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Reportagem
Muitos caminhos e um único desejo: a busca pela paz espiritual
Por Michele Gonçalves e Tatiana Venancio
10/09/2014

Parece uma afirmação uníssona: seja por meio da mente, do corpo ou da alma, em primeira e última instância, queremos ser felizes. Ao longo de nossa história, seja ela contada a partir da perspectiva filosófica, analítica ou religiosa, e esteja ela pautada nos costumes e regras ocidentais ou orientais, muito poucas certezas se afirmam assim, tão onipresentes, quanto o desejo incessante pela felicidade.

O ser humano está sempre à procura de um sentido para a vida, coisa que o faz viver intensamente ou, paradoxalmente, fugir intensamente de viver. Mesmo com tamanha busca, não há teoria filosófica, psicanalítica, teológica ou de qualquer outra natureza que dê conta de explicar totalmente as alegrias, as frustrações e os sofrimentos cotidianos que constituem a sucessão de momentos da vida, e nela, o que chamamos de felicidade.

Os esforços em entender o que de forma escrita parece tão simples (felicidade) não estão, entretanto, fadados ao niilismo. Pelo contrário, dentre muitas serventias, eles nos auxiliam a compreender que, mesmo em meio ao caos cotidiano, é possível sim, e muito, desfrutar a felicidade, esteja ela em momentos ou em permanência. O que muda de fato nessa busca são os conceitos que temos e os caminhos que traçamos para abraçá-la.

A religião e a filosofia na busca pela definição de felicidade

Ao longo dos séculos, estudiosos teceram discussões e elaboraram teorias com o intuito de se elevar os conhecimentos sobre a felicidade. Já no século IV antes de Cristo (a. C.), Sócrates iniciou a discussão acerca da felicidade como busca responsável do indivíduo e defendeu que a filosofia poderia contribuir com tal busca. Aristóteles, por sua vez, continuou a pesquisa de Sócrates, concluindo que os objetivos da sociedade, tais como beleza, riqueza, saúde e poder eram meios de atingir a felicidade.

Tempos depois, o epicurismo, doutrina filosófica fundada por Epicuro cerca de 307 a. C., defendeu o conceito de felicidade relacionado à ausência de dor física somada à tranquilidade da alma. “Para o epicurismo, o prazer consistia no mínimo necessário: é famosa a carta em que o filósofo diz que lhe bastaria um pedaço de queijo e um copo de água. Segundo Epicuro, ao somar o mínimo necessário à ausência de perturbação, a felicidade seria alcançada”, diz Adriano Machado Ribeiro, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Sêneca, seguidor do estoicismo, doutrina iniciada no período helenista (III a. C.), cujo eixo condutor central era a razão, acreditava que apenas pela compreensão da natureza o homem poderia ser feliz. “A felicidade só poderia, assim, ser alcançada pelo sábio. Tal conhecimento partiria do sensível para apreender a ordem natural constituída como um corpo humano, ou seja, haveria um pneuma (um sopro) divino, que nada mais é que um deus que penetra todas as coisas e nada deixa escapar. O sábio deveria conhecer e aceitar tal ordem, seguindo seu curso”, explica Ribeiro.

Ao contrário de Epicuro, Sêneca acreditava que a virtude é a própria felicidade e que o prazer não deveria ser buscado por si só. Para ele, uma pessoa que só busca o prazer ficaria submetida ao sofrimento. “O sábio, por compreender seu papel no mundo, age em conformidade a essa ordenação. Sendo assim, ele reconhece que os prazeres são enganosos, pois se não forem acompanhados pela razão, separam-se da virtude, que nada mais é do que a liberdade para aceitar as leis da natureza e, assim, agir virtuosamente”, afirma o pesquisador.

Nos dias atuais, inúmeros estudos têm demonstrado que as religiões, em geral, proporcionam ao indivíduo uma certa sensação de amparo; pessoas reunidas em missas, cultos e eventos religiosos, de fato, sentem prazer nesses ambientes e, consequentemente, se sentem mais felizes. Mais que juntar pessoas, entretanto, a função primordial da religião parece ser a de promover um encontro, seja com algum eu interior, seja com uma luz divina e criadora, seja com muitas divindades ao mesmo tempo.

O budismo, por exemplo, acredita que a felicidade é um estado puramente mental. Não há nada físico, e a crença, nesse sentido, é apenas o meio pelo qual se desenvolvem esses estados mentais felizes. Por isso mesmo, essa religião pode também ser interpretada como filosofia ou estilo de vida. “Na realidade, é apenas um método para tornar sua mente virtuosa, e em paz. Ela é muito rica em mantras e rituais, mas o objetivo comum é a felicidade permanente, através do cessar do sofrimento. Só isso. O resto é do gosto de cada um”, explica Gen Kelsang Tsultrim, monge brasileiro da tradição budista Kadampa. Segundo Tsultrim, a causa primordial de felicidade é a paz interior. “Não importa quais são as condições externas. Inclusive no que diz respeito às doenças. Uma mente tranquila é o que vai garantir a diferença entre as experiências de felicidade ou infelicidade”, explica.

Um artigo intitulado “Religion, social networks, and life satisfaction”, publicado em 2010 por pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apontou que pessoas religiosas são mais satisfeitas com a vida, graças às redes sociais que constroem ao frequentar os cultos. Os resultados se aplicam a católicos e evangélicos, que eram a maioria entre os entrevistados naquele estudo. Em outra pesquisa publicada em 2002 nos Estados Unidos e intitulada “ Religion and the quality of life”, o autor, Ferrirs Abbott, concluiu que organizações religiosas contribuem para a integração da comunidade, aumentando a qualidade de vida dos envolvidos. Ele ressaltou no artigo que a concepção americana de uma boa vida é baseada fortemente em ideais judaico-cristãos, e ainda, que a religião pode explicar um propósito na vida que leva a uma sensação de bem-estar.

Além das religiões cristãs, as religiões orientais, especialmente o budismo e suas práticas de meditação, também são objetos de inúmeros estudos acerca de seu impacto no equilíbrio mental dos praticantes. No livro A arte da felicidade, o 14º Dalai Lama diz que a felicidade pode ser alcançada a partir do treinamento da mente. Segundo ele, por meio de uma disciplina interior podemos transformar nossas atitudes.

Outras buscas no caminho da paz física e mental

Muitas têm sido as buscas humanas pelo encontro da paz interior. Para além do entendimento filosófico ou religioso, e também da medicina tradicional, iniciativas “alternativas” podem ajudar muito nesse nobre propósito. Na realidade, o que antes já foi chamado de alternativo hoje ganha outro nome: integrativo, afirma Marcos Rojo, mestre em neurologia pela Faculdade de Medicina da USP e professor de yoga do Centro de Práticas Esportivas da mesma universidade.

Ele comenta que o yoga pode ser entendido hoje como uma medicina integrativa que auxilia no processo de cura e recuperação, fazendo com que, dentre outros, os pacientes possam suportar melhor os tratamentos. Rojo explica que a grande maioria das doenças tem um fundo psicossomático, ou seja, começam na mente. Nesse sentido, a técnica, segundo ele, propõe influenciar os padrões emocionais através das modificações provocadas no tônus muscular, na postura e no padrão respiratório, com o intuito de atingir estágios mais sutis, o que ele chama de essência. “O yoga não é para o corpo, mas é através do corpo”, ensina.

Outra técnica que segue esse princípio elucidado por Rojo, qual seja, a cura através do corpo, é a microfisioterapia. Vertente da medicina francesa, ela considera que os “traumas”, sejam eles emocionais, físicos ou tóxicos deixam registros no nível celular, uma espécie de cicatriz sobre a qual nosso organismo por si só não tem poder de reação. A solução do problema, nesse caso, acontece através de toques sutis nesses locais do corpo, que estimulam o processo de auto cura através do reestabelecimento das conexões perdidas durante o trauma. Os registros traumáticos são, assim, desbloqueados pelo corpo, mas afetam também, no nível emocional, a resposta do organismo, comenta Ricardo Hoffmann, fisioterapeuta e especialista na área.

Hoffmann vê a microfisioterapia como uma alternativa bastante eficaz na busca pela felicidade. “Ouço inúmeros relatos de pessoas que conseguiram superar traumas do passado e readquirir estímulos para buscar um novo sentido para suas vidas”, conta. Para ele, talvez o conceito de felicidade na microfisioterapia venha do reestabelecimento do equilíbrio entre corpo e mente, entendendo que o passado não pode mais ser mudado, mas que os registros deixados, esses sim, podem ser desbloqueados em prol do resgate do equilíbrio.

Ver corpo e mente como unidade está, ao que tudo indica, no cerne da questão da felicidade. A meditação, por exemplo, técnica fundamental tanto no yoga quanto no budismo, é um exemplo claro de comunhão entre nossa porção física e psíquica, e também constitui-se, seguramente, segundo muitos especialistas, em um dos caminhos para felicidade. Para o budismo, comenta o monge Tsultrim, a única maneira de se chegar à paz, posto que ela é puramente mental, é através da meditação. É ela que acalmará a mente e a acostumará com estados virtuosos, diferente do sofrimento que ela está acostumada a habitar.

Segundo a crença budista, é porque a mente se apega à concretude de uma suposta realidade – a qual não é da maneira como parece ser, posto que é uma imputação da própria mente –, que a mesma gera inquietude e, consequentemente, sofrimento. Nosso equívoco conceitual perante a realidade, dessa forma, gera confusão, ignorância, e ações não virtuosas. A mente calma ajuda, assim, a desenvolver um olhar mais aguçado para a realidade e a sabedoria que percebe a verdadeira natureza dos fenômenos, a impermanência, gerando, a partir disso, ações virtuosas e pensamentos positivos. “Em suma, a meditação nos ajuda a transcender o estágio grosseiro da mente para alcançar níveis mais sutis, familiariza a mente com estados mentais virtuosos, os quais produzem paz mental. E uma mente em paz é feliz”, finaliza o monge.

As buscas não param no trato da mente ou, de forma direta, do corpo físico, como no caso dos exercícios da yoga ou do restabelecimento de conexões da microfiosioterapia. A saúde é também cada vez mais assunto de preocupação, quando se pensa numa vida integralmente equilibrada. Nesse sentido, a alimentação exerce papel fundamental, não apenas para manter o corpo resistente e apto a desenvolver as atividades cotidianas, mas também para manter a mente clara e tranquila. Para a medicina tradicional indiana ayurveda, por exemplo, saúde é um estado de felicidade, explica o presidente da Associação Brasileira de Ayurveda, também clínico geral, reumatologista e especialista em acupuntura Aderson Moreira da Rocha.

O ayurveda aborda o ser humano através dos doshas, humores biológicos que são expressões dos cinco elementos da natureza (ar, água, fogo, terra e espaço). A alimentação é a ferramenta terapêutica de equilíbrio dos doshas, e ao equilibrá-los, segundo a medicina oriental, harmonizamos corpo, mente e emoções. “O alimento pode ser medicamento para um e veneno para outro. Por isso, necessitamos de uma abordagem individualizada no tratamento dos nossos desequilíbrios. Quando os doshas estão equilibrados, os sentidos são utilizados adequadamente, as excreções são eliminadas, a mente encontra-se confortável e o indivíduo tem contato com sua consciência”, afirma Rocha.

Mais integrativa que a medicina ocidental, a tradição oriental tem contribuído com diferentes olhares no tratamento das mazelas tanto físicas quanto mentais. É o caso, além do ayurveda, de terapias mais plenamente reconhecidas no ocidente, como a homeopatia e a acupuntura. Trabalhando de forma mais holística, com o equilíbrio das energias do corpo, essas técnicas, segundo o especialista, causam menos efeitos adversos que as drogas alopáticas, que tendem a focar a solução dos problemas de forma mais orgânica e química.

A ansiedade, o estresse e a depressão são verdadeiras pandemias na sociedade do século XXI, e isso é, segundo Rocha, decorrente do nosso estilo de vida em desarmonia com as leis da natureza. “Buscamos a felicidade onde ela não está: nos sentidos”, avalia. Seu conselho diante dessa constatação é simples: “Que a felicidade dependa mais de um autoconhecimento no aqui e agora e não na busca desenfreada de prazeres efêmeros dos sentidos”.

Caminhos lampejados de inesperado

A felicidade é uma surpresa que assusta. Esta é a definição simples do doutor e psicanalista Jorge Forbes, presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana. Ele comenta que, para a psicanálise de Freud, e mais especificamente a de Lacan, a felicidade é uma satisfação surpreendente na qual, por lampejos, é possível viver e ser tomado por um estado que ultrapassa todos os níveis do conhecimento, da necessidade e daquilo que é adequado. Ela está, assim, ligada não ao que é necessário, mas ao campo do desejo.

Grosso modo, explica o psicanalista, a necessidade é a expressão de uma satisfação comum a todos, como tomar água, andar ou tomar banho; já o desejo é aquilo que falta para dar prazer a uma pessoa. Por isso mesmo, a felicidade situa-se nesse segundo campo, o das coisas não comuns, o da falta de ar e frio na barriga. “A necessidade não te eleva, não te surpreende, não te equivoca, não te inspira. Ela apenas te mantém vivo. O desejo, por outro lado, é para viver. Ele é inimigo da resposta pronta, do bom senso, do pasteurizado, e é amigo do detalhe, da diferença, do equívoco, do surpreendente, da lembrança, do acaso”, enfatiza.

Ao contrário do que comumente se pensa, a felicidade, portanto, não é da ordem dos acontecimentos comuns, tampouco tem a ver com o estado catalogável que lhe é atribuído. “Nos últimos tempos, se fala muito em qualidade de vida como sendo um bem para todos, como uma definição generalizada que inclui uma boa casa, um relacionamento estável e filhos educados; enfim, uma moral politicamente correta muito distante da real ideia de felicidade do ponto de vista psicanalítico”, afirma Forbes.

Ele explica que ser feliz não é algo ligado ao direito, ao merecimento ou ao esforço. Uma felicidade pensada dessa forma seria, em sua visão, moralista, na qual a recompensa de ser feliz é o mérito do trabalho árduo; conceito herdado da inocência (ou crueldade?) da modernidade – irmã caçula dos tempos atuais – em que se insistia em instaurar um conjunto de costumes para muitos. Na pós-modernidade, quiçá ética ao invés de moralista, cada qual tem responsabilidade pessoal e intransferível frente à sua subjetividade e ao seu desejo, e então, a felicidade não é mais uma questão de recompensa, não está relacionada à exatidão de um futuro, nem à esperança saudosista da superação de muitos passados. Está, sim, comprometida com o acaso e com o sonho. “De fato, não somos amados por termos direito a sê-lo, nem somos amados meramente por aquilo que somos, mas sim pelo que não somos, por alguma coisa esquisita, além de nós”, confessa Forbes.

Justamente por ser da ordem da surpresa, a felicidade por vezes assusta e faz muitos corajosos pestanejarem. “Junto dela vem uma perda de controle que nos leva a sentir-nos atônitos e muitas vezes ocasiona uma crise de identidade, uma angústia profunda, porque nos tira a programação do hábito”, afirma o psicanalista. Auto-sabotagem, receio, medo em demasia podem tentar explicar o frenesi identitário causado, quem diria, pelo simples fato de ser feliz: é algo tão incomum que gera, no mínimo, espanto. E, nesse caso, incomum não é sinônimo de raro. Embora por lampejos, felicidade pode ou não existir em frequência, e isso advém das experiências individuais. Em todas as formas, porém, ela é incomum, porque é de sua natureza: a de ser singular. Forbes explica que a primeira reação da mente frente a uma descarga hormonal não usual de satisfação é um sinal de alerta de descontrole. Por isso mesmo, a primeira sensação é um perder-se sem fim nesse estranho sentimento de prazer e paz. Uma perda de equilíbrio, de chão, de direção, de certeza, que pode, para ele, ser positiva ou negativa, a depender do tipo de filtragem que será feita a partir disso.

Alienar-se na imagem de outrem não seria o caminho mais feliz, aponta Forbes. Ser escravo da expectativa do desejo do outro é, segundo ele, o equívoco mais frequente na busca pela felicidade. Para Lacan, o ser humano se cria a partir do desejo de saciar outros desejos, e a reiteração, nessa alienação, de crer a felicidade a partir de certa correspondência de outras expectativas, é a pior perspectiva para quem, de fato, quer ser feliz. “A base do superego, conceito freudiano, é justamente tentar corresponder à ideia do que o outro quer de mim, porque ele, o outro, sempre dirá: quase, mais ainda não é assim (especialmente porque o outro não tem a menor ideia do que de fato deseja) e isso gera a frustração e o desespero de estar, sempre, tentando encontrar o quase”, salienta o psicanalista. O segundo caminho é, para Forbes, buscar alterar a bússola habitual que nos leva à tentativa de correspondência da expectativa do outro. “A análise, nesse sentido, trabalha dando condições para que o indivíduo possa se responsabilizar por sua felicidade e suas qualidades, e para que ele suporte esse encontro feliz, essa surpresa, e não saia correndo da crise que vem junto a isso”.

Talvez, então, seja prudente tomar o filtro certo, o caminho do meio, quando se dá o encontro assustador com a felicidade. Perdurar, entretanto, parece um tanto quanto improvável. “A felicidade não é necessária, progressiva, linear, nem conhecida. Ela é surpreendente, do acaso, desconcertante, enigmática, equivocada... e muito boa”, poetiza Jorge Forbes.