A criação de animais em grandes centrais de confinamento, sem cuidado, pode propiciar o espalhamento de bactérias antes restritas a casos bem isolados, advertem especialistas.
Ao pensar sobre contaminação alimentar, geralmente se imaginam contextos de falta de vigilância sanitária e cadeias de distribuição ineficientes, normalmente associadas à realidade de países menos desenvolvidos. No entanto, quando países economicamente desenvolvidos e de reconhecida capacidade de monitoramento de suas cadeias produtivas, como Estados Unidos, Escócia e Japão, apresentam graves surtos de infecção alimentar, um sinal de alerta acende-se por toda a comunidade científica.
Nas últimas duas décadas, esses três países, dentre outros, foram vítimas de uma bactéria bastante perigosa, a Escherichia coli O157:H7 (ou E. coli O157:H7), mais resistente e com maior potencial de infecção que outros patógenos mais conhecidos, como Salmonella e Listeria monocytogenes.
Nos EUA, como demonstrou um trabalho coordenado pelo Centro de Controle de Doenças e Prevenção americano, são estimados cerca de 73 mil casos anuais de enfermidades causadas por este serotipo de E.coli. Destes, mais de 2800 resultam em hospitalização, com 61 mortes por ano. A maioria são casos isolados, sugerem os pesquisadores.
Uma pesquisa de revisão entre os anos de 1882 a 2002 encontrou 350 surtos vinculados à bactéria, espalhados por 49 dos 50 estados americanos. Os surtos, segundo a pesquisa, seriam definidos como dois ou mais casos de infecção com um veículo transmissor em comum – que pode ser um alimento, na maior parte dos casos, mas também água, contato direto com animais ou exposição a culturas puras em laboratórios que manipulem a bactéria.
No Brasil, ainda não se confirmou nenhum surto causado por E.coli O157:H7, como comentou, em entrevista, Kátia Aranda, coordenadora do curso de Biomedicina da Universidade Nove de Julho, especialista em microbiologia. Segundo ela, somente foram identificados casos em viajantes provenientes de outros países. Quando perguntada sobre a relevância deste patógeno, a pesquisadora reforça que, devido aos fatores de virulência e aos efeitos que causam em indivíduos totalmente saudáveis, a E.coli O157:H7 pode ser considerada mais perigosa que a maioria dos outros patógenos alimentares, e por isso merece atenção.
A pior de sua espécie
Ainda que muitas cepas de E. coli possuam baixa ou mesmo nenhuma patogenicidade, outras podem ser responsáveis por problemas graves. Dentre elas a O157:H7 apresenta-se mais virulenta e com maior taxa de letalidade.
Algumas linhagens da bactéria causam infecção ao aderirem-se às paredes intestinais, enquanto outras liberam um tipo de toxina específico, chamado pelos cientistas de Shiga-toxina. A especificidade presente na E.coli O157:H7 é que ela pode agir das duas formas. Além disso, mostra-se resistente ao processamento do alimento, pois suporta temperaturas mais altas que outras E.coli e sobrevive em ambientes ácidos.
O problema torna-se mais preocupante porque não há consenso científico sobre a eficácia do uso de antibióticos no tratamento. Em cerca de 5% dos casos, a doença evolui para um quadro clínico grave, chamado síndrome hemolítica urêmica (ou HUS, da sigla em inglês). Dos pacientes que apresentam este quadro, cerca de 30% têm sequelas que podem ser permanentes, como falha renal. Em torno de 5% dos casos, a HUS leva à morte, sendo as crianças as mais suscetíveis.
Foi o que aconteceu em 2001, com Kevin Kowalcyk, de dois anos, que faleceu depois de consumir hambúrgueres contaminados em uma rede de fast-food norte-americana. O caso se tornou emblemático pelo fato de a mãe do menino, Barbara Kowalcyk, tornar-se uma ativista da regulamentação de cadeias de produção de alimentos.
A lei sugerida por ela, e levada ao congresso americano em 2005, sob o apelido de Lei de Kevin, deu origem a um importante debate sobre a autonomia que, muitas vezes, grandes indústrias de alimentos tinham para flexibilizar normas de segurança e qualidade.
Mesmo não aprovada, ela influenciou a lei chamada de Ato pela Modernização da Segurança Alimentar (FSMA, em inglês), em 2011. O ato incide sobre o órgão que regula a comercialização e legislação de alimentos no país, o FDA (Food and Drug Administration), e prevê que sejam criados protocolos mais rígidos de avaliação das empresas produtoras e processadoras de alimentos para garantir rastreabilidade e monitoramento eficientes.
No Brasil, o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), dentro do Ministério da Agricultura, fiscaliza se medidas sanitárias corretas estão sendo tomadas no decorrer das cadeias produtivas de alimentos de origem animal. No entanto, a preocupação com a E.coli O157:H7 é ainda incipiente e não são exigidas análises específicas para detectar a presença da bactéria nos produtos finais. A Anvisa, responsável pela fiscalização da qualidade dos produtos alimentícios e pela investigação de surtos de intoxicação alimentar, também não possui um trabalho específico voltado à O157:H7.
Uma cadeia de problemas
A polêmica científica que envolve a expansão da bactéria é expressiva. Segundo o pesquisador americano Michael Greger, mudanças nos padrões de criação de animais, especialmente gado, e nas cadeias de distribuição, têm levado à maior disseminação da E.coli O157:H7.
No modelo industrial de criação animal americano, o gado confinado é alimentado essencialmente com milho, em vez de grama, seu alimento natural. Isso muda a acidez estomacal dos bovinos, e pode estar relacionado às modificações genéticas da E.coli (naturalmente presente no trato gastrintestinal dos animais), favorecendo o surgimento de cepas resistentes à acidez, como é o caso da O157:H7.
O contato dos animais com as fezes uns dos outros, como ocorre nos regimes de confinamento mais presentes nos EUA, também facilita a disseminação da bactéria. Trabalhos científicos têm demonstrado, ainda, que o transporte de animais por longas distâncias, e sob condições higiênicas inadequadas, espalha pelo país a contaminação. Foi mostrado que cepas de E.coli presentes em compartimentos de transporte de animais são as mesmas encontradas dentro de abatedouros, em etapas em que a carne já se tornou um produto alimentício. Assim, a bactéria está presente em todas as etapas da produção.
No que diz respeito à influência do modo de criação animal com a disseminação do problema, Katia Aranda diz que tudo indica haver uma relação, sendo que animais mantidos de acordo com cuidados sanitários corretos são muito menos propensos a tornarem-se vetores da bactéria.
A E.coli O157:H7 foi considerada um patógeno alimentar apenas na década de 1980, bem mais recentemente que a maioria dos outros patógenos veiculados por alimentos, “pelas mudanças na alimentação”, acredita Aranda. Ou seja, o aumento no consumo de carnes e derivados trouxe a necessidade de ampliar expressivamente a criação de animais. Para suprir essa demanda, houve o estabelecimento de um modelo agrícola industrial, que muitas vezes acaba passando por cima de preceitos sanitários e mesmo do bem-estar animal. Ainda que esse modelo continue em expansão, iniciativas como a FSMA demonstram, no mínimo, que o governo de países desenvolvidos está mais atento ao problema.
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