Imagine se você tivesse a chance de patrocinar um dos seus cineastas favoritos na produção de um filme. Troque “filme” por disco, revista em quadrinhos, livro, jogo ou até mesmo pesquisa científica e temos a premissa básica do crowdfunding ou financiamento coletivo. Em outras palavras, um processo que permite ao público colaborar com o financiamento de um projeto.
A oportunidade de tirar um sonho do papel com uma ajuda financeira de outros que simpatizam com suas ideias está atraindo cada vez mais pessoas e tornou várias plataformas famosas na internet, caso de Kickstarter, Indiegogo, Catarse, Kickante e várias outras. Entretanto, no meio de tanta empolgação, muito pouco se fala de forma realista sobre esse tipo de investimento, comenta o mestre em comunicação e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Erick Felinto.
Em seu artigo “Crowdfunding: entre as multidões e as corporações”, Felinto aponta que ainda é cedo para dizer onde esse modelo pode chegar. “Toda a falação e entusiasmo em torno da prática obscurecem uma percepção mais realista das possibilidades do crowdfunding. Não se trata de uma panaceia para os males dos empreendedores independentes, e as histórias de sucesso são menos frequentes do que pode parecer à primeira vista”, argumenta.
O pesquisador de cibercultura ainda aponta em seu artigo para problemas estruturais que afligem as plataformas de crowdfunding e cita a falta de transparência e a ausência de um sistema eficaz de distribuição dos valores como algumas das falhas do modelo.
Taxa de sucesso
Desde seu lançamento, em abril de 2009, o Kickstarter já liberou US$ 1,8 bilhão de doações para campanhas. Entretanto, a taxa de sucesso da plataforma é de 36,61%. Ou seja, pouco mais de três vaquinhas, em cada dez, saem vitoriosas.
No principal concorrente, o Indiegogo, a taxa de sucesso é ainda menor. Um levantamento feito pelo The Verge em 2013 aponta que apenas uma em cada dez campanhas conseguem atingir seu objetivo. A plataforma, no entanto, permite que o dinheiro arrecadado fique com criador da campanha mesmo que a meta estipulada não seja alcançada. Plataformas brasileiras, como Catarse e Kickante, têm taxas de sucesso maiores: pouco mais de 50% no Catarse e 70% na Kickante.
A co-fundadora e membro do conselho diretor da Kickante, Candice Pascoal, explica que pedir investimento em vaquinhas da internet é mais complexo do que parece e requer infraestrutura – e vai muito além de ter uma ideia. “Não é só para quem precisa. É também para quem pode. Se você tem uma rede de contatos e um projeto, você consegue arrecadar e ser independente”.
A atual CEO da Kickante, Tahiana D'Egmont, completa: é importante que as campanhas ganhem a empatia dos possíveis patrocinadores. “Acredito que o maior desafio seja a captação da meta depender muito da forma como o criador divulgará sua campanha. Para arrecadar, precisa divulgar!”, explica.
Dentre as razões mais apontadas para que campanhas não atinjam seus objetivos estão: falta de divulgação, pouco tempo dedicado, metas fora da realidade e outros imprevistos.
Financiar não é comprar
Os problemas vão além das campanhas mal sucedidas. Em uma de suas páginas de ajuda, o Kickstarter deixa claro que não é uma loja. A plataforma esclarece que “as pessoas não estão comprando coisas que já existem – estão ajudando a criar coisas novas”. A mensagem ainda informa que “alguns projetos vão maravilhosamente bem e outros vão passar por obstáculos”. Os colaboradores precisam estar preparados para um pouco das duas situações.
Da mesma forma, uma campanha de sucesso não garante que o produto planejado seja entregue. Um exemplo bastante marcante é o relógio CST-01. Anunciado em 2013 como o relógio mais fino do mundo, o projeto arrecadou US$ 1,02 milhão (aproximadamente R$ 3,9 milhões). A campanha pedia US$ 200 mil (cerca de R$ 764 mil).
As recompensas eram tentadoras. Por apenas US$ 99 (cerca de R$ 370) os colaboradores receberiam um modelo do relógio e o orgulho de terem tirado o projeto do papel. Além disso, a empresa por trás da campanha, a Central Standard Time, prometia edições especiais e um carregador sem fio para os doadores mais generosos.
Levantar mais de cinco vezes o valor da pedida inicial não foi suficiente para que a startup Central Standard Time conseguisse criar o produto. Uma mistura de pulseira e relógio, o CST-01 seria montado em uma peça única de aço inoxidável flexível e teria cerca de 0,5 milímetro de espessura. Um projeto ambicioso, mas pouco eficiente em termos de produção.
Após enfrentar uma série de problemas com fornecedores e com a montagem do delicado acessório, os empreendedores de Chicago postaram um pedido de desculpas a seus incentivadores no Kickstarter. Eles ainda informam que tentam vender as peças e outros ativos da companhia. Não há informações sobre qualquer devolução de valor para os 7.658 doadores.
O lançamento de um relógio tão fino atraiu a atenção da mídia especializada, o que ajudou a aumentar a repercussão do projeto. Mas é possível responsabilizar a plataforma ou mesmo os jornalistas por incentivarem o investimento em um projeto mal sucedido?
A CEO da Kickante acredita que não entregar um produto é um “erro grave”, e que as plataformas devem ter responsabilidade nos casos. “Não entregar o produto é um erro grave e algo que nunca sofremos. Fazemos follow up após encerramento das campanhas para acompanhar a entrega de recompensas. A responsabilidade é exclusivamente do criador da campanha, mas sempre acompanhamos para que o processo não fique solto”, explica.
No artigo “Crowdfunding e indústria cultural: as novas relações de produção e consumo”, a doutoranda em comunicação e informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vanessa Valiati, comenta que o sistema “torna possível a existência de obras que talvez não fossem concluídas se dependessem dos padrões de produção massificada. Além disso, o poder de decisão, na indústria cultural, é centrado nas mãos de poucos e, com o auxílio de sites de crowdfunding, esse poder de decisão passa a ser responsabilidade da maioria”.
Em algumas situações, é possível responsabilizar a maioria por uma “aposta errada”, como um relógio complexo demais ou um projeto de brincadeira que dá certo. Não é o caso do jogo chamado Mansion Lord. Após receber mais de US$ 30 mil (cerca de R$ 115 mil) no Kickstarter, os desenvolvedores da Golgom Games simplesmente desapareceram. A meta foi atingida em setembro de 2013, com 1040 doações.
Em 2014, um ano após a vaquinha, os responsáveis pela campanha postaram uma mensagem com uma conta no serviço PayPal para recebimento de mais dinheiro. Desde então, as redes sociais da produtora não postam mais conteúdo e não há expectativa de que Mansion Lord chegue a ser lançado.
Um colaborador da campanha contou ao site Kotaku que entrou em contato com o Kickstarter pedindo ajuda. A resposta foi a pior possível: a plataforma disse que os colaboradores deveriam resolver a questão diretamente com os criadores desaparecidos da campanha.
Crowdfunding tem futuro
Para Felinto, apesar das falhas, o financiamento coletivo pode ser considerado como uma das tendências de sucesso mundial, e ainda tem espaço para crescer no Brasil. “As pessoas estão tendo força para a criação de coisas novas. Produzir, definir os rumos da própria tecnologia. Isso parece muito interessante e acredito nessa tendência para os próximos anos. Indivíduos que podem usar a força do coletivo e se aglutinarem em torno de temas que acreditem”, comenta o pesquisador.
Felinto também explica que o crowdfunding reflete o “poder do pequeno”, ou seja, a possibilidade de que um grupo ou nicho específico consiga realizar seus desejos ou projetos reunindo simpatizantes pela internet. Para isso, é preciso passar por uma fase de adaptação e determinação das responsabilidades desse novo método de investimento que reforça o poder do coletivo.
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