Em um primeiro olhar, os mundos artísticos e científicos parecem distintos e distantes. Entretanto, ao se debruçar sob a análise das infinitas combinações de sons criadas por um gênio como Johann Sebastian Bach, por exemplo, é possível perceber uma ponte sólida e resistente que une e funde os mundos da arte e da ciência. Quem percorre essa ponte não só escuta uma melodia, mas também consegue olhar para ela e ver as formas de onda e as equações matemáticas que a compõe.
“Ao ouvir algumas das obras canônicas dos compositores famosos, considero-os privilegiados por serem capazes de expressar ou criar emoções e imagens sonoras tão belas, algumas perpetuadas através dos séculos, que puderam ser transmitidas a outros através da arte da música. Ao mesmo tempo, ao estudar a história da ciência, considero não menos privilegiados alguns dos físicos e matemáticos mais importantes da história. A eles coube o prazer de descobrir leis e fenômenos naturais, nos deixando ferramentas poderosas para o entendimento dessa mesma natureza. É a perfeição dessas ferramentas e leis que nos permite olhar a música sob outra óptica, um prisma diferente, unindo os mundos maravilhosos da arte e da ciência”, disse o físico Carlos Alexandre Wuensche, pesquisador da Divisão de Astrofísica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e violonista, na conclusão de seu mini-curso “A física da música”.
A ligação da música com a matemática teve origem na antiga Grécia. O filósofo e matemático Pitágoras já sabia que as relações matemáticas eram a base das escalas musicais e teve como ponto de partida a percepção de que cordas mais curtas emitiam sons mais agudos. Ao criar um modelo ideal de harmonia do cosmos, Pitágoras sugere que o universo é harmônico como a música. Já a percepção de que a música poderia ser vista sob a ótica da física ocorreu com a criação da teoria ondulatória, estabelecida nos séculos XVII e XVIII, que foi sedimentada com a criação da análise do matemático francês Jean-Baptiste Fourier. Empinar uma pipa é um exemplo da teoria ondulatória. Para controlar o movimento da pipa, a pessoa produz perturbações em um ponto da linha que está em suas mãos. Cada perturbação é um pulso, e uma sequência repetitiva e regular de pulsos constitui uma onda. A onda sonora é outro exemplo de uma sequência regular de pulsos que se propaga no ar.
“A descoberta de Fourier, com relação aos fenômenos harmônicos, assemelha-se, em importância, à descoberta da psicanálise por Freud”, comenta Flo Menezes, chefe do Departamento de Música da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e compositor e diretor artístico do Studio PANaroma de Música Eletroacústica da Unesp. A análise de Fourier consiste em um método matemático para determinar as diferentes amplitudes de onda associadas a cada uma das frequências (número de pulsos que ocorre por unidade de tempo) que compõe um sinal. Atualmente, a análise matemática tem como utilidade prática para a música auxiliar compositores a terem controle de sua escritura musical e ainda possibilitar que sintetizadores de som reproduzam notas musicais quase perfeitamente.
Ao ver fisicamente uma melodia gerada por um violinista, por exemplo, alguns parâmetros são indispensáveis. Existe a intensidade do som, que se manifesta na amplitude da onda sonora e está associada ao som ser forte ou fraco, o que no cotidiano chamamos de volume do som. Já a altura do som corresponde à frequência da onda; os sons baixos possuem uma frequência menor e são mais graves. Quando os dedos de um violinista apertam as cordas, diminuem o comprimento da corda vibrante, aumentam a frequência, e tornam o som mais alto, ou seja, agudo. Os humanos só conseguem ouvir sons que estão no intervalo de frequência de 20 a 20 mil Hz. Já a grossura das cordas de um instrumento como o violão define a qualidade do som e o timbre. “O timbre não é um parâmetro sonoro propriamente dito, ou seja, não constitui um aspecto unidimensional do próprio som, como o fazem as alturas, as durações e as dinâmicas. Ele é um parâmetro acima de tudo da composição musical, pois é algo que resulta da interdependência de todos os outros fatores e aspectos do som”, explica Flo Menezes.
O timbre é o que diferencia um instrumento do outro. Entretanto, a percepção sonora não é só resultado da forma como o som é produzido em um instrumento. Um instrumento musical não produz o mesmo som quando tocado em ambientes diferentes. Exemplo disso são as composições para órgão de Bach, que em cada época mudam de estilo em função da acústica do local. No início, Bach apresentava-se em St. Jacobi Kirche, em Luebeck, e depois na Thomaskirche, em Leipzig, cada um com uma acústica diferenciada.
Em um ambiente fechado, como uma sala de concerto, por exemplo, existe uma série de fenômenos explicados pela teoria ondulatória que influenciam a percepção sonora do ouvinte. Um deles é a ressonância, que é uma interferência positiva, causada pela combinação de duas ou mais ondas, fazendo com que a onda resultante seja mais intensa que as ondas originais. Essa é a base para o desenvolvimento de caixas de som e amplificadores. Existe também a interferência destrutiva, em que as ondas se cancelam. Para medir precisamente os sons dos instrumentos para estudo acústico, é necessária a maior eliminação possível de interferência acústica, tal como se pratica, por exemplo, no principal estúdio de música computacional do mundo, o Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (Ircam), na França.
“Atualmente, salas de concerto utilizam uma combinação de diferentes métodos para isolamento acústico, tais como: revestimentos nas paredes, colocação de obstáculos para a geração de interferência destrutiva em determinados pontos do ambiente, de modo que somente o som produzido pela fonte sonora chegue aos ouvidos de quem está escutando, e por aí vai”, disse Carlos Alexandre Wuensche.
Outro fator de grande importância é o coeficiente de reverberação do local. A reverberação ou difusão do som faz com que os sons produzidos a alguns décimos de segundo atrás permaneçam até o presente e ainda continuem por mais alguns décimos de segundo. Quando se trata do canto, se a reverberação for muito pequena, logo se percebem eventuais falhas do aparelho vocal, granulações, instabilidades, e a voz fica então inteiramente exposta. Entretanto, a reverberação também não deve ser exagerada, pois pode comprometer a qualidade do som.
“A música requer a maquilagem temporal do som, ou seja, que sempre estejamos cantando sobre nossas vozes de alguns décimos de segundos atrás, pois isso permite executar todas as nuances e desenhos dinâmicos necessários à apreciação musical. E para os instrumentos também. Os flautistas podem respirar muito rapidamente e retomar o som enquanto a reverberação se produz, fazendo com que a melodia não seja interrompida”, comenta José Augusto Mannis, compositor e professor do Instituto de Artes da Unicamp, que faz pesquisas sobre acústica aplicada à música.
A reverberação varia em cada local. Em salas pequenas, há pouca reverberação, portanto pouca difusão do som. Esse conceito influencia os estilos de música e a clareza com que são ouvidos. Como pontua Mannis: “Se ao invés de fazer música nas salas de estar, a civilização europeia tivesse desenvolvido o hábito de fazer música em grandes cozinhas ou em porões extensos em galerias subterrâneas, nossa história da música teria sido totalmente diferente da que é agora”.
A tese de doutorado de Mannis resultou em três novos difusores de som que foram instalados na Sala Villa-Lobos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e no novo auditório do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo. O diferencial desses difusores, com patentes depositadas por intermédio da Agência de Inovação da Unicamp (Inova), é que eles não apresentam o problema da absorção das ondas sonoras. A absorção ocorre quando uma onda atinge um obstáculo e deposita parte de sua energia sonora ali, sendo refletida, transmitida ou refratada com uma intensidade menor. A parcela de energia depositada, normalmente, é transformada em calor.
Os difusores mais conhecidos no mercado são os difusores de Schroeder, que apresentam irregularidades abruptas em sua forma. Esse tipo de difusor é eficiente para determinadas situações. Entretanto, em pequenas salas, as irregularidades provocam perda de energia e a reverberação não fica adequada. Mannis concebeu superfícies com articulações suaves e contínuas, em que não há perda de energia e sim o espalhamento das ondas sonoras. Apesar de no início as pesquisas terem sido feitas para melhorar a reverberação em ambientes pequenos, os difusores patenteados também podem ser aplicados em ambientes grandes, como o MIS.
Mannis criou a superfície dos difusores fazendo uma relação entre a sequência numérica do design dos difusores de Schroeder e a sequência dada às notas musicais da técnica de composição com 12 sons. A relação, que parece intrigante e difícil de ser detectada, para o professor e compositor foi instintiva e reforça ainda mais a noção de que a invenção científica e a criação artística estão conectadas pela sólida ponte do conhecimento. “As coisas se fundem e chego a ter a mesma sensação de plenitude quando soluciono um desafio na prancha de desenho quanto na pauta musical. É como se o processo criativo fosse um só e que apenas se alterna a natureza e o material com o qual estamos lidando. Isso sempre me pareceu ter sido uma das lições deixadas por Leonardo Da Vinci”, finaliza.
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