam escolhido. Para Whiten, essa é uma evidência de uma inclinação conformista, identificada em inúmeros estudos com humanos, que revela uma forte tendência do indivíduo para abrir mão de sua experiência pessoal e adotar as normas de sua comunidade, buscando identificação.
Os estudos no Brasil
A Sociedade Brasileira de Primatologia, com congressos bianuais, sempre focou seus esforços nas áreas de ecologia, preservação, reintrodução, genética e filologia. Por aqui, os estudos com primatas envolvendo o uso de ferramentas ainda são recentes. Na verdade, se restringem a um projeto, chamado Ethocebus, coordenado por Eduardo Ottoni, do Instituto de Psicologia da USP.
“Tudo surgiu meio por acaso”, afirma ele. “Nós íamos fazer um experimento com os macacos prego (Cebus apella) em laboratório, onde nós sabemos que eles são capazes de usar ferramentas para resolver problemas. Queríamos ver como aprendiam a lidar com uma vareta para extrair melado. Tudo teria parado por aí, se não fosse uma estagiária da Patrícia Izar (outra integrante do Ethocebus) descobrir uma população semi-livre no Parque Ecológico do Tiête quebrando coquinhos com pedras”, conta. Macaco prego prestes a quebrar um coquinho. Foto: Elisabetta Visalberghi
Isso mudou o rumo das pesquisas do grupo. Em janeiro de 2005, surgiu o projeto Ethocebus, sob a coordenação de Ottoni e a participação de Patrícia Izar, também da USP, Dorothy M. Fragaszy, da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, e Elisabetta M. Visalberghi, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Cognição em Roma, na Itália. O grupo enfrentou desconfiança da comunidade acadêmica, pois havia a suspeita de que os macacos poderiam ter aprendido estas habilidades com homens, já que todos haviam chegado ali após terem sido resgatados de atividades de contrabando.
“Nós tínhamos certeza de que essa não era a razão”, diz Ottoni, mesmo reconhecendo que os macacos-prego foram muito estudados nas áreas da Amazônia e Mata Atlântica e nunca foram feitos relatos de uso de ferramentas entre eles. Mas eis que Ottoni descobriu populações de macacos-prego na Serra da Capivara e na Fazenda Rio Branco, ambas na caatinga do Piauí. “O uso de ferramentas nesses lugares é comum”, relata.
Desde então, o projeto Ethocebus vem estudando esses sítios e publicando alguns resultados dessas observações. Segundo Ottoni, um fator primordial para que esses grupos usem ferramentas é a terrestrialidade. “Diferentemente da floresta densa, na caatinga, esses bichos passam mais tempo no chão, onde têm contato com pedras e coquinhos”, explica. Alguns pesquisadores, como Antônio Christian de Moura, da Universidade Federal da Paraíba, criticaram o estudo, argumentando que os macacos só usam ferramentas ali devido à escassez de alimento no ambiente. Entretanto, Ottoni refuta a idéia. “Isso não me convence, pois o primeiro lugar em que observamos isso foi no Parque do Tiête, onde eles são provisionados e, portanto, não há falta de comida”. Ele afirma que talvez, na história evolutiva desses bichos, a escassez de alimento tenha contribuído para que eles possuam hoje essa habilidade; porém, atualmente, ela está condicionada ao ambiente que eles ocupam – terrestre ou copa das árvores.
Tolerância social
Os estudos brasileiros também incluem a dinâmica social do aprendizado. Um fator fundamental para o sucesso na transmissão de habilidades é o que Ottoni chama de “tolerância social”. “Nós observamos que os indivíduos mais velhos contribuem com os mais novos, permitindo que eles assistam o processo de escolher o fruto, a pedra, a base de apoio para quebrar o coquinho etc. Sem essa tolerância, esses comportamentos não passariam de geração a geração”, avalia.
As brincadeiras entre os macacos-prego são muito freqüentes. Os primatas em geral possuem uma infância longa, o que para Ottoni é bom, pois há a possibilidade de desenvolvimento grande, embora isso tenha um custo alto, pois os pais têm que despender muitos cuidados com os filhotes. E outro fator que contribui para o aprendizado é a brincadeira. “Elas são uma forma de explorar o mundo e seu meio social de uma maneira não perigosa. Aprender sobre os objetos e o mundo físico”, afirma o pesquisador, citando os esconde-esconde e pega-pega como treinos seguros de caça e fuga, as lutas em que ninguém se machuca. “Além disto, acima de tudo, há o prazer, pois é uma atividade gratificante e reforçadora em si mesma”, completa.
O conceito de tolerância social é compartilhado por outros primatólogos, como o holandês Carel von Schaik, estudioso de orangotangos, que relaciona essa noção a “modelos sociais”. Um outro estudo em vias de ser publicado pelos pesquisadores do Ethocebus envolve interessantes observações sobre um grupo específico de macacos-prego, da serra da Capivara, que faz o uso de duas ferramentas simultaneamente, varetas e pedras. “Isto é muito raro, só foi observado nos grandes primatas, nos chimpanzés da África ocidental”, empolga-se Ottoni.
Entender a dinâmica social da transmissão dessas habilidades é o grande desafio para o pesquisador. “Todo o aprendizado envolve uma mistura de informações no ambiente, mas é na ação que o indivíduo aprende. No caso dos animais que vivem em sociedade, eles aprendem quais frutos podem ser comidos, mas o quanto um macaco aprende na observação ou não, este é o papel dos modelos sociais. Isto é cultura, essa via, paralela à genética, em que o aprendizado ocorre como fruto da interação social. Você não tem aprendizagem sem capacidade inata ou pré-disposição genética, e não tem nenhuma capacidade inata se manifestando sem depender do ambiente”, conclui Ottoni.
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