Há
informação demais por aí. Uma habilidade fundamental na sociedade
de informação consiste em se proteger dos 99,99% de informações
oferecidas que são indesejadas.
Eriksen, TH.
Tyranny of the moment: Fast and slow time in the information age.
London: Pluto Press, 2001, p. 92.
Podemos dizer
que a linha divisória entre a mensagem importante, aparente objeto
da comunicação, e o ruído de fundo, seu reconhecido adversário e
obstáculo mais nocivo, foi quase removida.
Bauman, Z.
Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 55.
Introdução
Muitos estudiosos
admitem um parentesco histórico entre a revolta da vacina – um dos
maiores e mais violentos levantes populares de nossa história – com
a revolta contra o “bota abaixo”1, ambos considerados
como produto de maquinações políticas golpistas das elites brasileiras,
mediado pelo discurso contra os atos de força do Estado. O movimento
anti-vacinação unia um amplo espectro político: do apostolado positivista,
aos republicanos e monarquistas mais radicais, assim como a população
desalojada de suas habitações e perfurada pelos imunizadores do governo.
A favor do direito à privacidade e ao livre arbítrio (e em “nome
do recato das moças honestas”, que deveriam expor seus braços a
vacinadores com intenções talvez libidinosas) muitos célebres oradores
atraiam as atenções públicas. A retórica de Rui Barbosa baseava-se
no temor da exposição ao veneno vacinal pela introdução no sangue
“de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados
receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Bem antes
do exemplo brasileiro, a vacinação também se tornara compulsória
na Inglaterra de 1853, por força do
compulsory vaccination act igualmente admitido como atitude de força
inadmissível em um Estado liberal. Os pais ingleses se organizaram em
defesa da liberdade de arbitrar sobre o que se poderia inocular em seus
filhos por ordem do Estado – o que lhes trouxe aumentos de mortalidade
por doenças transmissíveis não observadas nos territórios que aderiram
à vacinação, como a Irlanda. À época, tanto na Inglaterra quanto
no Brasil, os ciclos de interesse social e, consequentemente, o poder
de mobilização de grandes grupos, se restringia a textos impressos
e discursos públicos, o que tendia a reduzir-lhes o alcance. A retórica
anti-imunização alcançava somente o segmento alfabetizado com acesso
privilegiado às informações, que também contava com maior poder
de pressão política sobre os legisladores.
Atualmente,
nos Estados Unidos as leis de obrigatoriedade vacinal são bastante
flexíveis – há exclusões de ilicitude que liberam as crenças religiosas
(em 47 estados) e as abstenções tidas como “filosóficas” em 15
estados – o que representa nacionalmente menos de 1% de crianças
não cobertas. Não obstante, há um número crescente de crianças
em idade pré-escolar cujos pais se mostram insensíveis aos programas
educativos de vacinação e inalcançáveis pelas leis de imunização
escolar. No que concerne aos pais americanos (e muitos europeus) que
não vacinam seus filhos, não se pode afirmar que há injustas exclusões
do sistema público de saúde. Há famílias que, paradoxalmente “vulnerabilizadas”
por seu elevado padrão sócio-econômico-educacional, inadvertidamente
criaram condições ideais para a propagação de uma peculiar “epidemia
de desinformações”, que ora se materializa em adoecimento e mortes.
Há princípios epidemiológicos que admitem que a dinâmica das infecções
se apoia na expansão de grupos próximos de infectados, chamados de
clusters, mesmo nas regiões nas quais tais doenças já tenham
sido consideradas erradicadas. As condições e velocidade de transmissão
estão assim vinculadas à aglutinação dos clusters em uma
massa crítica de suscetíveis e contaminados que, quando alcançada,
tende a gerar epidemias, não raro em bairros de classe média. Alguém
não imunizado está mais seguro quando cercado de indivíduos vacinados
do que ao contrário e é justamente isso que parece ocorrer em vários
estados americanos. A título de ilustração do que se afirma, há
um website que se vale do nome de uma notória expoente do ativismo
anti-vacinal – encontram-se ali, periodicamente atualizados, uma “contagem
de corpos” e de casos ligando a vacinação ao autismo (zero até
o momento) (ver Jenny
McCarthy body count). Interessante
lembrar que o fenômeno aqui descrito – imaterial, intangível e refratário
às intervenções sanitárias – teve origem e exponencial ciclo de
reprodução gerado por obra de fantástica invenção humana que deveria
operar no sentido oposto. As tecnologias de informação e comunicação
serviram de berço e suporte à catastrófica ressonância de um falso
debate, potencializado pelas mídias de maior influência cultural –
o que tem a nos revelar o efeito devastador de vozes técnicas (de veracidade
e intenções questionáveis) quando potencializadas por celebridades
influentes nos ciclos de atenção social.
Os movimentos
do século XIX na Inglaterra e XX no Brasil se limitavam a condições
histórico-culturais peculiares que se encontram com casos contemporâneos
de exceção. Há descrição de surtos de coqueluche entre os
membros de uma comunidade Amish americana, que certamente não se deveu
à expansão da grande rede como vetor de influência no campo da saúde.
Passado mais de um século das primeiras manifestações anti-vacinação,
as atenções do imaginário popular nos países industrializados se
desviou das doenças infecciosas para ocupar-se agora de outros males
crônicos, ainda mal compreendidos pelo senso comum e não plenamente
esclarecidos em sua gênese. As estatísticas extraídas de inquéritos
nacionais americanos descrevem um panorama preocupante a cercar os “pais
não-vacinadores”. As condições de vulnerabilidade incluem os filhos
(sexo masculino predomina); de mães casadas; com alto nível de escolaridade;
acesso à internet; vivendo em vizinhanças com renda anual acima da
média nacional americana; residente em estados com exclusões de ilicitude
da lei de vacinação escolar por motivos filosóficos; e que expressa
sérias preocupações acerca dos efeitos colaterais das vacinas. Além
disso, tais famílias admitem que os médicos exerçam pouca ou nenhuma
influência sobre as decisões nesse campo, o que é condizente com
os estudos que indicam a internet como grande influenciadora nas opiniões
– acima até dos profissionais de saúde. Sob o ponto de vista epidemiológico,
é importante apontar para a distribuição geográfica dessas famílias
– aglutinavam-se em agrupamentos – o que tenderia a potencializar
o risco de contaminação e transmissão de doenças infecciosas.
Rostos famosos
e condenáveis vozes técnicas.
As suspeitas
sobre a prevalência de eventos adversos após vacinações já aparecem nos
periódicos científicos há mais de três décadas, principalmente
em relação à vacina tríplice – sarampo, caxumba e rubéola
(MMR em países de língua inglesa). Na Europa e no Japão, a preocupação
acerca da segurança na imunização com uma espécie de vacina contra
a coqueluche derivou em cobertura insuficiente e surtos da doença.
Especula-se sobre uma variada gama de malefícios, envolvendo desde
as doenças inflamatórias intestinais
até a morte súbita. Nos parece que os perigos comprovados, eventuais,
implausíveis ou ainda não estabelecidos se manifestam da mesma forma aos
olhares leigos, agora instrumentalizados pelo Pubmed que possibilita
um acesso rápido a resumos de artigos
em periódicos médicos especializados.
Talvez o tema
mais polêmico e de maior repercussão, embora suficientemente estudado
há mais de uma década, envolva a associação entre a vacina tríplice
(MMR) e o autismo. A condição é duas a quatro vezes mais prevalente
em meninos, o que explicaria a frequente não vacinação destes, e
sua origem é ainda desconhecida, embora os estudos com gêmeos monozigóticos
indiquem que esta talvez se deva a fatores genéticos. As manifestações
relacionadas à síndrome crescem em prevalência,
graças aos instrumentos de diagnóstico e identificação precoce.
Os sinais usualmente aparecem no primeiro ano de vida e sempre antes
dos três anos, época na qual é administrada a maioria das vacinas.
As primeiras suspeitas foram levantadas há 12 anos pelo Dr. Andrew
Wakefield que associara uma condição inflamatória intestinal a expor
crianças vacinadas às toxinas causadoras do autismo. Suas afirmações
originaram reações enfáticas em vista das excessivas extrapolações
e a questionável metodologia empregada, o que levou o General Medical
Council – GMC (conselho federal de medicina inglês) a cassar seu
registro profissional. O GMC identificou conflito de interesses na sua
associação com advogados que buscavam indenizações e na descoberta
de uma patente de vacina anti-sarampo (supostamente segura) registrada
em seu nome, além de procedimentos invasivos e desnecessários impostos
às crianças sob investigação. Não obstante, as dúvidas persistiram
embora já suficientemente refutadas pela ciência – no campo da epidemiologia
há dados suficientes para convencer o mais zeloso dos pais. Demonstrou-se
que na Polônia e no Japão – países nos quais a vacina MMR foi suspensa
temporariamente por motivos diversos – encontrou-se um risco menor
de autismo entre as crianças vacinadas.
Nos
Estados Unidos a crença anti-vacinal parece crescer impulsionada por
força de rostos célebres e numerosos sítios dedicados à polêmica. Jennifer McCarthy
firmou-se como celebridade a partir de suas aparições no programa
de Oprah Winfrey e Larry King. McCarthy expõe como evidência o caso
do próprio filho, vítima da “sobrecarga tóxica”, assim como muitos
dos ativistas que se fundamentam em experiências pessoais a desprezar
dados epidemiológicos. Barbara Loe Fisher, presidente do National Vaccine
Information Center, também é mãe de um portador da condição e usa
seu site para chamar a atenção sobre o número considerado excessivo
de imunizações obrigatórias2. Outras personalidades
se juntam a esses, como Curt Linderman, apresentador de rádio de um
programa de expressiva audiência (Linderman live!) e Robert
F.Kennedy Jr., que publicou informações incorretas acerca da presença
de elevadas concentrações de uma substância organomercurial, usada
desde 1930 como conservante que já havia sido retirada das preparações
em 2001. Apesar disso o aumento dos casos de autismo se manteve.
O amparo
da grande rede
Os fenômenos
aqui descritos, talvez se localizem no instinto evolutivamente preservado
de perceber o perigo no ambiente para agir de forma instintiva e ágil
para preservação da prole. O autismo, condição de crescente interesse
pelo tremendo fardo emocional a ele associado, conquista um espaço
crescente nas mídias pela evocação da dor expressa nos rostos de
pais que buscam causas e curas. Acrescente-se a tal cenário a reduzida
percepção de risco acerca de doenças “erradicadas” e teorias
persecutórias que colocam sob suspeição as opiniões dos experts.
O “cidadão consciente de si” se torna, solitariamente, seu próprio
expert, lutando contra as proliferações imaginárias que lhe parecem
mais ameaçadoras. No âmbito da saúde, os discursos das instituições
clássicas perdem seu poder de influência na polifonia de mensagens,
abrindo terrenos espaçosos e férteis às redes de expertise informal
como a que aqui se descreve. Novas tensões perante riscos vividamente
pressentidos geram buscas por informações na proporção da relevância
atribuída ao tema nos círculos de atenção gerados pelas vozes mais
influentes.
Em 2005, Zimmerman
identificou um núcleo de tais ciclos de interesse ao estudar 78 sítios
com conteúdos críticos acerca das vacinações. Concluiu que quase
todos baseavam suas objeções na suposta correlação entre preparações
vacinais e males de causa debilmente esclarecida; subestimando a gravidade
das doenças infecciosas (atribuídas ao Terceiro Mundo); denunciando
os compostos mercuriais; defendendo as liberdades civis em vista do
caráter compulsório da vacinação; e apelando à resistência contra
as lucrativas corporações farmacêuticas. Estes sítios pareciam se
organizar em redes consistentes, confluindo em círculos de informações
técnicas de variadas origens e versões. Estabeleciam-se como uma espécie
de sub-sistema cultural, ofertando links para conteúdos equivalentes:
comunidades virtuais solidárias partilhando crenças e informações
consideradas relevantes.
O desgaste
emocional que incide sobre as famílias envolvidas no problema nunca
é desprezível, o que as torna especialmente suscetíveis a
qualquer tipo de aceno de esperança, o que talvez as incite à busca
do apoio de redes sociais. Todos parecem consumir produtos que lhes
amparem na dimensão material. Textos sobre dietas sem glúten, megadoses
de vitamina D, tratamentos em câmaras hiperbáricas, neuro-feedback,
enemas, saunas de infra-vermelho e as controvertidas terapias de bloqueio
da síntese da testosterona.
Deve-se enfatizar
que o cenário histórico anti-vacinação do século XXI concentra
diversas peculiaridades que o distingue de épocas passadas. Atualmente
existe uma crescente credibilidade da internet nas questões de saúde,
ultrapassando mesmo a confiança antes atribuída aos médicos. A oferta
de recursos para acesso à informação se expandiu de forma impressionante
– há websites usados para controvertidos autodiagnósticos – uma
possibilidade tão atraente (porque acessível), quanto arriscada (porque
perigosamente simplificadora). As versões, conteúdos e formatos de
informações variam amplamente entre textos, estabelecendo um insuportável
desafio aos pais leigos que se valem das TICs como recurso ao esclarecimento
acerca de temas (talvez falsamente) polêmicos. A rede mundial de computadores,
além de dar suporte e agregar famílias em situação de desesperança,
também se tornou uma espécie de mercado de variadas versões de verdades
plausíveis – subitamente urgentes – a nos exigir decisões inequívocas.
Indo além dos numerosos textos jornalísticos que descrevem a internet
como uma forma de acesso ao Olimpo das divindades tecnocientíficas,
uma forma de emancipação da minoridade leiga que em outros tempos
não ousaria confrontar o poder médico, suspeitamos que algo de novo
paira pela grande rede.
Conclusão
Em síntese,
da sociedade do século XIX/XX, orientada aos debates pelas mídias
impressas em papel (dedicadas às minorias alfabetizadas), evoluímos
para a era da saturação de informações advindas de meios e fontes
plurais das quais se servem aqueles que se percebem sob os maiores riscos.
Sob o mantra jornalístico das “versões equilibradas”, os ruídos
e rumores de riscos, amplificados pelo “efeito celebridade”, não
raro promovem debates onde não deveria haver nenhum, gerando um ciclo
de enunciações falaciosas que elegem conteúdos que ocuparão os espaços
reservados às verdades de mais vigoroso apelo. A algazarra de
opiniões se ampliou pelos recursos das novas TICs nas últimas décadas,
sobrecarregando de dúvidas os pais que não mais se permitem tê-las.
Estes não mais aceitam seus erros pressionados pelo dilúvio de verdades
conflitantes e indeterminações que os conduzem na direção dos oniscientes motores
de busca. No que se refere às decisões sobre a saúde de nossas crianças,
as opções pesam sob o imperativo das verdades e certezas absolutas.
Paira a crescente necessidade de escolhas entre múltiplas opções
que podem conduzir tanto à tomada de posições tidas como responsáveis
frente aos riscos iminentes, como a outras que levam a consequências
adversas insuportáveis.
Paulo Roberto
Vasconcellos-Silva é pesquisador e professor da Fundação Oswaldo
Cruz e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Luis David
Castiel é pesquisador e professor da Escola Nacional de Saúde
Pública, também da Fundação Oswaldo Cruz.
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