Ao longo dos últimos quatro anos,
avisei aos estudiosos e editores de humanidades que se preparassem para um
futuro no qual os editores, como eu, deixariam de publicar livros demais e
passariam a publicar livros de menos. É justamente isso! Vimos diminuir,
acentuadamente em alguns casos, o número de publicações na área de humanidade
em instituições como a University of California Press, a Duke University Press
e a Stanford University Press, entre outras1. No momento, o número
de livros que os editores acadêmicos produzem, ainda é historicamente alto.
Tudo isso está para mudar de forma drástica. Trata-se de um momento paradoxal,
muito difícil de encarar, assim como os Últimos Dias preditos pela bíblia.
Antes de chegarmos ao fundo, precisamos descobrir como parar e planejar uma
estratégia para enfrentar este panorama.
O que valem os livros? Para que
servem as publicações? A razão pela qual estou aqui, implorando diante de vocês,
é minha paixão incontida pelos livros, que eu amo quase tanto quanto amo as
pessoas. Se isso for fetichismo ou idolatria, sou culpado. Em termos coletivos
podemos estar – como Marshall McLuhan sugeriu, anos atrás – prestes a deixar o
tempo em que os livros eram fundamentais para o desenvolvimento humano. Perante
nós vemos, vemo-nos obrigados, então, a descobrir aquilo que mais valorizamos
nos livros, de modo a tentar reverter isso.
Este ensaio é a minha tentativa
de exortar os acadêmicos a tomar medidas para preservar e proteger a
independência de suas atividades, como escrever livros e artigos de forma como
antigamente os concebiam, antes que o mercado se torne nossa prisão e o valor
do livro seja depreciado. Como disse recentemente um membro de nosso conselho
universitário, em uma universidade vai “sustentar unidades de negócio
deficitárias... simplesmente porque diversas disciplinas universitárias são
incapazes de aprender novos truques e examinar aquilo de que realmente tratam”.
O céu está desabando, desde que entrei no ramo de publicações, no final da
década de 1970. Urgente, agora, é fazer com que a terra não afunde sob nossos
pés.
Falo do ponto de vista
privilegiado de um editor sem fins lucrativos dentro da academia, que procura
apenas cobrir os custos e, ao mesmo tempo, preservar a dignidade do pensamento
e dos livros. Também falo como alguém que tem erudição. Quando apresentei este
ensaio em uma conferência, alguns objetaram: “como você pode criticar o
sistema, uma vez que vocês – da Harvard University Press – são o sistema? Você
está falando de má-fé”. Eu digo que o dever de falar francamente é, primeiro,
um dever que recai sobre os ombros daqueles que estão dentro do negócio. Nós,
editores, não estamos fora de perigo simplesmente em virtude de nossa posição.
Hoje em dia, os editores
acadêmicos enfrentam perigos oriundos de todos os lados: do público, dos
contribuintes, dos professores, dos estudantes, dos bibliotecários, dos seus
próprios colegas. Entre os administradores universitários e os próprios
acadêmicos, que parecem se sentir forçados a concordar com expectativas que não
são razoáveis, surgiu a idéia de que as editores universitárias deveriam se
transformar em “centros lucrativos” e contribuir para o orçamento geral da
universidade. De onde veio essa idéia? Ela é péssima. Desde de Gutenberg, temos
registros financeiros contínuos sobre as publicações no Ocidente, e está
provado que os livros são um negócio ruim. As novidades mecânicas e eletrônicas
foram, e sempre serão, uma aposta melhor. E a idéia de tentar extrair dinheiro
das editoras universitárias – as mais pobres de todas as editoras – é o mesmo
que esperar que os ratos da igreja contribuam para a conservação do local.
Penso que nós, estudiosos
editores, permitimos que os vendilhões entrassem no tempo. Precisamos controlar
suas atividades, já que não os chutamos para fora, como Jesus fez. É claro que
uma parcela significativa dos negócios das universidades consiste em operações
para ganhar dinheiro. Não fiquem chocados. Muitas das nossas igrejas também o
são! Além disso, as universidades têm dinheiro que deve ser bem empregado para
não desperdiçar os seus talentos. Mas possuímos outros talentos – espirituais,
não financeiros – que também precisam ser cultivados. A segunda preocupação,
depois da transformação da universidade em um negocio, é minha convicção de
que, ao deixarmos o controle do templo passar para os vendilhões, permitimos
que aqueles que desejam esvaziar e, assim, profanar nossos bons livros e
publicações se tornassem muito influentes em alguns campos, mas notadamente no
das humanidades. Acredito que a comercialização da educação superior acabou
consentindo que essa inovação desembocasse no departamento de humanidades de
cada universidade. Como defende Jeremy Gunawardena, a questão central é a
publicação: ela está no cerne do processo acadêmico.
As humanidades estudam livros e
artefatos para encontrar os traços comuns de nossa condição humana. Afirmo que
há um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o
esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja
gerar números. Agora, as humanidades estão em crise porque diversos
pressupostos sobre o que conta – quer dizer, não sendo diretos demais, sobre o
que soma – é algo absolutamente
inimigo das humanidades. Quando os livros deixam de ser meios complexos e se
tornam, em vez disso, objetos sobre os quais quantificamos, então se segue que
todos os outros assuntos que as humanidades estudam perdem seu valor. E, se os
estudiosos de humanidades não tiverem uma clara noção do que lhes diz respeito,
ninguém mais vai ter.
Nas últimas três décadas, a
tendência a mecanizar a universidade mostrou ser letal para as humanidades. A
batalha contra os livros no Ocidente é como o assalto às estátuas de Buda, em
Bamayan2, na Ásia Central, num gesto violento e supostamente tomado
em nome de valores mais altos. Devemos voltar ao início e perguntar, antes de
qualquer coisa, por que alguém iria querer falar, escrever ou publicar.
Precisamos nos reorientar em função do que mais importa. Precisamos ousar
propor as questões fundamentais, porque aquilo que amamos corre um real perigo
de morte.
“Falsificar os livros”: a Segunda Guerra Mundial e a transformação da
universidade
Com “Falsificar os Livros”, me
refiro aos problemas de contabilidade que agora flagelam as instituições
norte-americanas: desde os desastres contábeis na Arthur Andersen até a
inflação das notas nas faculdades e universidades. Isso também inclui os
padrões de julgamento nas publicações acadêmicas. Estou falando de um contexto
que todos nós conhecemos em parte, mas sobre o qual não ousamos generalizar,
pois sabemos que não podemos ver o quadro todo. Todavia, chegou o momento de
começarmos a ligar os pontos. Nossa falta de disposição para fazer papel de
bobos é o primeiro elo da cadeia que nos prende. Precisamos arriscar alguns
palpites mais fundamentados, mesmo que as evidências sejam incompletas. Meu
palpite, então, é que os falsos lucros da Enron são como as falsas realizações
da academia, representadas por montanhas de publicações que ninguém aprecia,
nem lê. Como Willis Regier observa:
Nos últimos
vinte anos, dobrou o número de novos livros publicados pela editora das
universitárias da Califórnia, Colúmbia, MIT e Prnceton; nas universidades de
Indiana e Yale, o número triplicou; e, em Stanford, se multiplicou por seis...
Em 1980, a editora da Universidade de Cambridge publicou 543 novos títulos e a
de Oxford, 802. Em 2000, Cambridge publicou 2.376 novos livros, e Oxford, 2.250...
O total de lançamentos de todas as editoras universitárias, em 2000, foi de 31
milhões de livros.
Florestas inteiras estão sendo
derrubadas para agradar aos grandes administradores universitários, que
acreditam que estão melhorando o perfil de suas instituições ao elevar os
“padrões” para as promoções e para se conseguir estabilidade no emprego (tenure)! E editores inescrupulosos e
sedentos de dinheiro conspiram nesse jogo de falsas promessas. Métodos modernos
e altamente sofisticados de contabilidade foram utilizados para computar o
trabalho da comunidade de estudiosos, e está ocorrendo, como consequência, o
inesperado esvaziamento do trabalho da academia.
O mundo acadêmico deixou-se
arrastar pelo jogo contagioso de falsas promessas que parece ter infectado a
maior parte da sociedade norte-americana? Se for assim, nossos problemas são
mais sérios, e mais difíceis de entender, do que poderíamos supor. São cada vez
mais insistentes os protestos contra o jogo de falsas promessas na sociedade
norte-americana como um todo, como mostram livros bem conhecidos (por exemplo, The case against lawyers – O processo
contra os advogados – de Catherine Crier). Para que ela não fique só, vou lhe
fazer companhia. Crier denuncia que o crescimento aparentemente inevitável do
controle administrativo está sufocando o trabalho real. Ela não culpa apenas os
administradores; culpa igualmente os administrados: “Desprezo nossa deliberada
ignorância e nossa passiva aceitação desses grilhões impostos ao espírito
norte-americano”. Acho que esse tipo de protesto deve ser levado para a
academia, também. Muita coisa está em risco, sinalizam nossas preocupações com
a universidade. Acredito que Andrew Delbanco estava certo quando escreveu que,
na “luta que se anuncia pela alma da universidade... há muito mais em jogo do
que jamais houve nos dias gloriosos, e algumas vezes tolos, das Culture Wars”3.
Era costume que os donos de
companhias conhecessem o que produziam e gostassem de seus produtos. Hoje,
administrar negócios é considerado complexo demais para permanecer nas mãos das
pessoas que realmente gostam do que fazem. Temos de ser realistas cuidando das
coisas, não é verdade? Mas, eu pergunto: o que então seriam as agulhas e as
torres e todos os ornamentos góticos de nossos prédios acadêmicos, a não ser colleges e universidades nos quais as
pessoas são encorajadas a dar asas a suas fantasias científicas, filosóficas e
literárias? O tão falado mercado livre – que é qualquer coisa, menos livre –
não é um conceito que deveríamos considerar estrutura fundamental para o livre
curso das idéias.
O problema é que os defensores do
mercado dizem que aquilo que não pode ser contado não é real. Lord Kelvin dizia
o seguia o seguinte: Quando podemos
medir aquilo de que estamos falando, e expressá-lo em números, sabemos algo a
seu respeito; mas quando não podemos expressá-lo em números, nosso conhecimento
é pobre e insatisfatório.
Como as pessoas consideram o
mercado livre a referência fundamental, acabamos adotando a mentalidade de
“tamanho único” e comprovamos seu efeito desestabilizador sobre a universidade.
Uma das figuras-chave na introdução dessa ideologia de mercado na academia foi
o Prêmio Nobel R. H. Coase. Em seu texto vivamente polêmico da década de 1980, The market for good and the market for ideas – O mercado de bens e o mercado de idéias – ele argumenta que ambos os mercados
precisavam ser vistos como um só: “Não acredito que seja válida a distinção
entre um mercado de bens e um mercado de idéias”. Trata-se de uma doutrina
inspirada nas idéias de Reagan e aplicada à atividade mental. O empirismo torna
as pessoas escravas daquilo que podem ver e contar. É mais difícil a verdade se
submeter ao mercado que um camelo passar pelo buraco de uma agulha.
Nossos problemas atuais começam
antes de Reagan e Tatcher. A universidade norte-americana passou por mudanças
dramáticas, durante a Segunda Guerra Mundial, por causa do modo pelo qual foi
convocada a explorar, nesse período, os mistérios do átomo, a fim de
desenvolver armas de destruição em massa. Primeiro foi Colúmbia e, então,
Princeton, Chigago e, mais tarde, a Universidade da Califórnia. Todas foram
arrastadas e alistadas no esforço de guerra sob o comando do Departamento de
Pesquisa e Desenvolvimento Científico, instituído em 1941. Os orçamentos das universidades
aumentaram tremendamente. E, na mesma medida, aumentou a burocracia
universitária. Desde a Segunda Guerra, o setor administrativo das universidades
tem crescido em uma espiral fora de controle. Por exemplo, como diz William H.
McNeill em uma dissertação sobre a Universidade de Chicago:
Por volta de
1964, o orçamento anual (da Universidade de Chicago) tinha inchado, alcançando
31 milhões de dólares, três vezes o nível de antes da guerra. Desse total, 22
milhões vieram de contratos com o governo.
A perversão das universidades
começou quando foram elas “feitas prisioneiras pelo acesso dos recrutas a
recursos até então inimagináveis”. E o financiamento do governo “levou as
universidades a construir uma burocracia proliferante, próprias para lidar com
os papéis produzidos pelas agências de financiamento”.
O dinheiro reestruturou a
academia norte-americana à sua própria imagem e o dinheiro é um instrumento
grosseiro. Até a Segunda Guerra Mundial, quase todas as instituições de ensino
superior tinham sido fundadas em nome da religião. Quando algum deus era o nome
da estrutura fundamental da academia, o céu era o limite para os tipos de
trabalho que ali poderiam ocorrer, porque os deuses transcendem qualquer
definição. Não quero que ignoremos o fato de que, no passado, a religião
freqüentemente contestou e aguilhoou a livre investigação. Mas quando o dólar
se torna a primeira palavra, o céu se fecha. A suposição de que o mercado aloca
eficientemente seus recursos é falsa; diz o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz: “O
que eles realmente fazem é produzir as pressões que aumentam a produtividade”.
Em 1973, Talcott Parsons e Gerald M. Platt alertaram, em The American University, que o crescente aumento de importância da
racionalidade cognitiva” prejudicaria a universidade porque esse valor
privilegiaria a burocracia mais simplificada. A vida acadêmica é um chamado,
não um emprego. Daí a propensão das necessidade acadêmicas a se orientar para
um mundo diferente daquele dominado pelo relógio de ponto. Como Stanley Cavell
disse: “Um elemento transcendente é indispensável na motivação da existência
moral”, principalmente para os estudiosos. Agora, a academia carece de qualquer
elemento transcendente, e estamos descobrindo as consequências disso.
O primeiro resultado do afluxo do
dinheiro na universidade foi o surgimento de uma nova e mais ampla camada
administrativa, situada acima da comunidade de estudiosos dos departamentos.
Assim como na sociedade norte-americana como um todo esses administradores se
tornaram mais e mais alienados de seus clientes e reestruturaram a universidade
como “uma máquina social” (expressão de Paul Goodman), com grande interesse em
produzir nomes de marca para as escolas. A universidade foi refeita à imagem e
semelhança da corporação norte-americana, incluindo os três gigantes da
indústria automobilística e os estúdios de Hollywood. Não espanta que tenhamos
em vigor agora, nas universidades do país inteiro, um sistema desvairado de
produção de celebridades. Oprah parece muito mais genuinamente investigativa e
intelectual, como sem dúvida é, que alguma das estrelas acadêmicas citadas nas
páginas da seção “Arts & Ideas” do New
York Times de sábado.
A sinergia4 – oh!
Jargão horroroso! – é considerada algo que ajudaria a universidade a vestir seu
uniforme e marchar direito, nos tempos da Segunda Guerra Mundial e da Guerra
Fria. O problema é que, até então, a vitalidade da universidade originava-se,
em geral, do fato de ela estar fora de compasso com a marcha do tempo. Esse é
um grande problema. O economista Peter Frumkin diz:
Se as
organizações não lucrativas (como as universidades) quiserem funcionar com
independência... vão precisar adotar medidas para proteger seu singular
conjunto de missões e mensagens. Agora. Aqueles que valorizam a
universidade como a sede do livre pesquisar não têm um minuto a perder.
Lindsay Waters é editora executivo da área de humanidades da Editora da
Universidade de Harvard. * Este artigo é a reprodução de trecho (páginas 9-19) do ensaio Inimigos
da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição (Editora Unesp, 2006).
Notas
1.
Uma vez que os nomes de tais editoras universitárias são conhecidos
internacionalmente, optamos por nao traduzi-los neste caso e em outros. (N.T.)
2.
Ou Bamiyan. Trata-se do trágico episódio no qual os rebeldes do Talibã
destruíram, no Afeganistão, em 1998, as estátuas milenares e gigantescas de
Buda. (N.T.)
3.
Trata-se do tipo de confronto ideologicamente orientado, comum na cultura
norte-americana a partir da década de 1960, intensificado em alguns aspectos
nos anos 1980, envolvendo também o meio universitário. (N.T.)
4.
de acordo com esse ponto de vista, o termo significa que duas forças ou fatores
atuando conjuntamente produzem um efeito superior àquele que seria obtido pela
soma dos efeitos produzidos de modo isolado. Obviamente, o texto aqui faz
referência ao fato de que juntar os interesses militares aos acadêmicos traria
grandes benefícios para ambas as partes. (N.T.)
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