Na busca por mais elementos para compor o grande quebra-cabeças que é a origem da presença humana na Terra e seus movimentos migratórios, arqueólogos, biólogos, geólogos e outros cientistas se abastecem de recursos técnicos, metodologias, destreza e paciência para escavar e investigar os vestígios materiais de grupos humanos pré-históricos. Em muitos casos, o que encontram gera mais perguntas do que respostas e, em outros, a insistência em se impor uma resposta pode limitar as possibilidades de novas descobertas.
O geólogo e doutor em geociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ernesto Luiz Lavina, em artigo publicado em 2010 na Revista Brasileira de Geociências, retoma a efervescência de teorias em diversos campos da ciência nos séculos XIX e XX, destacando especialmente uma: em 1912, numa conferência da Associação Geológica da Alemanha, Alfred Lothar Wegener apresentou a polêmica teoria de que, há centenas de milhões de anos, os continentes eram um só. Essa proposição movimentou várias áreas da ciência, pois invalidaria os pensamentos e pesquisas anteriores de muitos campos, especialmente da geologia.
A chamada Teoria da Deriva dos Continentes explicaria a similaridade e correspondência dos contornos continentais e a presença de animais e plantas da mesma espécie em continentes diferentes separados por oceanos. Essas questões, até então, eram explicadas por uma suposição de que existiam pontes de terra intercontinentais contínuas e estreitas que teriam sido depois submersas.
Antes de ser aceito – somente 50 anos após ser apresentado como hipótese científica –, o grande continente, Pangeia, foi rejeitado, estudado, questionado e revisto até a formulação da teoria conhecida como “Tectônica de placas”, proposta por Robert Dietz e Harry Hess no final dos anos 1960, e que viria explicar cientificamente que a camada mais superficial da crosta terrestre é formada por placas que se movem sobre o magma interno e quente, resultando na separação dos continentes que conhecemos hoje, os quais continuam em movimento. A América do Sul, por exemplo, se afasta da África cerca de 2 centímetros por ano.
Muito tempo se passou, desde a separação dos continentes, até que nossa espécie, o Homo sapiens (o homem moderno), se fizesse presente na Terra. Em artigo na Revista USP, em 1997, a paleoantropóloga da Universidade de Cambridge, Marta Mirazón Lahr, aponta que os primeiros homens surgiram no continente africano entre 200 mil e 100 mil anos atrás, afirmações que levam em conta a ausência de evidências mais antigas do homem moderno fora da África. A partir dessa “origem” tem-se formulado hipóteses de migração para os outros continentes. No caso da América, a teoria mais aceita é a de que, há aproximadamente 12 mil anos, os primeiros homens, após saírem da África para a Ásia, teriam atravessado da Sibéria para o Alasca pelo estreito de Bering, uma faixa de 90 quilômetros que, na última glaciação (período muito frio ocorrido entre 80.000 e 12.000 anos atrás) tornou-se um caminho viável. Essa teoria foi sustentada a partir de 1986 por Joseph Greenberg, Christy Turner II e Stephen Zegura, analisando as semelhanças genéticas, linguísticas e dentárias dos ameríndios com os mongolóides, após a escavação de vários sítios na América do Norte, sendo o mais antigo encontrado até aquele momento, o da cidade de Clóvis, no Novo México, com datação em aproximadamente 11 mil anos.
Até aqui, tudo parece se encaixar. Mas as coisas não são tão simples assim. Todas essas explicações são hipotéticas, sujeitas a questionamentos e correções e não foram as únicas nem as primeiras teorias formuladas. Talvez tenham sido somente as mais aceitas, por motivos que vão além de questões meramente científicas, como a hegemonia norte-americana e da língua inglesa em vários campos, entre eles o das pesquisas e publicações.
Com as crescentes pesquisas arqueológicas no Brasil e em outros países da América do Sul, evidências e vestígios mais antigos de presença humana começaram a ser encontrados por aqui. E assim começaram nossas próprias controvérsias sobre a chegada dos primeiros Homo sapiens ao nosso continente.
Os homens sul-americanos
“Estabelecer o início da ocupação de uma área em tempo geológico, seja por grupos animais ou por pessoas, depende de provar a ausência de tal ocupação no período precedente, e ausência de evidência não é a mesma coisa que evidência de ausência. Isso deixa sempre em aberto a possibilidade de restos mais antigos virem a ser achados, embora essa possibilidade diminua à medida que a evidência negativa aumenta”, afirmou Lahr no artigo publicado em 1997.
Assegurada no país como carreira acadêmica na década de 1950 (apesar de ser de interesse nacional desde o Império), ainda não existe uma prática em arqueologia que seja totalmente brasileira. As técnicas usadas aqui são oriundas de lugares com mais tradição em escavações, como Estados Unidos e França, que antes de 1950 já possuíam especialistas com diferentes visões e práticas.
Os primeiros norte-americanos a pesquisarem no país foram Betty Meggers e Clifford Evans, vindo através do Smithsonian Institution pesquisar a cultura Marajoara na Amazônia nos anos 1940. Da França, vieram pesquisadores convidados por Paulo Duarte, jornalista, arqueólogo e revolucionário, que no exílio, após participar da revolução de 1932, conheceu intelectuais humanistas do Musée de L'homme, em Paris, e em seu retorno, na abertura política de 1945, trouxe-os para transformar a arqueologia numa carreira acadêmica no Brasil. Em resumo, as práticas do casal americano e dos pioneiros franceses a pesquisar no país – Joseph e Annette Laming ‑ Emperaire – diferenciam-se pelo caráter mais descritivo dos americanos e humanista dos franceses.
A raiz do aprendizado das práticas em arqueologia é somente um dos fatores que trouxeram diferentes visões sobre vestígios e contextos estudados no Brasil e que originaram diversas controvérsias entre arqueólogos, principalmente nos anos 1980.
Ao mesmo tempo que surgia a teoria “clovista” de 11 mil anos de ocupação humana no Novo México, datações em carbono 14 (método de datação que mede a quantidade deste elemento em matérias orgânicas) indicavam vestígios materiais de 48 mil anos encontrados no interior do Piauí. Em Lagoa Santa, Minas Gerais, na década de 1970, um crânio com traços negroides era escavado e datado em 11.500 anos. Chile, Argentina e Venezuela também já possuíam datações mais recuadas que 11 mil anos na mesma época em que as evidências norte-americanas eram publicadas. A arqueóloga Maria da Conceição Beltrão estudou camadas de terra contendo artefatos líticos e fogueiras com características antrópicas (ou seja, feitos pelo homem), no interior da Bahia, e através do método Urânio-Tório (uma relação matemática entre a proporção desses elementos e a própria idade da amostra) detectou que eles tinham mais de 200 mil anos. Ela também levantou a possível presença do Homo erectus (anterior ao Homo sapiens, mas também existem controvérsias sobre se há descendência direta entre eles) em nosso solo, contestando, portanto, até mesmo a origem do homem na África.
As características do crânio encontrado em Minas Gerais por Emperaire e apelidado de Luzia já representavam um mistério aos pesquisadores, pois os ameríndios eram vistos como descedentes dos mongolóides asiáticos. A partir das diferenças observadas, em estudos e na reconstituição facial do crânio, Walter Neves, biólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (USP), formulou a teoria de que grupos humanos advindos da Austrália ou da África teriam atravessado o estreito de Bering antes dos asiáticos. Paul Rivet, humanista francês, considerando semelhanças linguísticas e físicas entre povos da Patagônia e da Austrália, defendia a possibilidade de travessias em embarcações pelo oceano Pacífico.
Métodos diversos, resultados divergentes
Em artigo publicado na revista Ciência e Cultura, Pedro Paulo Funari, professor do Departamento de História e pesquisador do Núcleo de Pesquisas Ambientais (Nepam), ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), traz um panorama do cenário político e intelectual no Brasil dos anos 1970, quando tantas hipóteses eram formuladas.
“As controvérsias podem se dar tanto na coleta do material, na análise, no método usado para analisar e na interpretação. E isso é normal na ciência, não é algo que ocorra só na arqueologia. Mas eu acho que a arqueologia tem um potencial de controvérsias muito grande. Primeiro, pelo fato de que você tem diversos métodos que são físicos, químicos, biológicos. Você tem uma série de métodos e de teorias que estão tratando do objeto. Você tem uma série, inclusive, de ciências (envolvidas). Então, o potencial de haver barulho de comunicação, de haver divergências é muito maior até do que em outras áreas”, avalia. Essa observação de Funari, além de salientar a forte tendência da arqueologia a controvérsias, enumera os passos do processo de pesquisa arqueológica, que, especialmente em estudos da pré-história, conta com a prospecção, a sondagem, escavação, análise e publicação dos resultados de pesquisa.
A prospecção de terrenos consiste na busca pelas áreas que poderiam abrigar ocupações humanas. Essa etapa já está sujeita aos conceitos seguidos por cada profissional. Um exemplo disso: pesquisadores adeptos da arqueologia processual ou new archeology (conceito criado por Lewis Binford na década de 1960, que considerava regularidades no comportamento humano), buscarão áreas próximas a rios e fontes de água, já que faz parte de seu entendimento que os grupos tendem sempre a otimizar seus esforços. Já os pesquisadores que estudam pinturas rupestres consideram que toda a área onde são encontradas pinturas pode conter também outros vestígios, como fogueiras.
Após a prospecção vem a sondagem, uma análise do terreno que determina quais recursos e métodos serão utilizados para a realização do trabalho. Diferentes terrenos envolvem diferentes ferramentas, expectativas, tempo de trabalho e olhares. Em seguida, vem a escavação, processo prático de coleta dos materiais. Nesse momento, surge uma forte característica no estilo de trabalho influenciado por arqueólogos franceses, que desenvolveram as chamadas escavações de ampla superfície: delimita-se grandes áreas para serem escavadas, camada por camada, ao invés de se fazer um corte profundo em uma área menor.
Cada sistema prioriza diferentes objetivos. No caso das escavações de ampla superfície, consegue-se observar um contexto maior de interação entre os possíveis ocupantes daquelas áreas, com chances também ampliadas de se encontrar vestígios humanos, mas é um processo mais demorado e trabalhoso. Já nos cortes mais profundos em áreas pequenas (praticados nos Estados Unidos e em muitos outros países), pode-se chegar rapidamente a camadas mais antigas, mas o entendimento do local pode tornar-se mais limitado.
Após todas essas etapas, vem a análise, que inclui a limpeza, datação e junção de todas as observações feitas no sítio para finalmente se formular teorias e hipóteses que levam à publicação de trabalhos em revistas especializadas. Essas hipóteses, por sua vez, deverão se sustentar nas evidências encontradas e irão reforçar, refutar ou ignorar teorias anteriores que explicam a ocupação dos continentes.
Para o pesquisador italiano Fábio Parenti, que analisou em seu doutorado, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, uma jazida paleolítica (concentração de elementos pré-históricos) contendo artefatos líticos (rochosos) e fogueiras no sítio da Pedra Furada, localizada na Serra da Capivara, interior do Piauí, a teoria “é um conjunto de afirmações logicamente conectadas que tem uma base que seja possível verificar ou falsificar. No caso da arqueologia, que imita as ciências sem poder ser completamente científica, as teorias têm muito a ver com as visões da história e dos processos evolutivos”.
Parenti é arqueólogo pré-histórico com estudos na Itália e na França. Atualmente, preside o Istituto Italiano di Paleontologia Umana e é professor visitante da Universidade de São Paulo (USP). Sua tese, orientada por Niède Guidon, afirma, mediante análise de artefatos líticos e datações em carbono 14 de pedaços de carvão oriundos das fogueiras, que a presença humana na região da Serra da Capivara data de mais de 48 mil anos (recuou para 60 mil após sua defesa), o que refuta a teoria mais aceita de ocupação do continente americano, que considera a chegada humana à América há cerca de 11 mil anos. A tese do pesquisador, concluída em 1993 e publicada na Editions Recherches sur les Civilisations em 2001, detalha as condições e características em que as fogueiras e os artefatos líticos foram encontrados, descreve experimentos com mais de mil seixos da área para compará-los às características que indicariam ações humanas.
O que se tornou motivo de controvérsia no Brasil e nos Estados Unidos é a procedência dos artefatos líticos e dos carvões datados, já que os primeiros passaram por movimentações naturais antes de serem analisados. Seriam essas peças resultados de ações humanas ou de intempéries da natureza? Se os homens não vieram pelo estreito de Bering, do continente asiático para a América do Norte, antes de migrarem para o Sul, teriam vindo navegando pelo Pacífico ou Atlântico. Mas onde estão as evidências dessas navegações há 50 mil anos? Também outros arqueólogos, como os norte-americanos David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay (este último responsável por escavações em Monte Verde, no Chile), consideraram em 1994 os seixos analisados por Parenti sem interferências humanas, afirmando, portanto, que os lascamentos seriam naturais.
Em depoimento para o livro O paraíso é no Piauí, a descoberta da arqueóloga Niède Guidon, lançado em 2010 pela jornalista Solange Bastos, o pesquisador e chefe da atual Missão Franco-Brasileira Éric Boëda, professor na Universidade Nanterre especialista em tecnologia lítica, diz que os artefatos são, sim, antrópicos (sofreram ações humanas): “Só esses elementos trazidos por Parenti me bastariam, mas ainda entrou a experimentação. Vemos que esses elementos precisam de uma cadeia operatória complexa, com gestos que deveriam se suceder de uma determinada forma. Às vezes, implicam em 60 gestos numa determinada ordem. Na natureza seria impossível uma sequência de 60 gestos, muito menos reproduzida na mesma ordem”, descreve o pesquisador sobre o processo de manuseio e de lascamento de uma rocha.
Na época em que as afirmações sobre o sítio foram a público, um forte crítico das metodologias usadas e dos resultados obtidos nas primeiras escavações da Pedra Furada foi o arqueólogo André Prous, professor da USP e autor de importantes estudos sobre arqueologia no Brasil. Em artigo publicado em 1997 (antes da tese de Fábio Parenti sair como livro, mas após a publicação das datações na revista Nature, por Niède Guidon e Georgette Delibrias, em 1986), Prous lança questionamentos justamente acerca das conclusões sobre os artefatos e fogueiras, alegando que as condições das peças não permitiam conclusões precisas.
Essa já é uma discussão antiga, que gerou não só controvérsias acadêmicas, mas levou a conflitos pessoais e jurídicos entre profissionais da área. O fato é que surgem cada vez mais evidências e estudos que distanciam a chegada do Homo sapiens à América dos 11 mil anos.
Um artigo recente, publicado este ano no periódico Journal of Archaeological Science por Christelle Lahaye e outros autores, também traz datações de um sítio na Serra da Capivara, a Toca da Tira Peia, (sítio que o texto aponta estar com a integridade “fora de questionamentos”), com camadas de sedimentos contendo vestígios humanos que foram expostos ao método de termoluminescência. O método consiste na liberação de elétrons ionizados presentes em defeitos da amostra. Esses elétrons se acumulam com o tempo e, quando aquecida, a amostra produz uma iluminação cuja intensidade pode indicar o tempo passado desde seu último aquecimento. O resultado da análise mostrou que os vestígios eram de aproximadamente 20 mil anos atrás. O mesmo artigo aponta os sítios Monte Verde, no Chile, e Taima Taima, na Venezuela, como fortes contestadores da teoria “clovista”, mas que também são alvos de controvérsias por diferentes razões.
As evidências de que a ocupação na América do Sul é anterior a 12 mil anos não significa que não houve a passagem pelo Alasca, mas que outros trajetos também podem ter sido percorridos. Como, então, responder a essas questões que nos remetem a um passado que o próprio tempo muitas vezes apaga?
Trabalhando da forma como aprenderam e como confiam para enfrentar os desafios que encontram, cabe aos profissionais da arqueologia conciliar técnicas e interpretações para a formulação de hipóteses que podem só vir a se confirmar muitos anos após serem concebidas. Essas confirmações seriam o encontro de evidências livres de margens para dúvidas, elementos combinados que expliquem questões sobre o ambiente, as ferramentas e interações, como a presença de fósseis humanos nas mesmas camadas que outros vestígios, por exemplo. Sabe-se porém, que não são todos os ambientes que conseguem conservar matéria orgânica por muito tempo. Acidez do solo, erosão e mudanças climáticas são somente alguns dos fatores destruidores dos vestígios; e quanto mais antigos, mais frágeis esses vestígios. Faz-se necessário sempre buscar novas tecnologias e métodos que viabilizem o acesso ao máximo de elementos que, juntos, remontem aos tempos passados.
Questionamentos na ciência sempre surgirão e empurram as pesquisas para aperfeiçoamentos e preenchimento de lacunas. O único consenso entre os pesquisadores é que, para se criticar qualquer pesquisa, é preciso ler a fundo e conhecê-la bem, especialmente na arqueologia, que é um trabalho investigativo onde cada detalhe é muito importante.
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