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Reportagem
Do direito à infelicidade
Por Carolina Medeiros e Roberto Takata
10/09/2014

Talvez o desejo do Selvagem, do romance Admirável mundo novo de Aldous Huxley, soe estranho a nossos ouvidos. Quem desejaria a infelicidade para si mesmo? De filmes e livros a peças publicitárias de margarinas e supermercados – passando por propostas de emendas à Constituição – somos incitados no sentido oposto: a sermos felizes, a buscarmos a felicidade.

Mas, afinal, de onde vem esse mito de que só a felicidade é permitida? Para Yuri Ximenes Telles, psicólogo da Universidade Federal do Ceará, essa ânsia pela felicidade vem do esforço constante em atingir padrões e seguir modelos. “Poderíamos ser mais felizes da forma como somos. A frustração advém, sobretudo, do fato de a felicidade ser tomada como objetivo final, e quase nunca como algo processual, feito de pequenos momentos”, pondera.

De acordo com Telles, esses momentos incluem eventos “não felizes” ou até mesmo traumáticos, como angústia, luto e depressão. “Sempre teremos angústias; sempre passaremos por lutos; nem sempre estaremos felizes, 100% da vida”, observa. A forma como cada um supera essas situações é o que torna a pessoa mais resiliente, ou seja, mais resistente aos próximos momentos difíceis, que são inevitáveis. “Tendo mais suporte, mais capacidade de lidar – pelo fato de já ter superado algo antes – com seus problemas e adversidades, buscar ajuda quando necessário e lutar pela melhora. Isso, a meu ver, é uma forma saudável de enfrentamento”, afirma.

Mesmo os defensores da busca incansável da felicidade concordam com tal teoria. Gretchen Rubin, autora do blog The hapiness project e do livro de mesmo nome (lançado no Brasil em 2011 com o nome Projeto da felicidade, pela editora Best Seller), afirma que “sentir-se mal é um sinal de que é tempo de fazer algo; a mudança com frequência é dolorosa, desagradável, disruptiva, exaustiva, dá medo”, diz. “A infelicidade pode ser um motivador para empurrá-lo através dessas barreiras; ela pode incentivá-lo a mudar de emprego, sair de um relacionamento, mudar, modificar seus hábitos, seu comportamento, mudar o mundo”, completa.

Momentos infelizes podem ter, então, uma dupla função. De um lado, ser motivador da mudança – exatamente em busca da felicidade; de outro, desenvolver mecanismos psicológicos que nos tornem mais resistentes às adversidades da vida.

Para Fernanda Luzia Lunkes, doutora em estudos da linguagem pela Universidade Fluminense (UFF), a construção do discurso de interdição da infelicidade tem uma história longa, remontando desde, pelo menos, a Grécia Antiga: “A felicidade é um tema sistematizado desde Platão, por exemplo, por isso, muito amplo e complexo. Mas é possível dizer que há muito se procurou regular os sentidos sobre infelicidade, ainda que haja deslizamentos nos modos pelos quais esta regulação se realizou”, defende.

Uma pessoa triste, para os gregos, seria pouco mais do que alguém desequilibrado, entorpecido. “Marie-Claude Lambotte em Estética da melancolia, da Companhia de Freud, 2000 mostra que já em Platão e Aristóteles eram produzidos efeitos sobre o sujeito melancólico. Tratava-se de um sujeito perturbado por um desequilíbrio nos líquidos corporais, os quais, por sua vez, o mergulham em uma loucura, uma espécie de 'embriaguez do vinho', como explicava Aristóteles; para Platão, um 'bêbado'. Desta maneira, a imagem do melancólico escapa da sobriedade racional e se enlaça a sentidos de frenesi, insanidade e destempero”, relata Lunkes.

Durante a era medieval, o discurso da interdição mesclou-se com a regulação religiosa, conforme explica Lunkes. “Nesta produção de interdição estão também os sete pecados capitais, especialmente o pecado da preguiça, que será mote de culpa de muitos cristãos na Idade Média e terá seus sentidos diluídos entre a melancolia e a tristeza. De acordo com a construção do discurso religioso, o pecado da preguiça está relacionado a uma aproximação das regiões de sentido da formação discursiva religiosa com a formação discursiva burguesa, cuja imagem é de que o trabalho está acima do não trabalho, produzindo efeitos de que melancolia e tristeza são formas de preguiça, de um não desejo de trabalhar”, diz.

Um dos efeitos da interdição à tristeza e o imperativo categórico à felicidade na sociedade moderna parece ser a medicalização da (in)felicidade. “É possível considerar que uma das consequências do quadro de medicalização de nossa formação social é a patologização da tristeza”, diz Lunkes. Já Telles defende o consenso entre psicólogos – e entre alguns psiquiatras  – no que diz respeito ao tratamento medicamentoso. Isso porque só se tem o efeito completo se acompanhado de tratamento psicológico. “Medicar por medicar, e tomar remédios por tomar, não leva a nada”, defende.

Mas nem sempre a felicidade ocupou um status tão importante na vida das pessoas. Um exemplo são as diversas manifestações artísticas ao longo da história, como pinturas de Van Gogh (famosas por suas cores tristes e sombrias), os poemas de Fernando Pessoa, além de diversos exemplos na música, como o blues (que em inglês significa tristeza), que sempre fala da perda da pessoa amada, ou diversos sambas, como o de Vinicius de Moraes e Baden Powell, para quem “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”.

Sobre essas manifestações artísticas que enaltecem momentos de tristeza inerentes ao ser humano, Lunkes destaca o trabalho de Lambotte e Kehl como referências no que diz respeito à compreensão mais profunda desses movimentos artísticos. “Em minha pesquisa pude concluir que o quadro depressivo pode ser um gesto de resistência do sujeito diante de uma formação social que produz a imagem de que é preciso ser feliz o tempo todo e de que a tristeza não teria nada a nos ensinar, de que não teríamos nada a elaborar a partir desses momentos”, afirma.

Os episódios recentes dos possíveis suicídios do ator e comediante americano Robin Williams e do humorista brasileiro Fausto Fanti relembraram a possível ligação entre a depressão e a profissão do humor. O psiquiatra Daniel Martins de Barros, em seu blog no Estadão, à ocasião, comentou um estudo sobre o quadro psicótico em comediantes. "Parece que para fazer rir é preciso ter uma personalidade parecida com a antigamente denominada psicose maníaco-depressiva", escreveu Barros. Tanto a psicose quanto a criatividade envolvem a capacidade de mesclar elementos díspares. "Ainda que não sejam doentes os comediantes caminham na corda bamba e, da mesma forma que o equilibrista, nos emocionam justamente por correrem o risco de cair”, conclui.

A evolução das visões do indivíduo melancólico ao ébrio, passando pelo vagabundo até o acrobata parece sumarizada na canção de João Bosco e Aldir Blanc, “O bêbado e o equilibrista”, eternizada por Elis Regina: “E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos ... A esperança dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar”.

Paradoxalmente, para que se possa obter a plena felicidade e fruição da beleza da vida, a necessidade episódica da infelicidade se faz presente. O Selvagem huxleiano, em sua exigência ao direito de ser infeliz, poderá ser considerado vindicado. Embora possa haver o risco de também se providenciar uma solução médica, um análogo ao “sucedâneo da paixão violenta” presente na obra de Huxley (o tratamento regular mensal a inundar o corpo dos indivíduos com adrenalina), que propicia, nas palavras do Administrador Mustapha Mond, “todos os efeitos tônicos de assassinar Desdêmona e de ser assassinada por Otelo, sem nenhum dos inconvenientes”.