Somos uma gente que semeia e cria!
Somos os homens e as mulheres
que aram em agosto e semeiam em setembro,
o que em março o sol e a terra ofertam como
fruto.
Somos uma gente da terra e cor da terra
que à noite apaga o fogo do fogão
e dorme cedo, quando se calam os passarinhos
para que antes do sol da manhã um outro dia
nos encontre de pé a caminho da roça,
com o chapéu de palha na cabeça
e a enxada polida de suor nas mãos.
Colhemos com as mãos e não com máquinas
tudo o que depois alimenta os nossos corpos
e o corpo branco das gentes da cidade.
Os que comem do que nós colhemos
e imaginam que o que é fruto de nosso trabalho
nasce pronto no mercado dos donos que
enriquecem
multiplicando por quatro o valor do que sai de
nossas mãos.
Nós, os que regamos a muda o que colhemos o
grão
com o suor do corpo curvado sobre a terra.
A um deus de quem aprendemos a esperar o bem
mesmo quando a seca seca o rosto do sertão,
dizemos entre contas nos dedos as nossas preces
em noites de chuva e dias de sol,
em tempos de lavrar e em dias de colher.
Somos as mulheres e os homens
do campo e do mar, dos rios e das florestas
e da caatinga verde e do cerrado das águas.
Somos de onde os que chegam de longe
e buscam nas paragens onde vivemos
apenas o azul da paisagem
a beleza turista e calma do campo
e o prazer pitoresco da "roça"
passam e sequer param para nos ver de perto.
E quando nos encontram acaso na beira da
estrada
eles se espantam de haver "ali",
calçados de botinas ou de alpercatas
uma gente da terra, salpicada de barro.
E alguns, pedem a nossos corpos fatigados
e tingidos da cor ocre a poder do sol
que façam uma pose de "povo
pitoresco".
E nos enquadram e disparam fotos
e seqüestram imagens de uma gente
a quem não perguntam o nome
e de quem nem importam a vida e o destino.
imagens de uma "gente-da-roça"
que em suas casas eles exibem aos outros
como se, entre os outros do campo,
fôssemos os mais curiosos animais do sertão.
Somos uma gente de muitos nomes:
camponeses, lavradores, agricultores
seringueiros, extrativistas, castanheiros
sertanejos, quilombolas, caipiras
geralistas, chapadeiros, beradeiros
barranqueiros, caiçaras, pescadores.
Mas entre tantos nomes, somos uma gente só.
Aquela que com o trabalho dos dias e a toada da
vida
arranca da terra, das árvores e das águas
como quem faz nascer a cada ano um filho,
a seiva da vida, a comida na mesa
o alimento dos dias, a fibra da roupa
a madeira da casa, o fruto e o pão.
Bem mais do que imaginam
os que longe do campo se alimentam
do fruto de nossas dores e suores,
somos aqueles que em nome
do que há de mais humano na vida
entre uma geração e a outra
aprendemos a cuidar da terra
e como ela reverdecer o mundo.
Desde quando eles chegaram, vindos de longe
resistimos ao poder do mal e dos seus terrores.
Pois somos mais uma outra geração
das gentes que depois de semearem
entre os avós e o netos e os filhos dos netos
a mesma terra, com as mesmas águas,
foram dela expulsos a poder de enganos.
E pela estrada saímos em busca do lugar
onde estamos, mas não as nossas raízes.
Lá entre terras de onde tiramos com a alma e as
mãos
o milho e a mandioca, o arroz e o feijão,
os donos das terras que eram nossas
espalham agora a poder de máquina e ganância
o gado e o deserto, a soja e o desamparo,
a cana e tudo o que deixou de ser dom da terra
para ser o produto da mercadoria do dinheiro.
Mas nós, expulsos da terra e lutando por ela,
cercados entre o rio e o arame farpado,
nós, as gentes do campo, bem sabemos
o que eles não sabem ou esqueceram:
"Quando a última árvore for abatida,
quando a última terra for desertada,
quando o último fruto for colhido,
quando a última fonte for secada
quando o último peixe for comido,
os senhores da terra saberão
que o lucro não sacia a sede
e nem o dinheiro não se come".
Os saberes que aprendemos e sabemos
são bem mais do que as nossas ciências.
Ao logo dos séculos eles são a nossa sabedoria:
o saber do plantar, do criar,
do conhecer o tempo e dizer a poesia.
Entre uma geração e outra, entre homens e
mulheres
partilhamos ao redor do fogão aceso,
em volta da mesa pobre de uma casa honrada
ou no círculo do trabalho enquanto se amanha a
terra,
tanto o ensino do cuidar da lavoura
quanto o de tratar da safra dos filhos e das
filhas.
E os nomes dos lugares e os segredos da vida,
e os ponteios da viola e os saberes dos ditos
que são a nossa cartilha e o dicionário,
e mais a memória não-escrita de quem somos
de quem viemos e de onde estamos e vivemos.
O que as gentes letradas da cidade
imaginam ser o "saber dos que nada
sabem"
ou o conhecimento inútil do "caipira"
é a nossa sabedoria ancestral do campo.
Com ela alimentamos os doutores,
povoamos de bens a mesa dos maus
e falamos a um Deus que eles desconhecem,
pois a muito esqueceram o dom da troca,
a gratuidade da partilha e a vida solidária
em nome do desejo do ganho e do lucro
e, solitários, longe do amor, adoram o
dinheiro.
Com a sabedoria das culturas que nossos antigos
criaram
e nossos filhos recriam com os mesmos e outros
gestos e nomes
perdemos a conta dos anos em que a gente do campo
espalha pela Terra e a terra as sementes do
bem.
Trabalhamos com as nossas mãos e as nossas
mentes
o corpo da terra como uma mãe de todos.
Aquela que nos acolhe como filhos
e em silêncio nos espera a cada dia,
para que com o que aprendemos e fazemos
colhamos de seu ventre a seiva da vida.
Com o que aprendemos a saber
lavramos outras culturas que não o milho e o
feijão.
Juntos criamos entre rimas os nossos cantos
entre o coco, o cordel e a moda de viola,
os bois-de-janeiro, as congadas e os reisados.
E inventamos as danças que à noite
bailam os netos, as filhas e as avós.
Nossa arte ancestral é para nós o canto e a
prece
de uma vida camponesa que desde um tempo
anterior ao arame da cerca, ao trator e à
ceifadeira
nós sabíamos e seguimos sabendo viver,
como a prece da rezadeira, o ritual da
parteira,
o dizer do curador, o cantorio do cantador,
e os gestos coletivos do rito e o festar da
festa.
E tudo isto e tão mais, tanto mais
é apenas a face festiva e festeira de quem
somos.
Porque lá bem no fundo de nós e nossa gente
somos as mulheres e os homens
que cedo aprenderam a viver e a partilhar
a lei do amor, a ética do trabalho,
os costumes a honra e os preceitos da vida.
Somos os que sabem, sem o saber da escola
a sermos ao mesmo tempo serenos e guerreiros.
Por isso mesmo, expulsos e subjugados,
cercados no campo ou exilados na cidade
como nunca, como sempre, estamos de pé.
Estamos de pé e com os olhos no agora e no
horizonte
não somente semeamos, resistimos.
Não apenas colhemos, nós lutamos.
Não apenas esperamos, nós agimos.
Porque mais do que ontem, mais do que nunca
somos uma gente da terra e do campo,
as mulheres e os homens, os jovens, adultos e
velhos
que entre o milho e a mandioca semeamos também
a luta pela terra e a vida dos seres da Terra e
da vida
Como seres que sabem o saber dos que semeiam a
vida,
com a sabedoria que é nossa desvendamos os
segredos do tempo,
e ao olhar o vento e o voo dos pássaros
aprendemos a conhecer os rumos do hoje e do
amanhã.
Por isto, oprimidos, expulsos e explorados
somos uma gente de pé e vivemos da luta e da
esperança,
pois não construímos apenas casas e nem
semeamos milho.
Nós semeamos agora a lavoura do mundo de
amanhã.
Nós espalhamos pela Terra a lenta e persistente
luta
para que algum dia não muito longe
o mundo de todas as pessoas livres da Terra
seja a colheita da justiça, da igualdade, da
liberdade
e do amor entre todos e todas, sem senhores e
servos,
Em um tempo fraterno e solidário
em que o mundo inteiro venha a ser
o que foi e sonha ser o Mundo da Gente da
Terra.
Carlos Rodrigues Brandão é professor colaborador do programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp e professor colaborador do POSGEO da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Escreveu artigos e livros nas áreas
de antropologia, educação e literatura.
*Escrito a mão em um caderno, de improviso, em
Salvador, Bahia - entre 1 e 3 de setembro de 2014 durante o IV Seminário de
Educação do Campo e Contemporaneidade Campesinato, Culturas e Educação. Revisto
precariamente em Campinas, em 5 de setembro do mesmo ano. Usos devidos, cópias,
e até mesmo desejadas melhoras neste improviso podem sem feitas à vontade, sem
necessidade de pedido de autorização.
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