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Artigo
Inimigos da esperança
Por Lindsay Waters*
10/11/2008

Ao longo dos últimos quatro anos, avisei aos estudiosos e editores de humanidades que se preparassem para um futuro no qual os editores, como eu, deixariam de publicar livros demais e passariam a publicar livros de menos. É justamente isso! Vimos diminuir, acentuadamente em alguns casos, o número de publicações na área de humanidade em instituições como a University of California Press, a Duke University Press e a Stanford University Press, entre outras1. No momento, o número de livros que os editores acadêmicos produzem, ainda é historicamente alto. Tudo isso está para mudar de forma drástica. Trata-se de um momento paradoxal, muito difícil de encarar, assim como os Últimos Dias preditos pela bíblia. Antes de chegarmos ao fundo, precisamos descobrir como parar e planejar uma estratégia para enfrentar este panorama.

O que valem os livros? Para que servem as publicações? A razão pela qual estou aqui, implorando diante de vocês, é minha paixão incontida pelos livros, que eu amo quase tanto quanto amo as pessoas. Se isso for fetichismo ou idolatria, sou culpado. Em termos coletivos podemos estar – como Marshall McLuhan sugeriu, anos atrás – prestes a deixar o tempo em que os livros eram fundamentais para o desenvolvimento humano. Perante nós vemos, vemo-nos obrigados, então, a descobrir aquilo que mais valorizamos nos livros, de modo a tentar reverter isso.

Este ensaio é a minha tentativa de exortar os acadêmicos a tomar medidas para preservar e proteger a independência de suas atividades, como escrever livros e artigos de forma como antigamente os concebiam, antes que o mercado se torne nossa prisão e o valor do livro seja depreciado. Como disse recentemente um membro de nosso conselho universitário, em uma universidade vai “sustentar unidades de negócio deficitárias... simplesmente porque diversas disciplinas universitárias são incapazes de aprender novos truques e examinar aquilo de que realmente tratam”. O céu está desabando, desde que entrei no ramo de publicações, no final da década de 1970. Urgente, agora, é fazer com que a terra não afunde sob nossos pés.

Falo do ponto de vista privilegiado de um editor sem fins lucrativos dentro da academia, que procura apenas cobrir os custos e, ao mesmo tempo, preservar a dignidade do pensamento e dos livros. Também falo como alguém que tem erudição. Quando apresentei este ensaio em uma conferência, alguns objetaram: “como você pode criticar o sistema, uma vez que vocês – da Harvard University Press – são o sistema? Você está falando de má-fé”. Eu digo que o dever de falar francamente é, primeiro, um dever que recai sobre os ombros daqueles que estão dentro do negócio. Nós, editores, não estamos fora de perigo simplesmente em virtude de nossa posição.

Hoje em dia, os editores acadêmicos enfrentam perigos oriundos de todos os lados: do público, dos contribuintes, dos professores, dos estudantes, dos bibliotecários, dos seus próprios colegas. Entre os administradores universitários e os próprios acadêmicos, que parecem se sentir forçados a concordar com expectativas que não são razoáveis, surgiu a idéia de que as editores universitárias deveriam se transformar em “centros lucrativos” e contribuir para o orçamento geral da universidade. De onde veio essa idéia? Ela é péssima. Desde de Gutenberg, temos registros financeiros contínuos sobre as publicações no Ocidente, e está provado que os livros são um negócio ruim. As novidades mecânicas e eletrônicas foram, e sempre serão, uma aposta melhor. E a idéia de tentar extrair dinheiro das editoras universitárias – as mais pobres de todas as editoras – é o mesmo que esperar que os ratos da igreja contribuam para a conservação do local.

Penso que nós, estudiosos editores, permitimos que os vendilhões entrassem no tempo. Precisamos controlar suas atividades, já que não os chutamos para fora, como Jesus fez. É claro que uma parcela significativa dos negócios das universidades consiste em operações para ganhar dinheiro. Não fiquem chocados. Muitas das nossas igrejas também o são! Além disso, as universidades têm dinheiro que deve ser bem empregado para não desperdiçar os seus talentos. Mas possuímos outros talentos – espirituais, não financeiros – que também precisam ser cultivados. A segunda preocupação, depois da transformação da universidade em um negocio, é minha convicção de que, ao deixarmos o controle do templo passar para os vendilhões, permitimos que aqueles que desejam esvaziar e, assim, profanar nossos bons livros e publicações se tornassem muito influentes em alguns campos, mas notadamente no das humanidades. Acredito que a comercialização da educação superior acabou consentindo que essa inovação desembocasse no departamento de humanidades de cada universidade. Como defende Jeremy Gunawardena, a questão central é a publicação: ela está no cerne do processo acadêmico.

As humanidades estudam livros e artefatos para encontrar os traços comuns de nossa condição humana. Afirmo que há um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja gerar números. Agora, as humanidades estão em crise porque diversos pressupostos sobre o que conta – quer dizer, não sendo diretos demais, sobre o que soma – é algo absolutamente inimigo das humanidades. Quando os livros deixam de ser meios complexos e se tornam, em vez disso, objetos sobre os quais quantificamos, então se segue que todos os outros assuntos que as humanidades estudam perdem seu valor. E, se os estudiosos de humanidades não tiverem uma clara noção do que lhes diz respeito, ninguém mais vai ter.

Nas últimas três décadas, a tendência a mecanizar a universidade mostrou ser letal para as humanidades. A batalha contra os livros no Ocidente é como o assalto às estátuas de Buda, em Bamayan2, na Ásia Central, num gesto violento e supostamente tomado em nome de valores mais altos. Devemos voltar ao início e perguntar, antes de qualquer coisa, por que alguém iria querer falar, escrever ou publicar. Precisamos nos reorientar em função do que mais importa. Precisamos ousar propor as questões fundamentais, porque aquilo que amamos corre um real perigo de morte.

“Falsificar os livros”: a Segunda Guerra Mundial e a transformação da universidade

Com “Falsificar os Livros”, me refiro aos problemas de contabilidade que agora flagelam as instituições norte-americanas: desde os desastres contábeis na Arthur Andersen até a inflação das notas nas faculdades e universidades. Isso também inclui os padrões de julgamento nas publicações acadêmicas. Estou falando de um contexto que todos nós conhecemos em parte, mas sobre o qual não ousamos generalizar, pois sabemos que não podemos ver o quadro todo. Todavia, chegou o momento de começarmos a ligar os pontos. Nossa falta de disposição para fazer papel de bobos é o primeiro elo da cadeia que nos prende. Precisamos arriscar alguns palpites mais fundamentados, mesmo que as evidências sejam incompletas. Meu palpite, então, é que os falsos lucros da Enron são como as falsas realizações da academia, representadas por montanhas de publicações que ninguém aprecia, nem lê. Como Willis Regier observa:

Nos últimos vinte anos, dobrou o número de novos livros publicados pela editora das universitárias da Califórnia, Colúmbia, MIT e Prnceton; nas universidades de Indiana e Yale, o número triplicou; e, em Stanford, se multiplicou por seis... Em 1980, a editora da Universidade de Cambridge publicou 543 novos títulos e a de Oxford, 802. Em 2000, Cambridge publicou 2.376 novos livros, e Oxford, 2.250... O total de lançamentos de todas as editoras universitárias, em 2000, foi de 31 milhões de livros.

Florestas inteiras estão sendo derrubadas para agradar aos grandes administradores universitários, que acreditam que estão melhorando o perfil de suas instituições ao elevar os “padrões” para as promoções e para se conseguir estabilidade no emprego (tenure)! E editores inescrupulosos e sedentos de dinheiro conspiram nesse jogo de falsas promessas. Métodos modernos e altamente sofisticados de contabilidade foram utilizados para computar o trabalho da comunidade de estudiosos, e está ocorrendo, como consequência, o inesperado esvaziamento do trabalho da academia.

O mundo acadêmico deixou-se arrastar pelo jogo contagioso de falsas promessas que parece ter infectado a maior parte da sociedade norte-americana? Se for assim, nossos problemas são mais sérios, e mais difíceis de entender, do que poderíamos supor. São cada vez mais insistentes os protestos contra o jogo de falsas promessas na sociedade norte-americana como um todo, como mostram livros bem conhecidos (por exemplo, The case against lawyers O processo contra os advogados de Catherine Crier). Para que ela não fique só, vou lhe fazer companhia. Crier denuncia que o crescimento aparentemente inevitável do controle administrativo está sufocando o trabalho real. Ela não culpa apenas os administradores; culpa igualmente os administrados: “Desprezo nossa deliberada ignorância e nossa passiva aceitação desses grilhões impostos ao espírito norte-americano”. Acho que esse tipo de protesto deve ser levado para a academia, também. Muita coisa está em risco, sinalizam nossas preocupações com a universidade. Acredito que Andrew Delbanco estava certo quando escreveu que, na “luta que se anuncia pela alma da universidade... há muito mais em jogo do que jamais houve nos dias gloriosos, e algumas vezes tolos, das Culture Wars3.

Era costume que os donos de companhias conhecessem o que produziam e gostassem de seus produtos. Hoje, administrar negócios é considerado complexo demais para permanecer nas mãos das pessoas que realmente gostam do que fazem. Temos de ser realistas cuidando das coisas, não é verdade? Mas, eu pergunto: o que então seriam as agulhas e as torres e todos os ornamentos góticos de nossos prédios acadêmicos, a não ser colleges e universidades nos quais as pessoas são encorajadas a dar asas a suas fantasias científicas, filosóficas e literárias? O tão falado mercado livre – que é qualquer coisa, menos livre – não é um conceito que deveríamos considerar estrutura fundamental para o livre curso das idéias.

O problema é que os defensores do mercado dizem que aquilo que não pode ser contado não é real. Lord Kelvin dizia o seguia o seguinte:

Quando podemos medir aquilo de que estamos falando, e expressá-lo em números, sabemos algo a seu respeito; mas quando não podemos expressá-lo em números, nosso conhecimento é pobre e insatisfatório.

Como as pessoas consideram o mercado livre a referência fundamental, acabamos adotando a mentalidade de “tamanho único” e comprovamos seu efeito desestabilizador sobre a universidade. Uma das figuras-chave na introdução dessa ideologia de mercado na academia foi o Prêmio Nobel R. H. Coase. Em seu texto vivamente polêmico da década de 1980, The market for good and the market for ideas O mercado de bens e o mercado de idéias ele argumenta que ambos os mercados precisavam ser vistos como um só: “Não acredito que seja válida a distinção entre um mercado de bens e um mercado de idéias”. Trata-se de uma doutrina inspirada nas idéias de Reagan e aplicada à atividade mental. O empirismo torna as pessoas escravas daquilo que podem ver e contar. É mais difícil a verdade se submeter ao mercado que um camelo passar pelo buraco de uma agulha.

Nossos problemas atuais começam antes de Reagan e Tatcher. A universidade norte-americana passou por mudanças dramáticas, durante a Segunda Guerra Mundial, por causa do modo pelo qual foi convocada a explorar, nesse período, os mistérios do átomo, a fim de desenvolver armas de destruição em massa. Primeiro foi Colúmbia e, então, Princeton, Chigago e, mais tarde, a Universidade da Califórnia. Todas foram arrastadas e alistadas no esforço de guerra sob o comando do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico, instituído em 1941. Os orçamentos das universidades aumentaram tremendamente. E, na mesma medida, aumentou a burocracia universitária. Desde a Segunda Guerra, o setor administrativo das universidades tem crescido em uma espiral fora de controle. Por exemplo, como diz William H. McNeill em uma dissertação sobre a Universidade de Chicago:

Por volta de 1964, o orçamento anual (da Universidade de Chicago) tinha inchado, alcançando 31 milhões de dólares, três vezes o nível de antes da guerra. Desse total, 22 milhões vieram de contratos com o governo.

A perversão das universidades começou quando foram elas “feitas prisioneiras pelo acesso dos recrutas a recursos até então inimagináveis”. E o financiamento do governo “levou as universidades a construir uma burocracia proliferante, próprias para lidar com os papéis produzidos pelas agências de financiamento”.

O dinheiro reestruturou a academia norte-americana à sua própria imagem e o dinheiro é um instrumento grosseiro. Até a Segunda Guerra Mundial, quase todas as instituições de ensino superior tinham sido fundadas em nome da religião. Quando algum deus era o nome da estrutura fundamental da academia, o céu era o limite para os tipos de trabalho que ali poderiam ocorrer, porque os deuses transcendem qualquer definição. Não quero que ignoremos o fato de que, no passado, a religião freqüentemente contestou e aguilhoou a livre investigação. Mas quando o dólar se torna a primeira palavra, o céu se fecha. A suposição de que o mercado aloca eficientemente seus recursos é falsa; diz o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz: “O que eles realmente fazem é produzir as pressões que aumentam a produtividade”. Em 1973, Talcott Parsons e Gerald M. Platt alertaram, em The American University, que o crescente aumento de importância da racionalidade cognitiva” prejudicaria a universidade porque esse valor privilegiaria a burocracia mais simplificada. A vida acadêmica é um chamado, não um emprego. Daí a propensão das necessidade acadêmicas a se orientar para um mundo diferente daquele dominado pelo relógio de ponto. Como Stanley Cavell disse: “Um elemento transcendente é indispensável na motivação da existência moral”, principalmente para os estudiosos. Agora, a academia carece de qualquer elemento transcendente, e estamos descobrindo as consequências disso.

O primeiro resultado do afluxo do dinheiro na universidade foi o surgimento de uma nova e mais ampla camada administrativa, situada acima da comunidade de estudiosos dos departamentos. Assim como na sociedade norte-americana como um todo esses administradores se tornaram mais e mais alienados de seus clientes e reestruturaram a universidade como “uma máquina social” (expressão de Paul Goodman), com grande interesse em produzir nomes de marca para as escolas. A universidade foi refeita à imagem e semelhança da corporação norte-americana, incluindo os três gigantes da indústria automobilística e os estúdios de Hollywood. Não espanta que tenhamos em vigor agora, nas universidades do país inteiro, um sistema desvairado de produção de celebridades. Oprah parece muito mais genuinamente investigativa e intelectual, como sem dúvida é, que alguma das estrelas acadêmicas citadas nas páginas da seção “Arts & Ideas” do New York Times de sábado.

A sinergia4 – oh! Jargão horroroso! – é considerada algo que ajudaria a universidade a vestir seu uniforme e marchar direito, nos tempos da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. O problema é que, até então, a vitalidade da universidade originava-se, em geral, do fato de ela estar fora de compasso com a marcha do tempo. Esse é um grande problema. O economista Peter Frumkin diz:

Se as organizações não lucrativas (como as universidades) quiserem funcionar com independência... vão precisar adotar medidas para proteger seu singular conjunto de missões e mensagens.

Agora. Aqueles que valorizam a universidade como a sede do livre pesquisar não têm um minuto a perder.


Lindsay Waters é editora executivo da área de humanidades da Editora da Universidade de Harvard.
* Este artigo é a reprodução de trecho (páginas 9-19) do ensaio
Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição (Editora Unesp, 2006).

Notas

1. Uma vez que os nomes de tais editoras universitárias são conhecidos internacionalmente, optamos por nao traduzi-los neste caso e em outros. (N.T.)

2. Ou Bamiyan. Trata-se do trágico episódio no qual os rebeldes do Talibã destruíram, no Afeganistão, em 1998, as estátuas milenares e gigantescas de Buda. (N.T.)

3. Trata-se do tipo de confronto ideologicamente orientado, comum na cultura norte-americana a partir da década de 1960, intensificado em alguns aspectos nos anos 1980, envolvendo também o meio universitário. (N.T.)

4. de acordo com esse ponto de vista, o termo significa que duas forças ou fatores atuando conjuntamente produzem um efeito superior àquele que seria obtido pela soma dos efeitos produzidos de modo isolado. Obviamente, o texto aqui faz referência ao fato de que juntar os interesses militares aos acadêmicos traria grandes benefícios para ambas as partes. (N.T.)