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Artigo
A internet na história dos movimentos anti-vacinação
Por Paulo Roberto Vasconcellos-Silva e Luis David Castiel
10/09/2010

Há informação demais por aí. Uma habilidade fundamental na sociedade de informação consiste em se proteger dos 99,99% de informações oferecidas que são indesejadas.

Eriksen, TH. Tyranny of the moment: Fast and slow time in the information age. London: Pluto Press, 2001, p. 92.

Podemos dizer que a linha divisória entre a mensagem importante, aparente objeto da comunicação, e o ruído de fundo, seu reconhecido adversário e obstáculo mais nocivo, foi quase removida.

Bauman, Z. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 55.

Introdução

Muitos estudiosos admitem um parentesco histórico entre a revolta da vacina – um dos maiores e mais violentos levantes populares de nossa história – com a revolta contra o “bota abaixo”1, ambos considerados como produto de maquinações políticas golpistas das elites brasileiras, mediado pelo discurso contra os atos de força do Estado. O movimento anti-vacinação unia um amplo espectro político: do apostolado positivista, aos republicanos e monarquistas mais radicais, assim como a população desalojada de suas habitações e perfurada pelos imunizadores do governo. A favor do direito à privacidade e ao livre arbítrio (e em “nome do recato das moças honestas”, que deveriam expor seus braços a vacinadores com intenções talvez libidinosas) muitos célebres oradores atraiam as atenções públicas. A retórica de Rui Barbosa baseava-se no temor da exposição ao veneno vacinal pela introdução no sangue “de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Bem antes do exemplo brasileiro, a vacinação também se tornara compulsória na Inglaterra de 1853, por força do compulsory vaccination act igualmente admitido como atitude de força inadmissível em um Estado liberal. Os pais ingleses se organizaram em defesa da liberdade de arbitrar sobre o que se poderia inocular em seus filhos por ordem do Estado – o que lhes trouxe aumentos de mortalidade por doenças transmissíveis não observadas nos territórios que aderiram à vacinação, como a Irlanda. À época, tanto na Inglaterra quanto no Brasil, os ciclos de interesse social e, consequentemente, o poder de mobilização de grandes grupos, se restringia a textos impressos e discursos públicos, o que tendia a reduzir-lhes o alcance. A retórica anti-imunização alcançava somente o segmento alfabetizado com acesso privilegiado às informações, que também contava com maior poder de pressão política sobre os legisladores.

Atualmente, nos Estados Unidos as leis de obrigatoriedade vacinal são bastante flexíveis – há exclusões de ilicitude que liberam as crenças religiosas (em 47 estados) e as abstenções tidas como “filosóficas” em 15 estados – o que representa nacionalmente menos de 1% de crianças não cobertas. Não obstante, há um número crescente de crianças em idade pré-escolar cujos pais se mostram insensíveis aos programas educativos de vacinação e inalcançáveis pelas leis de imunização escolar. No que concerne aos pais americanos (e muitos europeus) que não vacinam seus filhos, não se pode afirmar que há injustas exclusões do sistema público de saúde. Há famílias que, paradoxalmente “vulnerabilizadas” por seu elevado padrão sócio-econômico-educacional, inadvertidamente criaram condições ideais para a propagação de uma peculiar “epidemia de desinformações”, que ora se materializa em adoecimento e mortes. Há princípios epidemiológicos que admitem que a dinâmica das infecções se apoia na expansão de grupos próximos de infectados, chamados de clusters, mesmo nas regiões nas quais tais doenças já tenham sido consideradas erradicadas. As condições e velocidade de transmissão estão assim vinculadas à aglutinação dos clusters em uma massa crítica de suscetíveis e contaminados que, quando alcançada, tende a gerar epidemias, não raro em bairros de classe média. Alguém não imunizado está mais seguro quando cercado de indivíduos vacinados do que ao contrário e é justamente isso que parece ocorrer em vários estados americanos. A título de ilustração do que se afirma, há um website que se vale do nome de uma notória expoente do ativismo anti-vacinal – encontram-se ali, periodicamente atualizados, uma “contagem de corpos” e de casos ligando a vacinação ao autismo (zero até o momento) (ver Jenny McCarthy body count).

Interessante lembrar que o fenômeno aqui descrito – imaterial, intangível e refratário às intervenções sanitárias – teve origem e exponencial ciclo de reprodução gerado por obra de fantástica invenção humana que deveria operar no sentido oposto. As tecnologias de informação e comunicação serviram de berço e suporte à catastrófica ressonância de um falso debate, potencializado pelas mídias de maior influência cultural – o que tem a nos revelar o efeito devastador de vozes técnicas (de veracidade e intenções questionáveis) quando potencializadas por celebridades influentes nos ciclos de atenção social.

Os movimentos do século XIX na Inglaterra e XX no Brasil se limitavam a condições histórico-culturais peculiares que se encontram com casos contemporâneos de exceção. Há descrição de surtos de coqueluche entre os membros de uma comunidade Amish americana, que certamente não se deveu à expansão da grande rede como vetor de influência no campo da saúde. Passado mais de um século das primeiras manifestações anti-vacinação, as atenções do imaginário popular nos países industrializados se desviou das doenças infecciosas para ocupar-se agora de outros males crônicos, ainda mal compreendidos pelo senso comum e não plenamente esclarecidos em sua gênese. As estatísticas extraídas de inquéritos nacionais americanos descrevem um panorama preocupante a cercar os “pais não-vacinadores”. As condições de vulnerabilidade incluem os filhos (sexo masculino predomina); de mães casadas; com alto nível de escolaridade; acesso à internet; vivendo em vizinhanças com renda anual acima da média nacional americana; residente em estados com exclusões de ilicitude da lei de vacinação escolar por motivos filosóficos; e que expressa sérias preocupações acerca dos efeitos colaterais das vacinas. Além disso, tais famílias admitem que os médicos exerçam pouca ou nenhuma influência sobre as decisões nesse campo, o que é condizente com os estudos que indicam a internet como grande influenciadora nas opiniões – acima até dos profissionais de saúde. Sob o ponto de vista epidemiológico, é importante apontar para a distribuição geográfica dessas famílias – aglutinavam-se em agrupamentos – o que tenderia a potencializar o risco de contaminação e transmissão de doenças infecciosas.

Rostos famosos e condenáveis vozes técnicas.

As suspeitas sobre a prevalência de eventos adversos após vacinações já aparecem nos periódicos científicos há mais de três décadas, principalmente em relação à vacina tríplice – sarampo, caxumba e rubéola (MMR em países de língua inglesa). Na Europa e no Japão, a preocupação acerca da segurança na imunização com uma espécie de vacina contra a coqueluche derivou em cobertura insuficiente e surtos da doença. Especula-se sobre uma variada gama de malefícios, envolvendo desde as doenças inflamatórias intestinais até a morte súbita. Nos parece que os perigos comprovados, eventuais, implausíveis ou ainda não estabelecidos se manifestam da mesma forma aos olhares leigos, agora instrumentalizados pelo Pubmed que possibilita um acesso rápido a resumos de artigos em periódicos médicos especializados.

Talvez o tema mais polêmico e de maior repercussão, embora suficientemente estudado há mais de uma década, envolva a associação entre a vacina tríplice (MMR) e o autismo. A condição é duas a quatro vezes mais prevalente em meninos, o que explicaria a frequente não vacinação destes, e sua origem é ainda desconhecida, embora os estudos com gêmeos monozigóticos indiquem que esta talvez se deva a fatores genéticos. As manifestações relacionadas à síndrome crescem em prevalência, graças aos instrumentos de diagnóstico e identificação precoce. Os sinais usualmente aparecem no primeiro ano de vida e sempre antes dos três anos, época na qual é administrada a maioria das vacinas. As primeiras suspeitas foram levantadas há 12 anos pelo Dr. Andrew Wakefield que associara uma condição inflamatória intestinal a expor crianças vacinadas às toxinas causadoras do autismo. Suas afirmações originaram reações enfáticas em vista das excessivas extrapolações e a questionável metodologia empregada, o que levou o General Medical Council – GMC (conselho federal de medicina inglês) a cassar seu registro profissional. O GMC identificou conflito de interesses na sua associação com advogados que buscavam indenizações e na descoberta de uma patente de vacina anti-sarampo (supostamente segura) registrada em seu nome, além de procedimentos invasivos e desnecessários impostos às crianças sob investigação. Não obstante, as dúvidas persistiram embora já suficientemente refutadas pela ciência – no campo da epidemiologia há dados suficientes para convencer o mais zeloso dos pais. Demonstrou-se que na Polônia e no Japão – países nos quais a vacina MMR foi suspensa temporariamente por motivos diversos – encontrou-se um risco menor de autismo entre as crianças vacinadas.

Nos Estados Unidos a crença anti-vacinal parece crescer impulsionada por força de rostos célebres e numerosos sítios dedicados à polêmica. Jennifer McCarthy firmou-se como celebridade a partir de suas aparições no programa de Oprah Winfrey e Larry King. McCarthy expõe como evidência o caso do próprio filho, vítima da “sobrecarga tóxica”, assim como muitos dos ativistas que se fundamentam em experiências pessoais a desprezar dados epidemiológicos. Barbara Loe Fisher, presidente do National Vaccine Information Center, também é mãe de um portador da condição e usa seu site para chamar a atenção sobre o número considerado excessivo de imunizações obrigatórias2. Outras personalidades se juntam a esses, como Curt Linderman, apresentador de rádio de um programa de expressiva audiência (Linderman live!) e Robert F.Kennedy Jr., que publicou informações incorretas acerca da presença de elevadas concentrações de uma substância organomercurial, usada desde 1930 como conservante que já havia sido retirada das preparações em 2001. Apesar disso o aumento dos casos de autismo se manteve.

O amparo da grande rede

Os fenômenos aqui descritos, talvez se localizem no instinto evolutivamente preservado de perceber o perigo no ambiente para agir de forma instintiva e ágil para preservação da prole. O autismo, condição de crescente interesse pelo tremendo fardo emocional a ele associado, conquista um espaço crescente nas mídias pela evocação da dor expressa nos rostos de pais que buscam causas e curas. Acrescente-se a tal cenário a reduzida percepção de risco acerca de doenças “erradicadas” e teorias persecutórias que colocam sob suspeição as opiniões dos experts. O “cidadão consciente de si” se torna, solitariamente, seu próprio expert, lutando contra as proliferações imaginárias que lhe parecem mais ameaçadoras. No âmbito da saúde, os discursos das instituições clássicas perdem seu poder de influência na polifonia de mensagens, abrindo terrenos espaçosos e férteis às redes de expertise informal como a que aqui se descreve. Novas tensões perante riscos vividamente pressentidos geram buscas por informações na proporção da relevância atribuída ao tema nos círculos de atenção gerados pelas vozes mais influentes.

Em 2005, Zimmerman identificou um núcleo de tais ciclos de interesse ao estudar 78 sítios com conteúdos críticos acerca das vacinações. Concluiu que quase todos baseavam suas objeções na suposta correlação entre preparações vacinais e males de causa debilmente esclarecida; subestimando a gravidade das doenças infecciosas (atribuídas ao Terceiro Mundo); denunciando os compostos mercuriais; defendendo as liberdades civis em vista do caráter compulsório da vacinação; e apelando à resistência contra as lucrativas corporações farmacêuticas. Estes sítios pareciam se organizar em redes consistentes, confluindo em círculos de informações técnicas de variadas origens e versões. Estabeleciam-se como uma espécie de sub-sistema cultural, ofertando links para conteúdos equivalentes: comunidades virtuais solidárias partilhando crenças e informações consideradas relevantes.

O desgaste emocional que incide sobre as famílias envolvidas no problema nunca é desprezível, o que as torna especialmente suscetíveis a qualquer tipo de aceno de esperança, o que talvez as incite à busca do apoio de redes sociais. Todos parecem consumir produtos que lhes amparem na dimensão material. Textos sobre dietas sem glúten, megadoses de vitamina D, tratamentos em câmaras hiperbáricas, neuro-feedback, enemas, saunas de infra-vermelho e as controvertidas terapias de bloqueio da síntese da testosterona.

Deve-se enfatizar que o cenário histórico anti-vacinação do século XXI concentra diversas peculiaridades que o distingue de épocas passadas. Atualmente existe uma crescente credibilidade da internet nas questões de saúde, ultrapassando mesmo a confiança antes atribuída aos médicos. A oferta de recursos para acesso à informação se expandiu de forma impressionante – há websites usados para controvertidos autodiagnósticos – uma possibilidade tão atraente (porque acessível), quanto arriscada (porque perigosamente simplificadora). As versões, conteúdos e formatos de informações variam amplamente entre textos, estabelecendo um insuportável desafio aos pais leigos que se valem das TICs como recurso ao esclarecimento acerca de temas (talvez falsamente) polêmicos. A rede mundial de computadores, além de dar suporte e agregar famílias em situação de desesperança, também se tornou uma espécie de mercado de variadas versões de verdades plausíveis – subitamente urgentes – a nos exigir decisões inequívocas. Indo além dos numerosos textos jornalísticos que descrevem a internet como uma forma de acesso ao Olimpo das divindades tecnocientíficas, uma forma de emancipação da minoridade leiga que em outros tempos não ousaria confrontar o poder médico, suspeitamos que algo de novo paira pela grande rede.

Conclusão

Em síntese, da sociedade do século XIX/XX, orientada aos debates pelas mídias impressas em papel (dedicadas às minorias alfabetizadas), evoluímos para a era da saturação de informações advindas de meios e fontes plurais das quais se servem aqueles que se percebem sob os maiores riscos. Sob o mantra jornalístico das “versões equilibradas”, os ruídos e rumores de riscos, amplificados pelo “efeito celebridade”, não raro promovem debates onde não deveria haver nenhum, gerando um ciclo de enunciações falaciosas que elegem conteúdos que ocuparão os espaços reservados às verdades de mais vigoroso apelo. A algazarra de opiniões se ampliou pelos recursos das novas TICs nas últimas décadas, sobrecarregando de dúvidas os pais que não mais se permitem tê-las. Estes não mais aceitam seus erros pressionados pelo dilúvio de verdades conflitantes e indeterminações que os conduzem na direção dos oniscientes motores de busca. No que se refere às decisões sobre a saúde de nossas crianças, as opções pesam sob o imperativo das verdades e certezas absolutas. Paira a crescente necessidade de escolhas entre múltiplas opções que podem conduzir tanto à tomada de posições tidas como responsáveis frente aos riscos iminentes, como a outras que levam a consequências adversas insuportáveis.

Paulo Roberto Vasconcellos-Silva é pesquisador e professor da Fundação Oswaldo Cruz e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Luis David Castiel é pesquisador e professor da Escola Nacional de Saúde Pública, também da Fundação Oswaldo Cruz.