REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Agroecologia e meio ambiente* - Calos Vogt
Reportagens
Plantas não convencionais são utilizadas como alternativa na alimentação
Juan Mattheus
Dedicada à alimentação, 13ª edição da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia faz pulsar a agroecologia
Erik Nardini Medina
O caminho para fiscalização e certificação
Carolina Medeiros
Conceito em disputa, agroecologia atribui pesos equivalentes aos aspectos econômicos, sociais e ambientais da produção
Gustavo Almeida e Tássia Biazon
Movimento ambicioso, agroecologia depende de novo mercado consumidor
Tamires Salazar
Artigos
Sem mulheres existe agroecologia?*
Márcia Maria Tait Lima e Vanessa Brito de Jesus
Somos uma gente que semeia e cria. Palavras sobre as culturas e os saberes da gente do campo*
Carlos Rodrigues Brandão
A contribuição das ciências e do movimento social para a agroecologia no Brasil
Lucimar Santiago de Abreu, Stéphane Bellon e Tércia Zavaglia Torres
Propondo uma outra agricultura: a agroecologia como caminho
Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco
Panorama dos cursos e da pesquisa em agroecologia no Brasil
Luciana Miyoko Massukado e João Vitor Balla
A fotografia triste do território onde a agroecologia não está
Juliana Schober Gonçalves Lima
Resenha
As sementes
Patricia Santos
Entrevista
Marcos Sorrentino
Entrevistado por Juliana Schober Gonçalves Lima
Poema
Excelência
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
Somos uma gente que semeia e cria. Palavras sobre as culturas e os saberes da gente do campo*
Por Carlos Rodrigues Brandão
10/10/2016

Somos uma gente que semeia e cria!

Somos os homens e as mulheres

que aram em agosto e semeiam em setembro,

o que em março o sol e a terra ofertam como fruto.

Somos uma gente da terra e cor da terra

que à noite apaga o fogo do fogão

e dorme cedo, quando se calam os passarinhos

para que antes do sol da manhã um outro dia

nos encontre de pé a caminho da roça,

com o chapéu de palha na cabeça

e a enxada polida de suor nas mãos.

 

Colhemos com as mãos e não com máquinas

tudo o que depois alimenta os nossos corpos

e o corpo branco das gentes da cidade.

Os que comem do que nós colhemos

e imaginam que o que é fruto de nosso trabalho

nasce pronto no mercado dos donos que enriquecem

multiplicando por quatro o valor do que sai de nossas mãos.

Nós, os que regamos a muda o que colhemos o grão

com o suor do corpo curvado sobre a terra.

 

A um deus de quem aprendemos a esperar o bem

mesmo quando a seca seca o rosto do sertão,

dizemos entre contas nos dedos as nossas preces

em noites de chuva e dias de sol,

em tempos de lavrar e em dias de colher.

 

Somos as mulheres e os homens

do campo e do mar, dos rios e das florestas

e da caatinga verde e do cerrado das águas.

Somos de onde os que chegam de longe

e buscam nas paragens onde vivemos

apenas o azul da paisagem

a beleza turista e calma do campo

e o prazer pitoresco da "roça"

passam e sequer param para nos ver de perto.

E quando nos encontram acaso na beira da estrada

eles se espantam de haver "ali",

calçados de botinas ou de alpercatas

uma gente da terra, salpicada de barro.


E alguns, pedem a nossos corpos fatigados

e tingidos da cor ocre a poder do sol

que façam uma pose de "povo pitoresco".

E nos enquadram e disparam fotos

e seqüestram imagens de uma gente

a quem não perguntam o nome

e de quem nem importam a vida e o destino.

imagens de uma "gente-da-roça"

que em suas casas eles exibem aos outros

como se, entre os outros do campo,

fôssemos os mais curiosos animais do sertão.


Somos uma gente de muitos nomes:

camponeses, lavradores, agricultores

seringueiros, extrativistas, castanheiros

sertanejos, quilombolas, caipiras

geralistas, chapadeiros, beradeiros

barranqueiros, caiçaras, pescadores.

Mas entre tantos nomes, somos uma gente só.

Aquela que com o trabalho dos dias e a toada da vida

arranca da terra, das árvores e das águas

como quem  faz nascer a cada ano um filho,

a seiva da vida, a comida na mesa

o alimento dos dias, a fibra da roupa

a madeira da casa, o fruto e o pão.

 

Bem mais do que imaginam

os que longe do campo se alimentam

do fruto de nossas dores e suores,

somos aqueles que em nome

do que há de mais humano na vida

entre uma geração e a outra

aprendemos a cuidar da terra

e como ela reverdecer o mundo.

 

Desde quando eles chegaram, vindos de longe

resistimos ao poder do mal e dos seus terrores.

Pois somos mais uma outra geração

das gentes que depois de semearem

entre os avós e o netos e os filhos dos netos

a mesma terra, com as mesmas águas,

foram dela expulsos a poder de enganos.

 

E pela estrada saímos em busca do lugar

onde estamos, mas não as nossas raízes.

Lá entre terras de onde tiramos com a alma e as mãos

o milho e a mandioca, o arroz e o feijão,

os donos das terras que eram nossas

espalham agora a poder de máquina e ganância

o gado e o deserto, a soja e o desamparo,

a cana e tudo o que deixou de ser dom da terra

para ser o produto da mercadoria do dinheiro.

 

Mas nós, expulsos da terra e lutando por ela,

cercados entre o rio e o arame farpado,

nós, as gentes do campo, bem sabemos

o que eles não sabem ou esqueceram:

"Quando a última árvore for abatida,

quando a última terra for desertada,

quando o último fruto for colhido,

quando a última fonte for secada

quando o último peixe for comido,

os senhores da terra saberão

que o lucro não sacia a sede

e nem o dinheiro não se come".

 

Os saberes que aprendemos e sabemos

são bem mais do que as nossas ciências.

Ao logo dos séculos eles são a nossa sabedoria:

o saber do plantar, do criar,

do conhecer o tempo e dizer a poesia.

Entre uma geração e outra, entre homens e mulheres

partilhamos ao redor do fogão aceso,

em volta da mesa pobre de uma casa honrada

ou no círculo do trabalho enquanto se amanha a terra,

tanto o ensino do cuidar da lavoura

quanto o de tratar da safra dos filhos e das filhas.

E os nomes dos lugares e os segredos da vida,

e os ponteios da viola e os saberes dos ditos

que são a nossa cartilha e o dicionário,

e mais a memória não-escrita de quem somos

de quem viemos e de onde estamos e vivemos.

O que as gentes letradas da cidade

imaginam ser o "saber dos que nada sabem"

ou o conhecimento inútil do "caipira"

é a nossa sabedoria ancestral do campo.

Com ela alimentamos os doutores,

povoamos de bens a mesa dos maus

e falamos a um Deus que eles desconhecem,

pois a muito esqueceram o dom da troca,

a gratuidade da partilha e a vida solidária

em nome do desejo do ganho e do lucro

e, solitários, longe do amor, adoram o dinheiro.

 

Com a sabedoria das culturas que nossos antigos criaram

e nossos filhos recriam com os mesmos e outros gestos e  nomes

perdemos a conta dos anos em que a gente do campo

espalha pela Terra e a terra as sementes do bem.

Trabalhamos com as nossas mãos e as nossas mentes

o corpo da terra como uma mãe de todos.

Aquela que nos acolhe como filhos

e em silêncio nos espera a cada dia,

para que com o que aprendemos e fazemos

colhamos de seu ventre a seiva da vida.

 

Com o que aprendemos a saber

lavramos outras culturas que não o milho e o feijão.

Juntos criamos entre rimas os nossos cantos

entre o coco, o cordel e a moda de viola,

os bois-de-janeiro, as congadas e os reisados.

E inventamos as danças que à noite

bailam os netos, as filhas e as avós.

Nossa arte ancestral é para nós o canto e a prece

de uma vida camponesa que desde um tempo

anterior ao arame da cerca, ao trator e à ceifadeira

nós sabíamos e seguimos sabendo viver,

como a prece da rezadeira, o ritual da parteira,

o dizer do curador, o cantorio do cantador,

e os gestos coletivos do rito e o festar da festa.

 

E tudo isto e tão mais, tanto mais

é apenas a face festiva e festeira de quem somos.

Porque lá bem no fundo de nós e nossa gente

somos as mulheres e os homens

que cedo aprenderam a viver e a partilhar

a lei do amor, a ética do trabalho,

os costumes a honra e os preceitos da vida.

 

Somos os que sabem, sem o saber da escola

a sermos ao mesmo tempo serenos e guerreiros.

Por isso mesmo, expulsos e subjugados,

cercados no campo ou exilados na cidade

como nunca, como sempre, estamos de pé.

 

Estamos de pé e com os olhos no agora e no horizonte

não somente semeamos, resistimos.

Não apenas colhemos, nós lutamos.

Não apenas esperamos, nós agimos.

Porque mais do que ontem, mais do que nunca

somos uma gente da terra e do campo,

as mulheres e os homens, os jovens, adultos e velhos

que entre o milho e a mandioca semeamos também

a luta pela terra e a vida dos seres da Terra e da vida

Como seres que sabem o saber dos que semeiam a vida,

com a sabedoria que é nossa desvendamos os segredos do tempo,

e ao olhar o vento e o voo dos pássaros

aprendemos a conhecer os rumos do hoje e do amanhã.

 

Por isto, oprimidos, expulsos e explorados

somos uma gente de pé e vivemos da luta e da esperança,

pois não construímos apenas casas e nem semeamos milho.

Nós semeamos agora a lavoura do mundo de amanhã.

Nós espalhamos pela Terra a lenta e persistente luta

para que algum dia não muito longe

o mundo de todas as pessoas livres da Terra

seja a colheita da justiça, da igualdade, da liberdade

e do amor entre todos e todas, sem senhores e servos,

Em um tempo fraterno e solidário

em que o mundo inteiro venha a ser

o que foi e sonha ser o Mundo da Gente da Terra.

Carlos Rodrigues Brandão é professor colaborador do programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp e professor colaborador do POSGEO da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Escreveu artigos e livros nas áreas de antropologia, educação e literatura.

*Escrito a mão em um caderno, de improviso, em Salvador, Bahia - entre 1 e 3 de setembro de 2014 durante o IV Seminário de Educação do Campo e Contemporaneidade Campesinato, Culturas e Educação. Revisto precariamente em Campinas, em 5 de setembro do mesmo ano. Usos devidos, cópias, e até mesmo desejadas melhoras neste improviso podem sem feitas à vontade, sem necessidade de pedido de autorização.